PREFÁCIO
A marca do terrir
Décio Pignatari
Na nudez, na mudez, os corpos são os atores: deles se esperam todas as belezas do prazer, todos os prazeres da beleza.
A juvenilidade das moças se infantiliza eroticamente, enquanto riem, correm, morrem, ao ritmo jocoso do “flickering” luz palpitante do Super 8 e do projetor.
Mas Torquato Nosferato está sempre vestido. Sua figura de agônica melancolia finge que joga o jogo dos caninos eróticos e do ketchup coagulado das carótidas. Torquato representa, elas brincam de representar. Torquato está à espreita e semeia a morte, porque a morte está à sua espreita. A morte em vida já está nele e só tem mais um ano para esperar.
Poucas vezes se pode olhar e ver tanta malícia inocente e bela como nessas garotas, mesmo quando se enroscam gostosamente em suas carnes fêmeas.
Este é um cinema do estar fazendo, não do ter feito. Daí o fascínio de estar-se assistindo ao presente no passado.
Ivan Cardoso é um primitivo de vanguarda, como o Douanier Rousseau, como o Bispo do Rosário. Adolescente apaixonado pelo cinema e pelos quadrinhos, foi sugado por um estranho torvelinho criativo, que se formou sob o AI-5 e às margens do Cinema Novo, o cinema nacionalista do período.
Surge o nacionalismo carioca, não um regionalismo, mas um Rio-Brasil. Infuso e difuso em Júlio Bressane, o Mabuse do movimento. Naïf e deliberado em Ivan Cardoso, para quem o postal do Pão de Açúcar virou sinônimo de bandeira nacional. E de toda a nostalgia da antiga capital. O “terrir” do Ivan de hoje começou como o “terrio” de Ivan de ontem.
Romântico tardio, chega num momento em que tudo parece ter sido dito: concretismo, nouvelle vague, bossa nova, tropicália, rock e pop, Zé do Caixão. De Godard e da chanchada, da Arriflex e do Super 8, do rock e Ari Barroso,da Twiggy e das ridentes nuazinhas que fazem às vezes de praia em filmes sem praia, de Londres, Nova York, Ipanema e outros paraísos artificiais; da fixação infanto-juvenil dos quadrinhos e do subcinema de horror, com todo o sado-masoquismo dos sonhos contrariados, extraiu o seu inusitado amor nacional pelo Rio de Janeiro.
Na passagem do Jack-Guará londrino estrangulando loiras, de Júlio Bressane, para Torquato sugando as meninas, deu-se a mutação: a triste figura do vampiro, que nenhuma beleza alegrou, estranho “literator”, agigantou-se à altura de seu grande destino, filmando num presente e editado num futuro. A ficção documental transformou-se em metadocumentário.
O “terrir” é a máscara do terror que assombra a visão de Ivan Cardoso. Carnavaliza a própria paixão terrorífica, que diz “terroriso”, mais do que “terrir”.
Pelos labirintos do tempo, todo cinema tende a documentário. A obra de Ivan em Super 8 é um documentário de documentos de ficção e de lembranças de um paraíso que virou pó e fumo.
O superoito superótico superbacanálico não é apenas explícita marginália kitsch, mas clandestinidade filmica de uma amoralidade ideológica que afrontava uma ética autoritária a rolar na superfície da vida social do país. A “chanchada” como protesto, embora politicamente nihilista.
A múmia se envolve em bandagens que são filmes velados. O filme revelado e revelador mumifica o passado. As mulheres estão ali para serem estupradas e mortas pelo filme, ou nele se enrolarem amorosamente - à exceção da sedutora assassina, num “déjeuner sur l’herbe”. Quanto aos homens, exibem a fúria impotente de um desejo pré-ideológico.
O tempo devorador tudo devora, menos a dor que deixa a sua passagem. Com engenho e ingenuidade, aqui ele é flagrado na sua ação criminosa, pelo supercoito de Ivan Cardoso. Sinistro Ivan: enquanto curte a película do seu “terrir”, entrega-nos à sanha do terror do tempo que nos tira a pele.
Time is meaning
O nacionalismo marginal carioca foi uma criação pop-carioca de resistência, que atraiu muitos criadores de outros setores e lugares. Ivan Cardoso foi, ao mesmo tempo o seu Zé do Caixão e o seu Zé do Berço, em termos de cinema pré-letrado. Um Méliès sem truques e sem truca, que leu e tresleu Godard. Um necrocinéfilo das catacumbas solares, onde a luz traça hieróglifos de gentes, tempos e eventos que parecem não ter existido, a não ser nas paredes do mito.
Um cão andaluz, numa idade de ouro, andou passeando pelo Rio de Janeiro, puxado por um divino marquês. O cine-olho de Ivan Cardoso registrou a passagem – registro esse que, por sua vez, registrou Ivan Cardoso.
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Este livro é dedicado
à minha mãe que me deu a luz.
IVAN CARDOSO APRESENTA
O cinema sempre teve um efeito hipnótico sobre mim. Desde de criança que vou muito ao cinema, era um dos programas que o meu pai mais fazia comigo. Ele tinha uma máquina de 8 mm e costumava projetar os filmes do Hopalong Cassidy num lenço. As primeiras vezes que fui ao cinema foi para ver o Festival Tom & Jerry nas matinês do Metro Copacabana. Meu pai era delegado fiscal e era comum a gente entrar nos cinemas de graça. O Pirata Sangrento – que assisti no Roxy – foi um dos filmes que mais marcou a minha infância. Já um pouco maior, me tornei freqüentador do Cinema Azteca, na rua do Catete. A arquitetura do Azteca era sensacional – completamente kitsch. Esse cinema tinha uns dragões na porta e passava os filmes de Hércules estrelados pelo Steve Reeves. Não perdia um. Na época, o épico greco-romano era o meu gênero preferido. Ainda vou fazer um filme de Hércules – só para filmar aquelas deusas seminuas.
Quando eu era criança, o cinema ainda tinha um impacto muito maior que a televisão. Lembro que brinquei de cowboy durante anos. Gostava de cinema como divertimento, não como arte. O cinema sempre foi uma coisa muito ligada a minha vida, mas no sentido de pura diversão. Por exemplo, tinha uma Segunda sem Lei no cine Rian que era uma loucura. Você fazia de tudo no cinema, menos ver o filme. Eu consumia aquilo sem nenhuma preocupação. Só decidi ser cineasta muito mais tarde e sem uma cultura de cinéfilo. Era fã mesmo. Mesmo na época que editei o jornal do colégio, nunca fiz crítica de cinema. A turma do colégio fazia cineclube, mas não era eu que escolhia filme. É engraçado porque me tornei cineasta por uma contingência. Foi à medida que fui vendo os resultados. Foi uma descoberta. Descobri que podia fazer aquilo. Aprendi a fazer cinema, como diria o José Mojica Marins, “praticamente na prática”.
Fui filho único até os treze anos de idade. Era muito preso. Não costumava descer para brincar na rua e só saía com o meu pai – o verdadeiro Ivan Cardoso – e minha mãe – Carmem Maria Secco Espírito Santo Cardoso. Meu pai trabalhava e ficava maior parte do dia fora de casa. Só no fim de semana que eu passava o dia inteiro com ele. Eu tinha mais contato com a minha mãe. Num certo sentido, se alguém tentou me educar foi ela. Meu pai sempre foi mais liberal. Na juventude, ele jogou futebol no Botafogo e fez parte da antológica Turma dos Cafajestes – teve um vidão. Meu pai também trabalhou na Aeronáutica e foi para os Estados Unidos na época da Guerra. O pai dele, o general Dulcídio Espírito Santo Cardoso, ocupou vários cargos de confiança nos períodos em que o Getúlio Vargas foi presidente. O meu avô Dulcídio foi o último prefeito do antigo Distrito Federal nomeado pelo Getúlio. Além disso, o vovô como a maioria dos Cardoso era muito romântico e namorava uma esbelta cantora portuguesa chamada Éster de Abreu...Ou seja, um tremendo escândalo para aquela época!
No fim de semana, o programa era ir nas casas dos amigos da minha família. Fui muito marcado por essa educação de filho único. Eu freqüentava um mundo de adultos, participava de um mundo muito maior que o meu. Isso deve ter me impressionado bastante – os carros, as roupas, as histórias... Como eu era muito quieto, já devia ter essa vocação dentro de mim, de observar. Eu ia muito com o meu pai na casa do Dr. Afonso Pena Júnior, dono da maior biblioteca particular do Brasil. A gente brincava de bang-bang dentro dessa biblioteca. Depois todo mundo passou a brincar de gangster, por causa do seriado Os Intocáveis. Acho que as crianças eram um pouco mais retardadas naquela época. Hoje em dia, a coisa é mais rápida.
Os meus pais eram jovens, tinham uma vida social intensa, então eu ficava muito na casa dos meus avós maternos. O meu pai tinha um Mercury igual aquele que eu filmei em O Escorpião de Escarlate. Minha avó, Alda Monteiro Secco, morava ali no Edifício Héris, na rua das Laranjeiras. A frente do prédio tinha uma subidinha e uma descidinha, para você entrar com o carro. O meu pai vinha descendo, no Mercury, comigo em pé no banco da frente. De repente, ele teve que frear e fui de cabeça no botão do rádio do carro. Depois de grande, achei sensacional ter quebrado a cabeça no botão do rádio. Aquilo me eletrificou, me botou em sintonia com as ondas do rádio.
O primeiro disco que eu ganhei foi It’s now or never, do Elvis Presley. Quem me deu foi minha mãe. Eu costumava imitar o Elvis e todo dia ligava para a rádio Tamoio para votar nessa música. Também era assíduo ouvinte dos seriados de aventura que iam ao ar pela Rádio Nacional – O Cavaleiro da Noite, As Aventuras do Anjo e Jerônimo, Herói do Sertão. Tinha um episódio de O Cavaleiro da Noite que era uma mistura geral de personagens e até hoje está na minha cabeça. Aquilo, para criança, era um mundo danado.
Lembro também que eu comprava o TV Guia e marcava todos os programas que queria ver ao longo da semana. Eram basicamente seriados – Dangerman, Os Lanceiros de Bengala, Cidade Nua, Além da Imaginação, o Fugitivo, Maverick, O adorável Tab Hunter, 77 Sunset Street, Ivanhoé, Bat Masterson, Os três mosqueteiros, Os Invasores, Mike Nelson, O homem da corda bamba, Impacto, Rin Tin Tin, Super-Homem, Bonanza, Viagem de Jaime, Jornada nas Estrelas, Os Monstros, Os Intocáveis e o sensacional Vigilante Rodoviário... Enquanto para os outros a televisão era uma coisa desprezível, para mim ela foi um veículo de formação e informação.
As novelas de rádio, os filmes e os seriados da TV eram os argumentos da minha fantasia e das brincadeiras que eu fazia com os meus primos e os outros meninos. Eu tinha tudo, devia ser uma criança feliz, mas sempre me senti meio deslocado. Esse mundo paralelo que eu tive, através do rádio e da televisão, me fascinava e eu vivia esse sonho. A minha saída para o colégio São Fernando foi a salvação da lavoura, porque eu era muito voltado para essa fantasia. Gozado que, ao longo da minha carreira, essa fantasia fez o caminho inverso – e se tornou matéria prima para os meus filmes.
Na verdade, persigo formas e acho que a maneira como adapto os roteiros é muito orientada por essa minha obsessão em reproduzir clichês e cenas de filmes americanos antigos – da Universal, da RKO, da Republic, de todas essas produtoras. Muitas vezes, levo meus livros do Boris Karloff, do Bela Lugosi e de cinema classe B para o set de filmagem e copio mesmo. Não tenho vergonha de copiar. Agora têm coisas que saem por acaso. Porque muito do que você faz é inconsciente, são coisas que já estão incorporadas a você.
Eu recrio cenas de filmes e acho que essa recriação é composta por vários ingredientes. Você não faz um filme de época apenas porque está escrito ali que a história se passa em tal período. Você tem que trabalhar o figurino, o cabelo, a cenografia, os carros. Os meus filmes talvez tenham os carros mais bacanas do cinema brasileiro. O carro do Escorpião é um La Salle e o do Anjo é um Jaguar. Também sempre filmei com as Cadillacs do Mariozinho de Oliveira. O carro é um elemento importante. Ele é um retrato da época, tanto é que o carro tem o ano. Nesse sentido, a direção de arte do Óscar Ramos foi uma coisa que sempre funcionou muito. Ele é um cara que tem Hollywood na cabeça.
De certa forma, sou responsável pela volta do cinema brasileiro a um filme de gênero bem definido – e bem estranho – que é o terrir. Ambientei esses filmes nos anos 50 e 60, porque achava que esses monstros, da maneira romântica como eu os retratei, ainda mais hoje, perto da violência urbana que tomou conta do Rio de Janeiro, seriam inocentes demais. Além disso, como eu copiava o estilo dos filmes dessa época, não poderia ser diferente. Isso acabou sendo uma coisa muito bem aceita, porque já existia uma nostalgia, um princípio dessa onda “anos 50”.
Também acho que a década de 80, quando produzi meus principais longa-metragens, veio um pouco numa ressaca dos anos 70. Tinha acabado aquela atmosfera que tem nos meus Super 8. Então fiz essa volta ao passado – e me dei bem. Eu vivi tudo aquilo, os anos 50 foi uma década fácil de mergulhar. E essa coisa dos filmes serem retrô, não serem contemporâneos, acabou sendo uma vantagem, dando um handicap aos filmes. Os filmes até hoje fazem um grande sucesso porque não são datados. Eles já nasceram clássicos. Eles são atemporais, não envelhecem. Agora mesmo levei O segredo da múmia para o Festival de Málaga e o jornalista espanhol Juan Manuel de Prada escreveu um artigo chamado A descoberta de um gênio. Ele ficou maluco com o filme, achou um dos dez maiores filmes da história do cinema. Uma coisa que o Hélio Oiticica falava muito, e que serve para o meu caso, é que as obras dele não eram “fogos de artifício” – que tinham aquele brilho, mas depois se apagavam. Acho que esses filmes ganharam a eternidade porque são o resultado de um grande esforço.
Já os meus filmes Super 8, embora sejam totalmente udigrudi, são contemporâneos a época que foram feitos. São filmes da época e não filmes de época. Sobre a contemporaneidade do Super 8, o que posso dizer é que esses filmes são de vanguarda não só no conteúdo, não só na forma de captação das imagens, não só pelo tipo de ator que era usado, mas principalmente porque, apesar de existirem algumas linhas de roteiro, os filmes são registros de performances pontuadas por celebridades. Elas também entravam no jogo e, de certa maneira, emprestavam o próprio prestígio aos filmes. Realmente não tinha noção que os filmes iam agradar tanto aos poetas concretos. Quem descobre e dá valor ao que você faz é o espectador.
Sempre tive essa coisa, que herdei do Oiticica, de me misturar e viver na própria obra. Vivo enfurnado nesse meu universo. Acredito que o primeiro quesito para você ser artista é ter um universo próprio. E isso é patente, e meio indisfarçável, em todos os meus filmes. Até os que são mais distantes desse meu universo, trazem a minha marca. E assim como no Super 8 eu consegui reunir um grupo, os Ivamps, a partir de O segredo da múmia consegui aglutinar uma equipe de colaboradores geniais.
O Gilberto Santeiro se tornou uma pessoa essencial. Ele é o responsável pelo corte final dos filmes. O montador talvez seja das funções mais inteligentes do cinema. Quanto mais articulado ele for, quanto mais cinema ele conhecer, mais probabilidades ele vai ter ao combinar os signos que dispõe. Ele pode, inclusive, fazer vários filmes com um mesmo material.
O Óscar Ramos cuidou de toda a parte visual de O Segredo da Múmia – dos letreiros aos cartazes, passando pela roupa da múmia e até aquela cabeça do Felipe que é decepada. Com camisetas Hering e missangas ele conseguiu fazer muita coisa. Cheguei a pensar que nunca poderia trabalhar sem a colaboração dele – mas, felizmente, superei isso.
O Gilberto e o Óscar são os dois principais pilares dessa minha nova produção. Depois, em As Sete Vampiras, entrou o Carlos Egberto Silveira, que é um fotógrafo ideal para trabalhar dentro dessa estrutura de cinema clássico, que ainda era factível no tempo da Embrafilme. E tendo o César Elias como meu operador, a câmera voltou a ser um instrumento fácil de dialogar e movimentar.
A única vez que trabalhei com uma equipe de desconhecidos foi em Um Lobisomem na Amazônia. A equipe era toda do Diler Trindade. Não pude trabalhar com o Óscar, nem pude indicar o fotógrafo. Considero o Gilberto, o Óscar, o Egberto, o César, o roteirista Rubens Francisco Lucchetti e o maestro Julio Medaglia a minha verdadeira equipe. Até os atores com quem trabalhei, também considero como parte dessa equipe. O Wilson Grey trabalhou em todos os meus filmes – mesmo depois de morto (vide O Sarcófago Macabro). O Colé trabalhou nas Sete Vampiras, no Segredo da Múmia e no Escorpião Escarlate. O Bené Nunes e o Ivon Curi trabalharam nas Vampiras e no Escorpião. A Zezé Macedo trabalhou nos Bons tempos voltaram, nas Vampiras e no Escorpião. O José Lewgoy e a Consuelo Leandro trabalharam nos Bons tempos e no Escorpião. Eu sempre acreditei no trabalho de grupo.
Considero uma grande contradição o meu cinema ser rotulado como trash. Mas eu próprio sou responsável pela exploração disso. Claro que já fiz vários filmes trash, mas não considero o meu trabalho genuinamente trash. Se você for ver a lista de prêmios que ganhei (cenografia, figurino, fotografia, montagem), vai ver que são prêmios de produções caras, não de filmes trash. Usufruo do trash porque, hoje em dia, ele é um mercado jovem. O público jovem sempre foi o que mais me prestigiou. Isso é muito bom, porque são os jovens que vão ao cinema. São os filhos dos meus amigos que vêem os meus filmes. Procuro me beneficiar da popularidade e da empatia que o jovem tem com esse tipo de estética e linguagem. Mas o pessoal, no Brasil, me enxerga como trash porque os meus personagens são múmias, vampiros e lobisomens. Felizmente, fora daqui, acham os meus filmes até muito bem produzidos para o padrão brasileiro.
A minha produção, apesar de bastante underground, criou a imagem mais próxima do cinema clássico americano que o cinema brasileiro já produziu. Quando cheguei com As Sete Vampiras, uma parte da crítica e do pessoal torceu o nariz porque achou o filme bem feito demais. Eles gostavam dos defeitos especiais de O segredo da múmia. “O Egito que Hollywood não mostrou” era uma novidade. O Escorpião Escarlate e As Sete Vampiras foram considerados filmes mais comerciais e, por isso, menos criativos e experimentais – o que é um grande preconceito.
Um lobisomem na Amazônia, de certa forma, me traz de volta ao tempo de O segredo da múmia. Recentemente, no Festival de Turim, na Itália, por causa de um problema técnico, Um lobisomem na Amazônia passou sem às pistas de música e ruídos. A platéia achou que o filme era assim mesmo e adorou. Um lobisomem na Amazônia trouxe de volta essa coisa do trash. No caso de O segredo da múmia está até certo, porque o filme se alimentou de outro filme (O Lago Maldito), demorou cinco anos para ficar pronto e tem material de todo o tipo. Mas eu não vou ficar discutindo, se o espectador vê como trash e acha bom, então é trash!
Tenho um público grande que gosta desse negócio de anos 50, que tem uma relação etária com isso. São pessoas que viveram essa época, assim como eu. Mas o grosso do meu público é jovem. Isso recarrega as minhas baterias. Sou cultuado sempre pela última geração. Meus fãs vão envelhecendo e novos fãs vão se formando. É um processo de “ivampirização”. Realmente é um privilégio ter essa comunicação com o jovem, uma coisa bastante valiosa.
Embora eu alterne momentos de total descaramento com momentos de total timidez, sempre fui, essencialmente, uma pessoa tímida. Precisei me esconder atrás do visor de uma máquina fotográfica ou de uma câmera de cinema para conseguir me aproximar de outros artistas e me lançar no mundo. Viabilizei a minha existência através do cinema e da fotografia. Fui investindo e enveredando por esse caminho. Foi uma coisa que foi se tornando normal, apesar de ser totalmente anormal. As coisas foram dando certo, as portas foram se abrindo. Conheci o Christopher Lee, sou amigo do Roger Corman, filmei com o Paul Naschy. Hoje em dia, sou um dos cineastas brasileiros que tem maior visibilidade no exterior, não preciso de mostras oficiais para atravessar as fronteiras. O meu nome é uma referência do cinema brasileiro contemporâneo.
THE KIDS
Fiz o primário num colégio de padre chamado Guido de Fontgalant. Minha mãe tinha percebido que eu era muito quieto e, no quinto ano, resolveu me mudar para um colégio misto, o São Fernando – “entra burro e sai malandro”, diziam os alunos. O São Fernando era um colégio moderno que ficava ali na rua Marquês de Olinda, em Botafogo. O Carlos Imperial e a Renata Sorrah tinha estudado nesse colégio. Os filhos do Samuel Wainer (a Pink, o Bruno e o Samuca), as filhas do Vinícius de Moraes (a Georgiana e a Luciana), o Paulinho Niemeyer, o Felipe Falcão, o Geraldo Carneiro, Luiz Fernando Soares Brandão, a Aninha Moreira da Fonseca, o Daniel Mendonça Cunha, a Cláudia Aché, esse pessoal todo estudava no São Fernando. O meu grande amigo durante a época do São Fernando foi o Ricardo Barreto (que depois foi guitarrista do conjunto Blitz). A gente morava no mesmo prédio e ia todo dia para o colégio junto.
O São Fernando foi uma revolução na minha vida, me jogou no mundo e na coletividade. Mulher era um bicho que eu só conhecia de olhar pelo buraco da fechadura do quarto de empregada. Eu era uma múmia e os professores aproveitavam para me colocar do lado das alunas mais endiabradas. Mas eu também era muito sonso e, aos poucos, fui fazendo amizades e evoluindo.
O meu pai tinha uma coleção de revistas Popular Photograph, que eu ficava vendo. E sempre tem aquelas fotos de nu artístico, que é uma coisa super excitante para os garotos. Mulher nua, é ali mesmo que você dá uma paradinha. Nesse sentido, eu tive uma iniciação na educação sexual.
Fui estudar no São Fernando porque a diretora era amiga do meu avô. Ela era uma mulher famosa, também da época do Getúlio, e se chamava Lúcia Magalhães – mas, entre os alunos, ela era mais conhecida como “Magalha”. Ela tinha uma caneta com tinta roxa e dava aula de redação. Entre outras atividades, que ela organizava, resolveu promover um inusitado “julgamento” do John Fitzgerald Kennedy. Ninguém queria atacar o Kennedy. Ele era um jovem político super simpático na mídia e a sua trágica morte, transformou-o num verdadeiro mito. Mas não sei porque, levantei o dedo e falei que queria ser o promotor... Um outro colega metido a gostoso, o Guilherme Daudt de Oliveira seria o defensor do saudoso presidente norte americano.
Cheguei em casa com essa terrível incumbência e tive de recorrer a um grande amigo do meu pai, que também se chamava Ivan, Ivan Barcelos, uma figura muito marcante na minha vida. Ele era dono de um velho castelo, onde, posteriormente, rodei vários filmes. O Barcelos era uma pessoa genial. Nos anos 50, ele foi a falência porque investiu toda sua fortuna em ração para cachorro, um negócio visionário para aquele tempo. Ele também tinha uma fábrica de sabão em pó, que se chamava Kalvan – era um sabão que não fazia espuma... A empresa do homem quebrou. O Ivan B. também era egiptólogo e estava escrevendo uma enciclopédia de termos científicos. Ele era um americanófilo doente e me disse: “O Kennedy é mole de destruir” ... Ele era republicano e sabia todos os podres do governo JFK. O democrata na verdade, é um americano mal resolvido, é um americano bonzinho. Aí, o Ivan Barcelos me preparou, eu cheguei lá e arrasei com o Kennedy, que ainda por cima vacilou ao querer invadir Cuba... O auditório do colégio estava cheio, os alunos das outras classes também foram convidados e, eu estraguei a festa. A ponto da diretora ter que suspender o “julgamento”, porque o Kennedy ia ser condenado. Isso me deu uma popularidade enorme, no colégio, foi o fogo na palha. Eu também comecei a me sentir mais seguro da minha capacidade.
A matéria que eu sempre gostei mais foi História. No São Fernando tinha um professor de História, chamado Júlio Rosas, que gostava muito de mim. Ele era comunista e me usava para falar certas coisas. Na sala de aula, eu quebrava o pau com os alunos de famílias mais reacionárias, que eram contra as passeatas e contra os estudantes. Nessa eu fui indo. Através desse professor História, comecei a ter uma visão mais socialista mesmo. Na época, já era ditadura e isso tinha um apelo muito forte. Para infelicidade da minha mãe, a primeira coisa que me chamou atenção foi descobrir que Deus não existia.
Eu tinha crescido e já lia alguma coisa. Também já saía de casa sozinho, não era mais tão preso. Tinha uma vida normal. O programa do pessoal do colégio era brincar de autorama e jogar boliche. Primeiro eu freqüentei uma turma de roqueiros. O Dadi e o Luiz Henrique eram meus outros dois grandes amigos da época do São Fernando. Eles eram excelentes músicos já nessa época. O Barreto tinha começado a tocar. O Rick Ferreira, que depois tocou guitarra em vários discos do Raul Seixas, também era colega de colégio da gente. O Rick e o Dadi tinha um conjunto chamado The Goofies.
Me lembro que as meninas que eram fãs dos Beatles eram mais alienadas e não davam a menor bola para gente. As outras meninas, que eram mais modernas e queriam se informar, como a Monique Mangia e a Martha Jardim, a gente levava na Cinemateca do MAM para ver os filmes do Glauber Rocha e do Nélson Pereira dos Santos. Na época, entrei de sócio do Museu de Arte Moderna. Era um programa bastante inusitado. Para chegar à Cinemateca, você passava por dentro Museu. Foi a primeira vez que vi obras de arte moderna. Eram obras bem diferentes daquelas que tinham na minha casa. Também era moda ir no cinema Paissandu – principalmente se você era adolescente e queria fingir que sabia das coisas . Mas eu estava mesmo em busca de informação. Na época, também comecei a me relacionar com alunos de outros colégios. O Eduardo Viveiros de Castro – que era fã do Bob Dylan que nem eu – se tornou o meu melhor amigo. Foi o Eduardo que, mais tarde, me chamou atenção para fazer filme de múmia.
O discurso do Caetano Veloso na gravação de É proibido proibir foi outra coisa que marcou muito a minha geração. Na mesma época começaram a entrar outros assuntos no São Fernando. Por causa desse negócio de movimento estudantil, a gente começou a fazer um jornal no colégio. Além do jornal, fizemos uma decoração na sala de aula. Isso foi uma loucura danada, porque até guarda-chuva no teto a gente pendurou. Escrevemos umas palavras de ordem na parede. O pessoal do Cinema Novo arranjou cartaz. A gente ia na Civilização Brasileira e na José Olympio pedir capas de livro para colar nas paredes da sala. Nossa decoração era tão legal que o colégio inteiro vinha ver. Começamos a participar.
Tinha visto uma palestra do Leandro Konder e pedi para ele escrever no jornal do colégio – eu tinha cara de pau. Acabamos levando o Konder para dar um plá na casa do professor de História. O professor ficou louco. A chinesa é o filme do Godard que melhor representa essa época. O Mao era um ícone. E, com A Chinesa, o Godard provou que é um grande cineasta – fazer um filme daquela maneira, dentro de um apartamento, com os atores lendo o livrinho vermelho... E o filme ainda tinha uns rocks! A gente ficou fascinado.
As drogas também tinham chegado. O pessoal no colégio começou a fumar baseado e a tomar ácido. Eu, o Barreto e o Sidiny Garcia, outro grande amigo do São Fernando, começamos a fazer ioga na esperança de que o nosso espírito conseguisse sair do corpo. Nunca conseguimos. O professor era o Jean Pierre Bastiou, um francês famoso que foi segundo lugar no concurso de Mister Universo e depois entrou no barato da ioga. Ele tinha uma academia de ginástica em Copacabana, no prédio do Ibeu. O Georges Lamazière e a turma do colégio Santo Inácio também participavam das aulas. O Lamazière, que depois foi porta-voz do Fernando Henrique Cardoso, era o mais erudito. Ele era filho de franceses, lia em francês, e tinha o dom de transformar em fofoca juvenil a briga dos estruturalistas com o Sartre. Ele era estruturalista e isso, para a gente, era melhor do que fazer ginástica. Também foi nas aulas do Bastiou que ouvi, pela primeira vez, alguém falar de Poesia Concreta. O Georges tinha umas poesias concretas e me mostrou um exemplar da revista Invenção. Fiquei inteiramente chocado, principalmente com os poemas do Décio Pignatari. Comecei a ir na Livraria Leonardo da Vinci, que já freqüentava atrás de revistas de automobilismo, para comprar as revistas Invenção. Cheguei a fazer um poema concreto, em 1968, chamado COSTA BOSTA. Era a palavra COSTA escrita com a palavra BOSTA repetida várias vezes – era uma homenagem ao Costa e Silva.
O interesse pela fotografia, eu herdei do meu pai, que é um excelente fotógrafo amador. Um pouco antes dessa época, por volta de 65, minha mãe começou a fazer um curso de pintura. Por causa disso, também comecei a pintar. Mas como pintor devo ter sido literalmente um fracasso. No começo, eu pintava casas coloniais... Como não sei desenhar, não podia pintar rostos. O que, pelo menos em fotografia, foi o que eu mais fiz. Os trabalhos do Antônio Dias, do Rubens Gerchman e do Carlos Vergara chamaram a minha atenção porque eram a pop art carioca. Conheci o Gerchman e o Vergara em um projeto de arte na praça, onde comprei até uma serigrafia deles. Também tentei ser aluno do Vergara, mas não deu certo. Acabei levando os dois para uma palestra no São Fernando. A diretora gostou muito. Eles falaram no limite do que ainda podia ser falado e mandaram a gente procurar o Hélio Oiticica – o artista plástico que tinha inventado a Tropicália.
Telefonamos para o Hélio Oiticica e marcamos de visitá-lo em sua casa, no Jardim Botânico. Foi um dos dias mais emocionantes da minha vida. Nesse dia, além do Oiticica, a gente conheceu o Rogério Duarte, Torquato Neto e o Caetano Veloso. Foi um dia avassalador. Para a minha geração, o tropicalismo era o máximo. Um detalhe engraçado é que, não sei como, a primeira coisa que o Hélio falou foi “Ah, você é neto do Dulcídio Cardoso”! Não sabia onde me enfiar, porque o meu avô, embora fosse janguista, era general. Na época, o papo era detonar a ditadura. Mas o Hélio, quando nos viu, sacou logo que a gente curtia os Beatles e os Rolling Stones. Houve uma simpatia imediata e também convidamos o Oiticica para uma palestra no colégio. Eu, o Barreto e o Sidiny saímos da casa do Hélio Oiticica empolgados.
O avô do Hélio tinha sido um líder anarquista. A diretora do colégio desconfiou e foi conferir o que o Oiticica tinha a dizer. No meio da palestra, o Oiticica falou que se a gente visse o retrato de um milico na rua, podia pegar um spray jet e pichar, porque aquilo seria uma obra de arte! A diretora ficou transtornada. Encerrou a palestra e botou o Oiticica para fora do colégio. Ela acabou transformando o Oiticica em nosso maior ídolo. Passamos a freqüentar a casa do Oiticica, onde a gente podia ouvir os discos do Barreto e fumar baseado à vontade – finalmente tínhamos ingressado no universo artístico! O Hélio passou a nos chamar de The Kids e a nos tratar – eu, o Barreto e o Sidiny – como se a gente fosse um conjunto de rock.
A sessão de Easy Rider no cinema Copacabana foi antológica e foi outra coisa que marcou muito essa época. Os meus pais tinham feito uma viagem à Inglaterra e me trouxeram uns discos e umas roupas completamente psicodélicos. Existia toda uma mudança no comportamento e na maneira de se vestir. Todo mundo queria deixar o cabelo crescer. Era um outro mundo. Acho que foi isso que sinalizou para o Oiticica que nós éramos situados pela nossa própria juventude. A sessão do Easy Riders deu polícia e o diabo. Nunca vi o Copacabana encher tanto. E o filme tinha tudo mesmo para você pirar. Todo mundo viajando no cinema, uma coisa de louco. Depois veio o Woodstock. Lembro que foi uma experiência quase traumática na minha vida, porque vi esse filme umas trinta vezes. Mas foi divertido.
Não sei precisar a simultaneidade dessas coisas, mas o fato é que eu conheci o Torquato Neto na casa do Hélio Oiticica. Houve uma empatia muito grande entre nós. Depois encontrei o Torquato numa exposição da Tereza Simões, na galeria Relevo, em Copacabana. Ele estava indo viajar para a Inglaterra com o Hélio, que ia fazer a famosa exposição na Whitechapel. A gente havia conhecido o Hélio uns seis meses antes dele viajar. Não me lembro quanto tempo o Hélio ficou fora, mas foi um período grande. Já nessa primeira fase, trocamos uma série de cartas. Primeiro as cartas eram dirigidas aos The Kids. Mas, como era eu que respondia, quem desenvolveu a relação fui eu.
Sei que também pedi um artigo ao Torquato para o jornal do colégio. Esse jornal tinha um nome muito careta: O Estudo. Não me lembro se foi nesse dia da Galeria Relevo, mas, surpreendentemente, antes de viajar, o Torquato me entregou esse artigo, chamado Torquatália 4 – o artigo era escrito em uma máquina com tinta azul, uma coisa que nunca vou esquecer. Foi uma coisa que me sensibilizou muito, porque era um texto muito bom, era uma peça literária do Torquato.
Quando o Hélio voltou, passou mais uma estadia aqui no Rio, fortalecendo ainda mais nossos laços de amizade. Em seguida, ele ganhou uma bolsa da Gugenhein e foi para a América. O Waly Salomão ia ficar morando na casa do Hélio e já estava sendo aguardado. O Waly tinha sido preso no Carandiru, por causa de um baseado – ele próprio conta isso no livro Me segura que eu vou dar um troço, escrito na prisão. Na época, fiquei bastante amigo do Waly.
Por incrível que pareça, o primeiro cineasta que fui entrevistar para o jornal do colégio foi o Arnaldo Jabor. Eu fazia praticamente o jornal inteiro sozinho. Era um suplemento cultural. O Hélio escreveu em um, o Torquato escreveu em outro. Era de altíssimo nível para um jornal escolar de nível secundário. Eu tinha um gravador da Sony enorme. Levei esse gravador na casa do Rogério Sganzerla e fiz uma entrevista com ele que guardo até hoje. Essa entrevista me interessa muito porque nela o Rogério fala bastante do José Mojica Marins. Isso foi uma coisa que me aproximou muito dele. Eu tinha um interesse muito grande pelo Mojica, que eu conhecia mais das histórias em quadrinhos que dos filmes. Eu passava horas conversando sobre o Mojica com o Sganzerla. Conheci o Sganzerla e a Helena Ignez na praia. Era um trecho da praia freqüentado por artistas, em frente a rua Montenegro (onde hoje é a Vinícius de Moraes). O Sganzerla tinha feito muito sucesso com O Bandido da Luz Vermelha. O cinema brasileiro era uma coisa que chegava no colégio. O teu colega falava “porra, você já viu aquele filme?”. O Sganzerla, para nós, caiu como uma luva. Ficamos malucos com o Bandido. Embora o filme tivesse muita coisa em comum com os filmes do Godard, era bem melhor solucionado. Era mais pop, menos intelectualizado. O Bandido é, basicamente, um filme B americano.
A gente fazia ponto ali no bar do MAM – estranho que existisse um lugar como o Museu de Arte Moderna em plena ditadura. Já havia uma certa fascinação pelo underground americano e pelo Andy Wharol. Além disso, todo o papo do Hélio era sobre a fusão das artes. Já tinha todo um modismo no ar. Eu, o Barreto e o Sidiny resolvemos fazer um filme underground. A gente chegou a filmar uma cena, que era o Jards Macalé no Programa do Chacrinha. Filmamos com uma câmera Éclair 16 mm, do Bruno Barreto. Quem operou foi o Luís Carlos Saldanha. Nunca vi esse material. Chegamos no meio do número, atrasados, mas conseguimos filmar alguma coisa. Era um projeto sem pé, nem cabeça. Eu me lembro que o túnel Rebouças tinha acabado de ficar pronto e era plasticamente muito bonito. Para o nosso filme, pretendíamos filmar três seqüências – um travelling que atravessaria o túnel de ponta a ponta; um plano de cú cagando (filmado atrás de um vidro, para a merda cair na lente) e o Macalé cantando Gotham City no Chacrinha.
Logo em seguida, fiz vestibular e passei para o segundo semestre de Psicologia na PUC. Fiquei seis meses sem estudar. Esses seis meses foram fatais, porque nunca mais voltei a estudar. Como eu tinha que fazer alguma coisa, me matriculei num curso de inglês, num curso de fotografia e comecei a fazer esses filmes em Super 8.
SEM ESSA, ARANHA
Depois de O Bandido da Luz Vermelha, Sganzerla lançou A Mulher de Todos, estrelado pela Helena Ignez e o Jô Soares. O Bandido foi um grande sucesso, mas A Mulher de Todos foi um campeão de bilheteria. E os dois filmes foram muito bem aceitos pela crítica. O Sganzerla era um vitorioso. O Cinema Novo, embora ainda ganhasse muitos prêmios internacionais, era uma coisa do inicio dos anos 60. Já tinha se acomodado, vamos dizer assim. O Sganzerla veio na contramão de tudo e se tornou o inimigo público número um do Cinema Novo.
Outra coisa que me aproximou do Rogério foi a minha máquina de Super 8. Quando ele soube que eu tinha essa câmera, ficou doido. Várias vezes, pediu que deixasse a máquina com ele. Mas eu ficava temeroso, porque ele era meio estabanado... Deixava aquilo ali, mas ficava pensando: “Ai, meu Deus, lá vai a minha máquina Super 8”. Na época, o Rogério não tinha problemas de dinheiro – pelo menos em relação a mim, que era adolescente. Eu tinha 17 e ele 23. Eu comprava os meus filmes com dinheiro de mesada – o meu Super 8 era milimetrado, procurava gastar aquilo ali com um mínimo de planejamento. Já o Sganzerla não, queimava filme o dia inteiro. O Rogério apertava o gatilho da câmera e só parava quando o negativo acabava.
Nunca quis freqüentar nenhuma escola de arte. Era contra aprender cinema em escola. Achava que você aprendia na prática. Quando o Sganzerla me chamou para trabalhar no Sem essa, Aranha, nem acreditei. Ele me convidou para ser assistente de direção. Isso, para mim, foi um salto de vara. De repente, saí do nada para ser assistente de direção do Rogério Sganzerla, “o Rei da Boca do Lixo”. O Rogério e o Júlio Bressane já tinham feito a Belair. O Sganzerla já tinha filmado o Copacabana, mon amour. O Beth bomba, a exibicionista, que depois virou o Carnaval na Lama, já tinha sido exibido na Cinemateca do MAM. A Cinemateca, embora fosse um reduto do Cinema Novo, era um lugar democrático de exibição de filmes. A pré-estréia do A Mulher de Todos, no Rio, foi na Cinemateca. O lançamento da Belair também.
O Bressane também tinha rompido com o Cinema Novo. Ele escreveu o artigo Vou acabar ficando nu, o Cinema Novo não da mais pé, para o Pasquim. Era um período agudo da repressão, mas hiper-fértil em produções. Foi logo depois de 68 e do AI 5. O próprio Júlio tinha feito o Matou a família e foi ao cinema e O Anjo Nasceu, filmes realizados logo depois do Bandido. Esses filmes do Júlio causaram muita estranheza. Foram projetados à meia-noite, no Paissandu, em sessões polêmicas. O Anjo Nasceu tem um final que não termina – um plano fixo de dez minutos de uma estrada vazia, onde não acontece nada. Também o fato do Júlio ter feito os dois filmes juntos, em 16 mm, e ampliado para 35 mm, era uma novidade muito grande.
O Pasquim era um órgão de imprensa alternativa ligado à esquerda e tinha uma grande circulação. A entrevista do Pasquim era uma coisa aguardada. O Sganzerla deu uma entrevista demolidora, junto com a Helena Ignez, e isso depois trouxe problemas enormes para ele. Nessa entrevista, o Sganzerla tocou fogo no Cinema Novo. Esculhambou o Glauber, o Cacá Diegues, o Walter Lima, o Joaquim Pedro. O Sganzerla fez um strike.
O Rogério resolveu fazer o Sem Essa, Aranha todo em planos seqüência de 11 minutos. Seguindo a tradição dos filmes Signo de capricórnio e Festim diabólico, do Alfred Hitchcock. O Guará Rodrigues fazia o som direto no Nagra e o Edson Santos era o câmera. Indiquei o Milton Machado, um amigo que hoje em dia é artista plástico, para ser fotógrafo de still do filme. Ainda não tinha aprendido que não se deve fazer indicações. Algumas vezes o Milton era flagrado fazendo still pela câmera do Edson Santos. Sobrava esporro para tudo que é lado. Eu ainda era tímido, ficava ali quieto. Mas o Milton, coitado, era um dos que mais levava esporro do Sganzerla. Era um tipo de produção nunca antes vista. E também nunca mais vi nada igual aquilo. O Rogério levava uma uns discos e uma vitrola portátil para as filmagens e colocava a música na hora. Às vezes, ainda arranhava os discos de propósito. Eram estratégias muito avançadas para a época. O filme é estrelado pelo Zé Bonitinho. Achei o máximo poder conhecê-lo. O Zé Bonitinho era um dos meus ídolos da televisão e um personagem bastante familiar.
E como o pessoal queimava fumo e ria muito, às vezes ficava difícil dar uma ordem para o Zé Bonitinho. Porque só de olhar para a cara dele, você caía na gargalhada. Uma das minhas tarefas era transmitir as coordenadas – ou descoordenadas – para o Zé. Além disso, sugeri ao Rogério que incluísse no filme o Luiz Gonzaga e o Moreira da Silva, outro grande ídolo meu. Ele achou sensacional. Não só fiz essas indicações, como fui o intermediário das duas contratações. E tem toda uma parte do Sem Essa, Aranha que foi filmada num teatro que existia na Praça General Osório, em Ipanema. Nesse teatro, o Kléber Santos dirigia uma revista que fazia muito sucesso, com a Leila Diniz, chamada Tem banana na banda. Vários elementos e personagens secundários desse espetáculo – como o engolidor de fogo, por exemplo – foram agregados ao filme.
Foi uma experiência fantástica. Porque até uma grana, pelo serviço de assistente de direção, o Rogério me pagou. Usei o dinheiro para comprar uma roupa igual a que ele usava – um conjunto de calça e jaqueta de veludo Levi’s. Também queria ter uma roupa de cineasta. Comprei a minha e virei cineasta.
QUOTIDIANAS KODAKS
A minha primeira máquina Super 8 foi uma Yashica, que comprei de um colega de classe chamado Pedro Wilson. Ele ganhou a câmera do pai, mas não se interessou e me vendeu. Era uma máquina muito simples de manusear e foi fundamental para o meu aprendizado. Com essa Yashica fiz minhas primeiras experiências e também filmei o Nosferato no Brasil. Ao contrário dos outros usuários de Super 8, sempre procurei fazer planos curtos, aproveitando diferentes ângulos. Já filmava de uma maneira clássica. Acabei optando por uma linguagem próxima do cinema mudo e isso me permitiu um controle maior sobre os resultados. A grande contribuição do Super 8 foi ter democratizado o cinema e permitido ao pessoal jovem brincar de cineasta. Acho que a diferença entre o meu trabalho e o resto da produção Super 8 da época é que levei essa brincadeira à sério demais.
Desde o início, fugi de uma série de clichês – que são verdadeiras armadilhas – muito comuns nas filmagens amadoras em Super 8. Evitava filmar planos em movimento com a câmera na mão e nunca abusava do zoom. A iniciação que tive em fotografia ajudou muito, mas tudo que aprendi foi mesmo na prática, intuitivamente. Os primeiros resultados foram desastrosos. Foi a minha insistência e atenção aos detalhes que me ajudaram a conciliar as questões técnicas com a minha vontade de filmar. Mas nunca teria conseguido se não tivesse me dedicado intensamente à prática, ao treino quase diário.
Atrás de uma câmera de Super 8, consegui me harmonizar com o mundo. Aos poucos, fui formando um elenco de atores fixos e comecei a fazer a série de filmes que chamei de Quotidianas Kodaks – título que tomei emprestado das crônicas do poeta simbolista baiano Pedro Kilkerry, redescoberto pelo Augusto de Campos. Todo mundo queria trabalhar nos filmes, por isso acabei virando uma pessoa famosa entre a galera. Não só comecei a criar um estilo próprio, como também pude exercer a minha liderança. O Super 8, de certa maneira, virou uma extensão da minha vida. Eu levava a câmera para todos os lugares e explorava as possibilidades que surgiam: a turma, as meninas que iam à praia, o pessoal que passava o fim de semana com a gente em Cabo Frio, na casa do Eduardo Viveiros. Eram participações voluntárias, não havia muito planejamento.
No Super 8, eu fazia tudo – era produtor, diretor e fotógrafo. Às vezes, o Ricardo Horta me ajudava na fotografia de still. O meu primo Amarílio Gastal também colaborou em alguma coisa. Quando eu comecei a montar os filmes, não gostava de usar cola. Depois lançaram uma fita adesiva, que era bem melhor porque o projetor sentia menos as emendas. Isso evitava aqueles acidentes horríveis durante a projeção, que geralmente estragam o filme. O principal drama do Super 8 é o negativo ser reversível – o negativo original, ao ser revelado, se transforma na própria cópia (que é única). Só o passar da luz do projetor na cópia já esmaece o seu original. Sem falar nos arranhões, outro problema incontornável. Chegou uma época, por volta de 1976, que tive que optar por não projetar mais os filmes, para preservá-los.
Esses filmes não passaram exaustivamente, mas cheguei a listar mais de trinta exibições. Inclusive, em 1973, os filmes participaram de um festival de Super 8 em Curitiba, organizado pelo Sílvio Back. Lembro que não recebi prêmio nenhum. No encerramento do festival, subi no palco e protestei. A produção do Super 8 era ridícula. Eram filmes domésticos. Eu era um amador nitidamente com pretensões a cineasta. Fazia em Super 8 os filmes que gostaria de assistir no cinema. Os filmes que curtia. Para mim, o Super 8 era um veículo de libertação. Não teria nem conhecimento, nem grana, para fazer cinema de outra forma.
À medida que fui me aperfeiçoando, tentava filmar os planos já na ordem que eles seriam projetados. O que era outra loucura, outro apuro artístico. Você querer filmar montado é foda. Várias seqüências dos meus Super 8, até na versão de A Marca do Terrir, estão ali como foram impressas. Eu tinha moviola, cortadeira, essa geringonça toda, mas acabava optando por montar no olho mesmo. Usava uma lâmpada de abajur para visualizar as cenas e ordenar o material. Depois de montadas as seqüências, projetava o rolo e via se estavam de acordo. Também fazia e filmava as cartelas. Sempre contando com a colaboração milionária de todos os erros. Quem mais me apoiava, num certo sentido, era o Carlos Vergara. O Vergara era quem tinha o melhor equipamento – um projetor Kodak excelente e uma câmera Beaulieu que era ótima para filmar fotografias quadro a quadro (era uma verdadeira truca). A casa do Vergara na rua José Linhares, no Leblon, era um verdadeiro clubinho do Super 8. Você podia levar seus filmes lá e assistir sem susto. Você tinha que ter muito cuidado para não estragar os filmes em projetores assassinos.
No princípio da época dos Super 8, ainda morava com os meus pais. Muitas cenas foram filmadas na casa e na cama deles. Aquela pintura Op que aparece no Amor & Tara e na cena em que a Cristiny Nazareth lê o livro do Pound é no meu quarto. Outra grande curiosidade é que eu rodei meus principais filmes nas casas em que brinquei quando criança. Eu tinha muita familiaridade com essas locações. No castelo da família Barcelos, por exemplo, filmei o Nosferato no Brasil, o Sentença de Deus e As Sete Vampiras. Na casa do Afonso Pena Júnior, onde eu brincava na biblioteca, filmei o A Múmia volta a atacar.
BRANCO, TU ÉS MEU
O primeiro filme que tentei fazer foi numa festa de arromba na casa do Zé Português, no Jardim Botânico. Os pais do português tinham viajado no fim de semana. Lembro que até o Hélio Oiticica apareceu para ver o conjunto do Dadi e do Luiz Henrique tocando na casa do Zé. Não sei como, mas a gente conseguiu vestir um amigo nosso todo “mauricinho”, chamado José Adolfo MacDowell, de blazer, calça branca, sapatos italianos e com um cap do meu tio, que era comandante da Panair. Fantasiamos o MacDowell de “capitão dos mares do sul” e mandamos ele passear na beira da piscina. Aí o meu primo Amarílio saiu de trás de uma moita e empurrou o MacDowell dentro da piscina. Uma debilidade total. O filme ficou fora de foco e batizei depois de Mac na Piscina. Seria o meu primeiro filme, mas não funcionou.
A partir daí, comecei a andar pelo Rio filmando. Aproveitava para fazer uns stock shots do Pão de Açúcar, do Cristo Redentor, da Pedra da Gávea e de outros pontos da cidade. Mas não era nada assim muito narrativo. Foi a partir de Branco, tu és meu, um falso trailer para uma comédia estrelada por Carlos Vergara, Monique Mangia, Waly Salomão e Zé Português, que comecei a ver que levava jeito. As filmagens de Branco, tu és meu aconteceram no primeiro semestre de 1971. Muitas vezes, por falta de recursos, fazia só o trailer do filme. Quer dizer, não apenas por falta de dinheiro, mas porque sempre me fascinou o poder de síntese do trailer. Isso era uma das possibilidades mais bacanas do Super 8.
Também fazia falsos cinejornais e falsos anúncios institucionais – como aquele da Cristiny Nazareth chupando o cano de um revólver, dentro da bandeira do Brasil feita pelo Carlos Vergara. Chamei este filme de Brasil, eu adoro você, por causa de uma música da Ângela Maria que eu usava na trilha. Acabei repetindo esta cena do revólver com o Hélio Oiticica, anos mais tarde, no HO. Mas o plano da Christiny, com a obra do Vergara, ficou plasticamente muito bonito. O meus filmes Super 8 têm um lado plástico muito acentuado. Eram filmes de arte, filmes experimentais, que se propunham fazer a fusão das artes plásticas com o cinema e a fotografia.
IVAMPS
Na portaria do prédio dos meus pais, tem uma escada forrada com um tapete de lã bastante macio. Eu saía do elevador, fingia que era metralhado, caía no chão e rolava as escadas. Fazia isso para uns amigos do meu primo, era uma performance. As pessoas achavam engraçado e acho que foi ao ver isso que a Helena Lustosa se interessou por mim. Dias depois, eu estava na praia e, ao sair da água, vi uma sereia sorrindo para mim. Era a Helena. No mesmo dia, começamos a namorar. Ela era de Juiz de Fora e não tinha casa aqui no Rio. Ficava na casa de uma madrinha. Nesse dia, a Helena voltaria para Minas, mas acabou dormindo na Cristiny Nazareth. Eu estava atirando para o lado da Cristiny, mas acabei namorando a amiga dela.
Além da Helena e da Cristiny, chamei para filmar a Ciça Afonso Pena, uma modelo que era prima do Amarílio. O Zé Português também era amigo do meu primo. O Português era um cara do high society que estava no Brasil. Ele gostava muito de música pop e caiu nessa turma que a gente freqüentava. Acabou virando ator dos filmes. E tinha um cara estranhíssimo no meu prédio, chamado Ricardo Horta. Na época, o Amarílio apelidou ele de “armário embutido”. Foi um dos meus primeiros e melhores atores. Foi graças a esse grupo de atores improvisados – que o Waly Salomão batizou de Ivamps – que pude me desenvolver como cineasta. A nossa estrutura deu certo demais. A gente armava as situações e filmava.
O trabalho em cinema, da parte do diretor, é sempre muito ditatorial. O diretor de cinema, de fato, é um chato. Ele é o cara que manda nas outras pessoas, a função dele é essa. Na época, graças a Deus, talvez por ser cinema amador, não havia contestação nenhuma em relação a isso. Os Ivamps nunca ofereceram nenhuma resistência. Pelo contrário, eles faziam até muito mais do que eu pedia. Eu já tinha um olho clinico para encontrar, não só mulheres muito bonitas e sensuais, mas tipos que funcionavam bem na tela. As meninas do Super 8 deixavam qualquer um de pau duro. Os homens também foram muito bem escolhidos. O Zé era uma mistura de sofredor e galã. O Ricardo, um vilão sádico. Acho que “passei no vestibular” porque consegui tirar excelentes performances de pessoas que não eram atores. Tudo isso aconteceu muito rápido e ao mesmo tempo. Era a pior época da ditadura e, mesmo assim, a gente saía no jornal todo dia. Os filmes eram pouco vistos, mas muito falados. Rapidamente eu me tornei o enfant terrible do underground.
PIRATAS DO SEXO VOLTAM A MATAR
Um pouco antes do Nosferato no Brasil, fiz Piratas do sexo voltam a matar. Este filme foi exibido como complemento, nas primeiras sessões do Nosferato. Os programas da série Quotidianas Kodaks eram paródias às sessões de cinema. O filme principal era precedido por complementos que eu mesmo fazia – trailers, cinejornais, anúncios – e ainda um short americano. Piratas do sexo mostrava algumas pessoas cheirando cocaína e, à partir de uma determinado momento, fiquei com medo de tê-lo em casa. Pedi ao Luciano Figueiredo que guardasse o filme, mas até hoje ele não me devolveu. Para o Piratas, também fizemos imagens dos jogadores Jairzinho e Paulo César num Mustang vermelho. O Zé jogava futebol muito bem. Nós éramos fanáticos pelo Botafogo e fomos em General Severiano filmar esta dupla de tri-campeões do mundo. É um plano que lamento muito não ter conseguido resgatar para A Marca do Terrir.
NOSFERATO NO BRASIL
Acho que foi através do Waly Salomão que veio a notícia de que o Torquato Neto tinha voltado da Europa. Antes de escrever a coluna Geléia Geral, publicada quase diariamente pelo jornal A Última Hora, o Torquato trabalhou no Correio da Manhã. A Última Hora e O Correio da Manhã eram dos irmãos Alencar, empreiteiros que tinham comprado esses jornais para fazer política.
Torquato arranjou do Waly escrever uma coluna para o suplemento cultural do Correio da Manhã chamado Plug. Essa coluna durou pouco tempo e se chamava Super Frente Super Oito. Quem fazia Super 8 na época, além de mim, eram o Luiz Otávio Pimentel, a Graça Mota, José Carlos Capinan, o Antônio Carlos Fontoura, o Carlos Vergara, o Antônio Dias, o José Simão, a Gal Costa e o Jards Macalé, entre outros. O Super 8 era um modismo no início dos anos 70. O Waly capitalizou isso. Ele assinava a coluna como “O Magnata do Superoito” e publicava textos do Dziga Vertov e do Godard, além de notas sobre esses filmes que a gente fazia. Comecei a virar personagem dessa coluna.
Realmente, não sei dizer porque escolhi trabalhar com o personagem do Nosferato. Nem me lembro porque cheguei à conclusão de que o Torquato seria o Nosferato. O Torquato era muito cabeludo e o Nosferatu, pelo menos o do Murnau, era um vampiro careca. Não estava procurando atores, procurava uma celebridade. Estava procurando uma pessoa de peso para ser o protagonista do filme. Essa escolha recaiu sobre o Torquato Neto. Me lembro que fiz o convite na redação da Última Hora, na rua Gomes Freire, já na época da coluna Geléia Geral. Quando cheguei lá, o Torquato já foi me botando numa espécie de tribunal que tinha na Última Hora. Eles apresentavam um personagem e cinco pessoas davam uma nota. Nesse dia, quem estava sendo julgado era o Zé Trindade. A minha nota só poderia ser dez. Eu já desejava fazer um filme estrelado pelo Zé Trindade, que se chamaria Chuva de Brotos. Depois desse negócio todo, timidamente convidei o Torquato para fazer o papel do vampiro e ele aceitou na hora.
Logo em seguida, convidei o colunista Daniel Más para interpretar o príncipe que mata o Nosferato no início do filme. Já conhecia o Daniel Más, por causa do Hélio. O Más era um jornalista muito ferino e tinha uma coluna social na Última Hora. Depois trabalhei muitos anos com ele, nas revistas Vogue e Status. Eu já era amigo da Scarlet Moon – que também era jornalista – e a convidei para trabalhar no filme.
Nosferato no Brasil era um longa-metragem e foi meu primeiro filme com algum argumento. Ao todo, contando com o Amor & Tara – trailer de um filme pornô que jamais existiu – o filme tinha uma hora. Amor & Tara era estrelado por duas meninas: a Helena e a Laura Maria, que já tinha feito um filme do Zelito Viana chamado Minha Namorada. Conheci a Laura através da Cristiny, que era sua prima. Eu era muito a fim da Cristiny. Achava ela muito inteligente, mas devia paquerá-la com uma certa timidez. No depoimento da Cristiny para A Marca do Terrir, ela conta que, na época do Super 8, ainda era virgem. Só que não podia falar, porque pegaria mal.
Andei fazendo umas pesquisas e constatei que as filmagens do Nosferato levaram em torno de 10 dias e aconteceram em outubro de 1971. O que diferenciava a nossa produção, inclusive dos filmes da Belair, é que ela era realmente amadora. Não tinha um plano de produção definido. Eu devo ter feito filmagens seguidas apenas para o Sentença de Deus. O Torquato, por exemplo, trabalhava na Última Hora, o que era um empecilho para filmarmos direto. Me lembro que a gente filmava o Nosferato nos fins de semana. E não tinha essa coisa de hora de almoço e nem refrigerante.
A atuação do Torquato no Nosferato deu uma harmonia e uma dignidade muito grande ao filme. A primeira parte do Nosferato, em que o Torquato e o Daniel Más contracenam juntos, se passa em Budapeste, no século XIX. Ela é toda filmada em branco e preto e já nasceu com um clima de cinema clássico. Todos os planos são clichês tirados de filmes de vampiro. Esse signo do vampiro não existia no cinema brasileiro, foi uma novidade. Quem fez a capa que o Torquato usa no filme foi a Monique Mangia. E, por coincidência, a praça que aparece nessa primeira parte chama-se România.
A maioria das cenas foram filmadas em plena luz do dia. Não poderia arcar com os custos de um equipamento de iluminação, nem tinha conhecimento técnico para utilizá-lo. No caso do Nosferato, isso gerava um problema porque o vampiro jamais poderia sair de dia. O que mata o Nosferatu, inclusive no filme do Murnau, é o contato com a luz. O meu Nosferato perambula pela cidade o filme inteiro de dia. Vai a praia, bebe água de côco. Encontrei na poesia concreta do Affonso Ávila uma solução bastante inusitada. Ele tinha um poema que era assim: “onde se vê isso, veja-se aquilo”. Fiz uma cartela para o Nosferato com o seguinte aviso: “onde se vê dia, veja-se noite”. Isso virou uma grande piada no filme. Eu era fanático por poesia concreta e a acabei fazendo um trocadilho visual fantástico. Na parte colorida do Nosferato, inclui também várias capas da revista Invenção e o poema da nota de dólar, do Décio Pignatari. É um poema com o rosto do Cristo numa nota de dólar, escrito “Cri$to é a solução”. Foi outra bela sacada do Décio, muito anterior ao negócio dos evangélicos.
Quando o filme ficou pronto, fizemos a estréia numa cobertura onde a Helena morava – e de onde a expulsaram no dia seguinte à exibição. Era a casa do jornalista Tato Taborda, na Lagoa. A Martha Flaksman – uma das vítimas do Torquato no filme – e o Nelsinho Motta também moravam nessa cobertura. Existia uma expectativa em torno do filme que estávamos fazendo, então pedimos para fazer uma projeção lá. Acontece que essa sessão foi anunciada nas colunas do Torquato e do Daniel Más. O resultado é que foram quase duzentas pessoas à sessão. Não esperávamos que fosse tanta gente. A cobertura era bastante espaçosa, mas o grande número de convidados gerou um caos. Ao mesmo tempo, os donos da casa não puderam reclamar porque, entre outros, compareceram a estréia de Nosferato no Brasil, além dos ilustres atores do filme, Lygia Clark, Jairzinho, Paulo César, Antônio Carlos Fontoura, Ana Maria Magalhães, Paulo Cezar Saraceni, Capinan, Pink Wainer, Vergara, Waly, Rubens Gerchman e boa parte do chamado beautiful people carioca. Foi um arraso.
O filme causou um impacto danado. Junto com o Nosferato, passei o curta Onde Freud não explica, o único dos meus Super 8 que não é encenado e sim um “documentário”. Eu estava com o Zé Português, filmando na praia de Copacabana, e dois garotos vieram me encher o saco, pedindo para que os filmasse. Como eu tinha dezoito anos, era um adolescente, praticamente tinha aversão à criança. Não queria filmar de jeito nenhum. Então eles falaram: “Filma a gente tocando punheta” e começaram a se masturbar em pleno no calçadão da Av. Atlântica, em frente ao Forte do Leme. Obviamente, não ia perder uma cena dessas. Onde Freud não explica virou um dos filmes meus mais polêmicos e mais cults. Inclusive, na resenha que o Torquato fez da sessão na casa do Taborda, ele cita uma pergunta que o Saraceni teria feito para a Ana Maria Magalhães, que estava grávida – “Queres que teu filho seja assim?”.
No dia seguinte à estréia do Nosferato, me tornei o “Rei do Super 8” – os meus filmes botaram o Super 8 na rua. O Óscar Ramos tinha criado uma cartela que transformava o 8, de Super 8, no símbolo do infinito. Meu primo Amarílio também fez uma cartela de apresentação com o nome da série – Quotidianas Kodaks. Os filmes tinham um mínimo de acabamento. Outra coisa inusitada, que depois cheguei a ver em filmes underground americanos, mas que, no Rio, era uma novidade, é que eu projetava os filmes ao lado de duas vitrolas e fazia a trilha na hora – ia alternado de um disco para o outro. Era foda porque, às vezes, as músicas atrasavam um pouco e eu era obrigado a dar uma porradinha na agulha, para a coisa sincronizar. Em outros momentos, a música acabava mais cedo… Aos poucos, essas trilhas foram se depurando, mas, basicamente, o essencial já tinha sido apresentado nessa primeira sessão.
Outro dado também que custei a aceitar é que as pessoas achavam graça dos filmes. Embora algumas cenas fossem aterrorizantes, a reação da platéia era mais para o riso que para o medo. Foi por isso que botei o nome na antologia de A Marca do Terrir. Não tinha feito de maneira nenhuma para ser engraçado, mas riam muito do Ricardo Horta e do Zé Português. Nas cenas do Torquato na praia, o pessoal caía na gargalhada. Quer dizer, de fato, algumas situações eram hilárias. Guardo até hoje alguns cadernos com anotações de planos que eu queria filmar. Teve um dia, durante as filmagens, que quase que a gente é preso. Estávamos filmando sem autorização, em um cemitério de automóveis do Detran. Não se podia filmar as placas dos carros apreendidos – esse cemitério era atrás da Última Hora, na rua do Lavradio. O Torquato se identificou como jornalista, houve um impasse, e a gente prometeu que não filmaria mais. Como era uma câmera Super 8, um vampiro e uma menina de biquíni, a polícia acabou achando a situação meio desprezível e liberou a gente. Na época, para explicar a cena que ficou interrompida, usei duas cartelas – “A polícia chegou, prendeu todos” e “Outro lugar”, e a cena continuava em Copacabana.
O Nosferato teve uma reprise, quinze dias depois, na casa da Lygia Clark na rua Prado Júnior, esquina com a av. Atlântica. Já era um atestado de qualidade. Foi uma sessão menor, porém mais cult. Compareceram o Antônio Dias, o Vergara, o Gerchman, que já tinham ido na primeira sessão, e ainda o Leon Hirszman, o Macalé, o Luiz Otávio Pimentel, o Eduardo Viveiros e o Gilberto Santeiro, entre outros. O Super 8 começou a passar em uma porção de lugar. Passamos no cineclube da PUC e na Escola de Desenho Industrial. Também fiz uma viagem a São Paulo, para que os irmãos Campos e o Décio Pignatari avalizassem o filme. Como eu vi que a coisa tinha dado certo, parti para outros filmes.
O Nosferato fez um grande sucesso, não só pelas qualidades estéticas e artísticas do filme, mas porque ele foi muito badalado na Última Hora e no Correio das Manhã. O Torquato passou a falar quase diariamente das minhas produções. E o Daniel também. O cartaz do Nosferato no Brasil, criado pela dupla Óscar Ramos e Luciano Figueiredo, foi publicado na coluna do Más. Era uma maneira inteligente e inovadora, acho que até precursora, de divulgar um filme. Porque é normal sair anúncio dos filmes que estão em cartaz nas páginas dos jornais, mas, no caso do Nosferato, não era uma publicidade de venda do filme, era simplesmente o cartaz de uma fita que não estava em cartaz.
MIXAGEM ALTA NÃO SALVA BURRICE
Esses filmes Super 8, ao passo que desagradaram o pessoal do Cinema Novo, agradaram muito a turma mais de vanguarda. Desde o início da coluna Geléia Geral que o Torquato vinha detonando o Cinema Novo. Ele tinha feito uma entrevista com o Antônio Calmon para o suplemento Plug, do Correio da Manhã, onde o Calmon não só defendia a Embrafilme, como falava que era possível trabalhar numa linha não oposta a ditadura. Aquilo foi uma coisa que virou polêmica porque era inconcebível, naquela época, se ter alguma manifestação artística compatível com a ditadura.
No início de 1972, logo depois das primeiras sessões que fiz do Nosferato, publiquei um artigo na Geléia Geral chamado Mixagem alta não salva burrice. Nesse artigo usei a mesma estratégia do Rogério Sganzerla e do Torquato – atacar o Cinema Novo, cujos filmes me davam sono. Nunca poderia imaginar que o meu artigo teria tamanha repercussão. Logo em seguida, veio a resposta através da coluna Idéias, que era publicada no jornal Domingo Ilustrado e editada pela Martha Alencar, mulher do Hugo Carvana. O Calmon, o Cacá Diegues e o Gustavo Dahl usavam uma página inteira do jornal para me pichar – até de Omar Cardoso (um astrólogo famoso da época) eu fui chamado. E o ex-senador Arthur da Távola também foi convocado para dizer que eu era careta. Uma loucura total, porque eu era tudo, menos careta. Eu tinha apenas 19 anos.
Eu era um garoto que fazia filmes em Super 8, não era para os caras terem me levado tão a sério. Mas eles vieram com tudo. O Cacá escreveu as maiores asneiras de toda a sua vida. Disse que eu era o homem que falava javanês porque filmava em Super 8! Foi engraçado porque o Cacá acabou caindo na armadilha que eu havia preparado para ele no meu texto – onde citava uma frase do Décio Pignatari: “Com Os Herdeiros, o PSD ganha o seu Visconti” – e terminou o artigo dele assinando: “Luchino do Amaral Peixoto, também conhecido por Carlos Diegues, para enganar otários como você”. Fala sério, Alzirão! E o Calmon, coitado, mais uma vez meteu os pés pelas mãos. Ele me condenava por fazer filme de vampiro, dizendo que aquilo não era cinema brasileiro, só que trinta anos depois fez aquela novela Vamp para a Globo. Além disso, o Calmon também caiu de pau no Sganzerla e no Bressane. Disse que a Belair era marca de carro, não uma produtora de cinema. Eu posso ter sido politicamente incorreto, mas eles foram muito mais artisticamente incorretos do que eu. E o fato de eu ter falado que os concretos tinham adorado o meu filme, virou um problema. Segundo Calmon, se eu achava os concretos o máximo, era porque eu era o mínimo...
Quando fiz uma sessão do Chuva de Brotos, na casa de Décio Pignatari, para o Fernando Henrique Cardoso, em 1976, perguntei a ele por que os poetas concretos eram tão marginalizados pela esquerda. O Fernando Henrique, como bom político, se esquivou da pergunta, mas a dona Ruth Cardoso respondeu que era porque eles tinham traduzido o Ezra Pound. Os poetas concretos sempre tiveram bastante prestígio intelectual em São Paulo, mas só ganharam mais espaço no Rio ao apoiar a Tropicália. Aqui havia uma disputa ideológica entre eles e o Ferreira Gullar. Acho que os concretos apoiaram o nosso grupo porque nos aproximamos deles. Criou-se uma ligação muito forte.
E, não sei como falar isso, mas acho que umas das coisas que mais deve ter chamado a atenção do Haroldo de Campos para a minha produção em Super 8 foram as mulheres peladas... De repente, tinham chegado uns filmes de uma conexão artística muito ligada a ele, feitos por um jovem que era fã de poesia concreta. Só que o Super 8 tinha menina de 18 anos lendo Pound com os peitos de fora! Aposto que o Haroldo nunca imaginou que o livro do Ezra Pound fosse terminar ali!
Não sei exatamente em que período, mas lembro que fui convidado, junto com o Torquato e o Waly, para uma reunião na casa do Mário Carneiro – o Paulo Cezar Saraceni e o Arnaldo Jabor também estavam presentes – onde nos interrogaram sobre qual era a nossa. Isso muito antes do meu artigo na Geléia Geral e da exibição do Nosferato, foi no início dos ataques do Torquato ao Cinema Novo, na coluna. Na mesma época em que o Torquato começou a fazer a Navilouca.
Na época, esse tipo de reunião era comum, porque tudo que se fazia era escondido. O nosso negócio era menos visado pela repressão, porque a gente estava no underground mesmo. A gente fazia o nosso negócio escondido dos que estavam escondidos. E esse pessoal de esquerda queria alinhar a gente. O próprio Haroldo de Campos, na entrevista para A Marca do Terrir, falou muito bem sobre isso – o pessoal da esquerda patrulhava as vanguardas muito mais que a própria ditadura.
Não acontecia nada, então você era obrigado a produzir tudo. Se você quisesse curtir alguma coisa, você mesmo tinha que fazer. Aliás, essa era a proposta do Jerry Rubin no livro Do it!, um manifesto da contracultura. Você trabalhava para si próprio, sua produção não tinha colocação no mercado. Nem tinha mercado. Nos anos 70, os verdadeiros exilados foram os ficaram aqui.
SENTENÇA DE DEUS
Como eu tinha essa veneração pelo José Mojica Marins, resolvi chamar o meu segundo longa de Sentença de Deus – que era o título de um primeiro filme do Mojica que não chegou a ser concluído. Não sei porque me fixei nesse título. Acho que era para usar aquela música do Lupicínio Rodrigues, chamada Meu Pecado, que o Moreira da Silva canta. Na versão original do Sentença, também homenageava o Mojica filmando a capa da primeira revista em quadrinhos do Zé do Caixão.
Ao meu ver, Sentença de Deus é o meu filme Super 8 mais bem produzido e melhor fotografado. O filme se passa praticamente todo no castelo do Ivan Barcelos, no Humaitá. Também fiz um tour por quase todos os cemitérios do Rio – filmei no São João Batista e nos cemitérios de Jacarepaguá e Inhaúma. O cemitério de Inhaúma era sinistro, porque tinha um número absurdo de ossadas ao ar livre. Eram ossários coletivos. No Sentença de Deus, tanto o Zé Português, quanto o Ricardo Horta e a própria Ciça Afonso Pena, evoluíram muito como atores. A performance da Cristiny Nazareth, ao som de Pra Frente Brasil, também é um dos pontos altos do filme.
O Ricardo era filho de uma cantora lírica. O padrasto dele tinha sido embaixador na Tcheco-Eslováquia e tinha uns objetos meio estranhos em casa – como aquela bola de ferro que é presa no pé do Zé Português. Eu comprei aquele “caixão de anjo” que o Ricardo carrega ao longo de todo o filme em Inhaúma. Não sei o que me deu na cabeça, porque era um caixão de bebê, uma coisa macabra. Foi um problema danado para guardar o “caixão de anjo” na casa da minha mãe. Ela acabou jogando fora. Numa das cenas, que rodei na Gruta da Imprensa, o Ricardo mata uma galinha e joga o sangue no Zé Português. Hoje em dia, é óbvio que aquilo deve ter saído daquele primeiro filme do Glauber, o Barravento. Estas imagens até hoje impressionam muito a platéia. Originalmente, eu usava aquela música do Terra em transe, a mesma que depois o Rogério aproveitou no Bandido, como trilha para esta cena.
O Sentença de Deus é um dos filmes mais de terror que eu já fiz. Tem até uma cena de necrofilia com a Helena Lustosa. O Zé Português, depois de possuí-la em pleno velório, se castra, numa das cenas mais fortes do filme. E tem a famosa cena em que o Ricardo apaga um charuto no Zé Português – na época, essa cena adquiria um contexto de denúncia a tortura. O Sentença de Deus foi exibido pela primeira vez na casa da Wanda e do Paulinho Klabin, no Largo do Boticário. Foi uma estréia hollywoodiana. Entre os presentes estavam Scarler Moon, Torquato, Jorge Mautner, Júlio Medaglia, Duda Cavalcanti, Waly Solamão, Pink Wainer, Antônio Carlos Fountoura, Paulo Cezar Saraceni e Beki Klabin. O programa foi duplo, porque teve ainda uma reprise do Nosferato no Brasil. O cartaz do Sentença de Deus foi feito pelo Hélio Oiticica – aliás, este foi o único cartaz que o Hélio fez para cinema.
A MÚMIA VOLTA A ATACAR
Um certo dia, o Eduardo Viveiros de Castro, que já estudava antropologia no Museu Nacional, me veio com a seguinte sugestão: “Acho que você deveria fazer um filme de múmia. É um personagem que será só seu. Ninguém vai querer fazer um filme de múmia no Brasil”. De fato, era uma coisa bem sarcástica. O Viveiros sacou que a múmia era o meu personagem. A proposta era das mais avançadas. A gente queria fazer o filme todo em um só dia, em virtude da dificuldade que era preparar a múmia. Felizmente, consegui que o Óscar Ramos – em sua estréia como meu diretor de arte – fizesse a múmia. O Zé Português foi a minha primeira múmia e foi todo enrolado com bandagens adquiridas na farmácia. Comprei uma porrada de negativo e fui filmar na casa do Dr. Afonso Pena Júnior, que era avô da Ciça.
Essa casa tinha várias locações e a gente pode filmar muitas seqüências. Ao lado da casa do Dr. Afonso, no alto da rua Pereira da Silva, em Laranjeiras, já havia uma favela. Como A múmia volta a atacar tinha várias cenas de nudez e lesbianismo, os favelados começaram a se pendurar nos muros da casa para assistir às filmagens. Virou o maior tumulto e não deu para continuar. Este filme marca a estréia da Vilma Dias, que depois ficou conhecida como “Vilma da Banana” (por causa da abertura do programa humorístico Planeta dos Homens). Ela participa da seqüência mais clássica do filme. A Vilma era uma garota linda. Na ocasião, ela namorava a Gal Costa e era super a fim da Helena. Isso, na minha cabeça, era um problema enorme. Hoje em dia, eu diria: “Meu amor, vamos lá logo para casa”.
Nesta produção, aconteceu um outro fato sinistro. O Torquato fazia o papel de um padre. Depois, inclusive, transformei a participação dele em um trailer que chamei de O padre e as moças. Nós chegamos a gravar uma cena do Torquato, vestido de padre, conversando com o Óscar e o Jorge Salomão, os dois usando turbantes egípcios. Acontece que, nesse dia, o Torquato não queria filmar. Uma coisa muito estranha. As filmagens também eram festas – para mim que estava filmando menos, mas para o pessoal que ficava atrás, esperando para ser filmado, aquilo era uma loucura. Ficava todo mundo batendo papo, paquerando, ouvindo música, fumando baseado. O Torquato, que tinha sido o Nosferato, agora estava numa nova produção e eu achava inconcebível que ele não quisesse participar. Acabou que na principal cena que filmei com o Torquato, a máquina rodou o filme, mas o negativo inexplicavelmente não imprimiu nada. Era a seqüência da múmia estrangulando o padre. Depois eu soube que o Torquato não queria filmar porque, na véspera, tinha tentado se matar.
A múmia volta a atacar foi todo filmado com uma máquina Canon que eu havia comprado do Neville d’Almeida. O Neville, sempre que voltava de Londres, trazia equipamentos fotográficos para vender. Comprei algumas máquinas Pentax e de Super 8 com ele, que também faz uma participação especial no filme. Não sei por que, relaciono muito cinema com automóvel. Quando eu ando de carro, sinto como se um filme estivesse passando na minha frente. É um grande travelling. Desde a época do Super 8 que vasculho o Rio atrás de locações. Estes meus filmes foram visionários, futuristas e vanguardistas em todos os sentidos. Até na escolha das locações. Depois das filmagens na casa dos Afonso Pena, a gente rodou várias cenas num casarão abandonado em Santa Teresa que, hoje em dia, foi transformado no centro cultural Casa das Ruínas. Na época, realmente, a casa estava em ruínas. Infelizmente, no dia, a múmia demorou tanto tempo para ser preparada que luz caiu e as filmagens não renderam.
Em seguida, a gente quase foi preso novamente, filmando com a múmia na estrada de ferro que vai para o Cristo Redentor – onde tem um aqueduto. Depois usei esse mesmo túnel de pedra no Lago Maldito e no Segredo da Múmia. A gente estava filmando sem autorização e foi a própria múmia que nos liberou. Era uma situação inusitada... Quando a patrulhinha sacou que a gente estava fazendo um filme de múmia em Super 8, desistiu de nos levar em cana.
Este meu primeiro filme de múmia ficou incompleto devido o alto custo das bandagens. A múmia volta a atacar tem o primeiro plano que filmei com o Felipe Falcão – que também foi meu colega no São Fernando. O Felipe dirige aquele Cadillac que aparece comigo na foto que saiu na Navilouca. Esse carro era de um amigo do meu pai, o Comandante Pedro Mello, que, na ocasião, me deu o Cadillac. Achei um negócio da China, principalmente para filmar. Infelizmente, o Cadillac se transformou num problema horroroso porque enguiçava à torto e à direito. Era um Cadillac de 1949 – e estávamos em 1972. Toda hora tinha que rebocar e eu não tinha dinheiro. O meu carro era um fusca, não tinha condições para sustentar um “rabo de peixe”. Acabei devolvendo o Cadillac para o dono.
Na época, também, a Christiny Nazareth foi para Nova York e ficou hospedada na casa do Hélio Oiticica. Aproveitei e pedi ao Hélio que fizesse um short com a Christiny para eu usar como complemento de A múmia volta a atacar. O Hélio se empenhou bastante na produção – que ele chamou de Agripina é Roma Manhattan. Este Super 8 foi todo filmado em Wall Street e contou com as participações do Antônio Dias e do travesti Maria Montez. Como a minha primeira versão da Múmia não foi concluída, o curta do Oiticica nunca foi agregado ao filme.
EXPOSIÇÃO 72
Em 1972, o Carlos Vergara fez uma grande retrospectiva – chamada Exposição 72 – que ocupou todo o terceiro andar do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Muito generosamente, o Vergara abriu um espaço dentro da própria exposição para trabalhos de amigos e artistas que estavam fora do circuito e não tinham como mostrar suas obras. O Bina Fonyat, que fazia um trabalho fotográfico sobre o carnaval junto com o próprio Vergara, teve uma grande participação. Também participavam da Exposição 72, entre outros, Hélio Oiticica, Waly Salomão, Eduardo Viveiros de Castro, Chacal e eu. O Waly expôs um texto. O Hélio, que já estava morando em Nova York, mandou um labirinto com telas de nylon. Participei com um stand chamado Quotidianas Kodaks, onde exibi três fotos coloridas com cenas dos meus filmes. O Vergara também construiu um pequeno cinema dentro do salão do MAM, onde eram exibidos filmes de vários realizadores. Segundo palavras do próprio Vergara, a minha produção era “muito forte e devassa” e os meus filmes acabaram merecendo um destaque na programação. Mandei até fazer um convite, e apresentei no MAM os programas completos do Nosferato no Brasil e do Sentença de Deus, mais o que tinha filmado para A Múmia volta a atacar (que na época se chamava Dominó Negro) e o curta After Midnigth – um filme todo de table-top, realizado em parceria com o Vergara e o Viveiros.
A sessão dos meus filmes Super 8 no Museu foi um sucesso. Saiu uma matéria de página inteira no Correio da Manhã, com textos do Haroldo de Campos, do Torquato Neto e do Hélio Oiticica sobre o meu trabalho. O Haroldo de Campos escreveu um artigo chamado Ivampirismo - Cinema em Pânico, muito importante na minha trajetória. Aproveitei a ocasião para soltar mais um texto em resposta as bobagens que saíram publicadas no jornal Domingo Ilustrado. Isso agitou a sessão do MAM e deu uma visibilidade maior ao cineminha do Vergara. Não deu outra, a direção do MAM acabou sendo informada de que estavam passando filmes de mulher nua, de garoto tocando punheta, de vampiro, de galinha sendo morta, de não sei o quê, com cara se capando, cenas de lesbianismo… O nosso querido embaixador Walther Moreira Salles, que na época era o presidente do Museu, entrou em contato com à Censura Federal e proibiu as exibições.
Criou-se um impasse e o poeta Chacal chegou a cuspir no chão da sala do Moreira Salles. O próprio Vergara, contrariado, pensou em encerrar o evento, mas ficou um dilema porque qualquer reação à censura do MAM poderia atrair a atenção dos militares. A solução foi sair de fininho. Em 1972 era o General Médici e não havia a menor possibilidade de diálogo. Me lembro que, depois dessa confusão, guardei os filmes fora da minha casa. Tudo podia acontecer. Se os filmes caíssem nas mãos da censura, seguramente não existiriam mais.
Também foi em 1972 que houve o suicídio do Torquato Neto. Estivemos juntos na noite anterior, durante uma sessão do Copacabana, Mon Amour na Cinemateca do MAM. No dia seguinte, Torquato completaria 28 anos – ele se matou durante a madrugada. A morte era um signo que ainda não existia na minha vida. O capitão da Navilouca tinha abandonado o barco. Ficamos um pouco sem rumo. Quando ele parou de publicar a coluna, já não consegui entender. Quando a gente acordava, a primeira coisa que fazia era comprar A Última Hora para ler a Geléia Geral. A morte dele não chegou a cortar a onda do Super 8, porque aquilo não tinha volta, mas, de uma certa maneira, enfraqueceu o movimento. Perdemos o nosso maior divulgador. Tenho muitas saudades do Torquato e do tempo em que, sem ketchup, não se fazia cinema.
CHUVA DE BROTOS
Em 1974, fiz meu último longa em Super 8, chamado Chuva de Brotos. É aquele filme em que o Ricardo Horta sonha com umas meninas peladas correndo atrás dele na praia. Infelizmente, não fui feliz na captação das imagens para esta nova produção, porque o fotômetro da máquina começou a dar defeito. Filmei quase todas as cenas de maneira concentrada e só depois descobri o defeito. Mas não era um problema uniforme. Prejudicou apenas alguns trechos. A seqüência do strip-poker, em branco e preto, por exemplo, ficou muito legal. O Chuva de Brotos acabou virando um filme de sobras. Ele é trash mesmo.
Para completar o filme, aproveitei vários pedaços que haviam sobrado de O conde gostou da coisa e algumas partes do Piratas do sexo que ainda estavam comigo. O conde gostou da coisa foi o primeiro filme com história que tentei fazer, mas acabei perdendo ele quase inteiro porque ficou muito escuro e fora de foco. Era uma história que lembrava o Fausto. No filme, meu primo Amarílio interpreta o Conde. Ele está tomando banho e o diabo aparece com uma porção de notas de dólar e uma menina de biquíni. Meu outro primo, o Ângelo Gastal, faz o papel do anjo da guarda que tenta livrar o conde da tentação. O diabo era um outro amigo nosso, que era da turma do Arpoador. Esse cara pirou, coitado. Foi internado achando que era Jesus Cristo. Curiosamente, no meu filme, caracterizei ele como demônio.
No período que vai de 1970 a 1975 realizei cerca de quarenta títulos em Super 8 – entre longas, médias, curtas, trailers, anúncios e documentários. Por isso não foi difícil encontrar materiais para terminar o Chuva de Brotos. Mas a verdade é que eu já estava perdendo o interesse pelo Super 8. No ano seguinte, produzi ainda mais dois filmes. Um todo filmado de televisão, chamado Carnaval no fogo – usei muitas partes deste Super 8 nos curtas À meia-noite com Glauber e Hi-Fi e no longa A Marca do Terrir – e um outro, na verdade, uma antologia de filmes de sacanagem escandinavos que batizei de Ano Zero. Ao final desta antologia, incluí o plano de uma moça se masturbando com uma garrafa de Coca-Cola, que eu próprio filmei e fotografei. O Hélio Oiticica achava esta imagem o máximo e pendurou os stills na casa dele, em Nova York – onde os meus filmes chegaram a ser projetados para Quentin Fiore.
NAVILOUCA – O ALMANAQUE DOS AQUALOUCOS
O Torquato Neto veio com a idéia de fazer a Navilouca em 1971. Ele convidou o Waly Salomão para ser o co-editor e me chamou para ser o fotógrafo. Foi outra coisa inesperada, porque eu não tinha experiência quase nenhuma. Já me garantia na fotografia, mas não era profissional, tinha apenas começado a me exercitar. A Navilouca teve grande importância porque reuniu os principais expoentes da vanguarda da época. Segundo o Décio Pignatari, foi a primeira publicação pop-construtivista feita no Brasil. Foi por causa da Navilouca que me aproximei do Luciano Figueiredo e do Óscar Ramos. O Luciano já morava na casa do Óscar, no Cosme Velho, onde foram feitas todas as reuniões editoriais e a programação visual da revista.
Todas as matérias são ilustradas com fotografias. Só não fiz as fotos do Chacal, do Steve Berg, do Caetano Veloso (que não estava no Brasil) e do próprio Torquato. As fotos da Lygia Clark e a do Hélio Oiticica foram feitas pelo Eduardo Clark, filho da Lygia. O resto das fotos todas, incluindo as da capa, eu que fiz. No final, tentava até me esquivar de tirar essas fotos, porque já tinha feito demais. A editora da Navilouca me pagou um viagem a São Paulo, para fotografar os irmãos Campos e o Décio Pignatari. Essa foto ficou famosa porque foi um remake, feito vinte anos depois, de uma foto importante que havia saído na revista Noigandres. A Ana Araújo, mulher do Torquato, sempre disse, em tom de brincadeira, que a Navilouca era um álbum de figurinhas do Ivan Cardoso.
Como o Torquato convenceu o Lúcio Abreu, dono da Gernasa, a editar a Navilouca é que eu não sei. São coisas misteriosas. Depois o projeto da revista ficou encalhado por um longo período. O Lúcio, que era amigo do Torquato dos tempos do Partidão, foi atropelado e isso degringolou o negócio. O projeto da revista só foi retomado após a morte do Torquato e a Navilouca foi lançada em julho de 1974 – com recursos da Polygram, conseguidos graças a influência do Caetano Veloso.
Impulsionado pela repercussão da Navilouca e da série Quotidianas Kodaks, minha carreira como fotógrafo foi meteórica. Fui do zero ao zênite, num piscar de olhos. Havia me tornado um artista da moda. Logo em seguida a Navilouca, fiz fotos que foram capa de alguns discos importantes: o LP Fatal, álbum duplo ao vivo lançado pela Gal Costa; o primeiro disco do Jorge Mautner; e o Araçá Azul, do Caetano Veloso – que considero um dos meus melhores trabalhos para capa de disco. Também fiz as fotos de capa para o primeiro livro do Waly Salomão (o Me segura que eu vou dar um troço); para a antologia póstuma do Torquato, chamada O últimos dias de Paupéria; e para o livro Xadrez de Estrelas, do Haroldo de Campos.
Além das cinqüenta e quatro fotos minhas que ilustram praticamente toda Navilouca, o Torquato ainda incluiu, na contracapa da revista, a reprodução de um trabalho de artes plásticas que eu fazia. Na época, eu enchia uns pratos com tinta óleo vermelha e esperava secar. Quando a tinta secava, formava uma espécie de nata na superfície. Eu pintava o prato todo de preto e, depois, passava uma gilete para deixar a tinta vermelha escorrer. Era uma coisa que remetia, de certa maneira, ao filme do Buñuel. Apesar de ser uma coisa ligada as artes plásticas, o prato que aparece na contracapa da Navilouca foi feito especialmente para a abertura do Nosferato do Brasil. O Hélio achou aquilo o máximo. Foi uma coisa que também foi respaldada pelos poetas concretos.
A Navilouca também está repleta de anúncios e textos que promovem os meus filmes Super 8. Tem dois textos do Oiticica sobre o Nosferato do Brasil e os cartazes do Nosferato e do Sentença de Deus. Na minha parte tem também duas páginas dedicada aos Ivamps. A revista foi feita sem a menor preocupação com custo. Cada um fazia a sua matéria do tamanho que queria. Na Navilouca, as coisas eram feitas, ao mesmo tempo, com muito e nenhum critério. Para você entrar na revista tinha que ser amigo do Torquato ou do Waly.
Tirei todas as fotos de graça, nem os filmes me pagaram. Aliás, ninguém recebeu nada. Esse era um problema que me assombrou durante muitos anos. Até O Segredo da Múmia não ganhei dinheiro com cinema. Quer dizer, depois da fase do Super 8, inventaram uma lei de obrigatoriedade para o curta-metragem e acabei ganhando algum dinheiro. Mas o ato de filmar, para mim, foi sempre por amor ao cinema, por amor à arte. Nos Super 8 então, todo mundo trabalhava de graça mesmo. As pessoas se sentiam participantes daquele movimento e colaboravam para que aquilo desse certo.
ALÔ, ALÔ CINÉDIA
Em 1973, Júlio Bressane tinha voltado ao Brasil. Ele me chamou na casa do seu pai, na rua Aperana, no Leblon, e me convidou para ser o diretor de produção de O Rei do Baralho. Segundo suas próprias palavras, as minhas tarefas seriam bem simples e a mais importante era pegar os atores principais – o enigmático Grande Otelo e a apetitosa vedete Marta Anderson – e levá-los, junto com fotógrafo Renato Laclete, para os estúdios da Cinédia, em Jacarepaguá. Além disso, eu teria que alugar o equipamento do Roland Henze, comprar o negativo Ferrânia 35 mm e produzir o almoço (frango assado com batatas fritas e refrigerantes).
Em seguida, Bressane me deu uma pequena lista de itens necessários à produção. Eu precisava arranjar um summer jacket e um pequeno relógio de bolso para o Grande Otelo, um smoking para o Wilson Grey e alugar um Cadillac preto, “rabo de peixe”, por uma noite. Como eu já tinha feito assistência de direção do Sem Essa, Aranha e fazia a produção dos meus filmes Super 8, não tive dificuldade em executar essas tarefas.
Entusiasmado por voltar a trabalhar profissionalmente em cinema, combinei com o Júlio de fazer também as fotos de still e ainda arrumei forças para realizar o meu primeiro making of sobre o Bressane – o visionário Alô, Alô Cinédia. Registrei, com a minha pequena Super 8, tudo o que acontecia no set e nos bastidores – para o desespero da maliciosa vedete Marta Anderson, que me via apenas como mais um voyer tentando flagrar suas deliciosas formas. Documentei uma parte das filmagens usando negativo colorido, e esse material, inédito, se tornou uma grande curiosidade, uma vez que O Rei do Baralho é branco e preto.
Já tinha documentado as filmagens do longa-metragem Sururucucu Catiripapo, do Neville d’Almeida. Mas essa produção era muito mais underground e menos articulada que O Rei do Baralho. Participavam do filme os atores Paulo Vilaça, Ana Maria Miranda, Vera Barreto Leite, Lígia Durand e o demencial Sandro Solviati. Esse Super 8 se chamou Sururucucu de Almeida e acabou se tornando um registro valioso porque são as únicas imagens que restaram do filme. Os negativos desta obra marginal do Neville misteriosamente desapareceram, antes mesmo que o filme tivesse uma cópia.
À partir de O Rei do Baralho, comecei a fazer esses making of de uma maneira mais profissional. Por ter uma vontade enorme de filmar, fiz esse negócio meio inconscientemente. Naquela época, inclusive, chamava esses documentários de “filme de filmagem”. Por parte do Júlio, também, tive uma aceitação sem restrições – ele poderia não querer que outra pessoa filmasse o seu filme. Uma coisa bacana do Alô, Alô Cinédia é que o Júlio, por ser o diretor de O Rei do Baralho, é também o principal protagonista do Super 8.
E, como se não bastasse, foi nesse gigantesco esforço de reportagem que me tornei um amigo inseparável do inesquecível Wilson Grey. Esse genial ator, logo depois, viria a atuar em quase todas as minhas produções seguintes. O Grey, sempre às voltas com as intermináveis filmagens de Se Segura, Malandro, de Hugo Carvana, nos salões de sinuca da Lapa, acabava atrasando a nossa produção na Taquara – o que deixava o Julinho à beira de um ataque de nervos.
O fato mais pitoresco dessa inusitada jornada, diz respeito a revelação dos negativos. O Júlio ainda tinha um débito na Líder, referente a suas produções anteriores, e me orientou, expressamente, que desse entrada no laboratório sob o codinome de J. B. de Azevedo – na verdade, uma abreviação do nome completo do diretor. Como jamais tinha posto os meus pés no velho casarão da rua Álvaro Ramos, não tive a menor dificuldade para executar o serviço.
Esse filme foi muito importante para minha “deformação” cinematográfica. O Júlio Bressane tem uma organização militar de filmar que não deixou de ser um tremendo aprendizado. Não vou dizer que as filmagens do Júlio eram mais tranqüilas que as do Rogério, porque não eram, mas o Aranha era filmado em 16 mm e havia o problema dos planos-seqüência intermináveis. O filme tinha roteiro, mas o Sganzerla acabava improvisando praticamente tudo. O Rei do Baralho, embora bastante underground, tinha mais características de cinema clássico. O elenco, além do Grande Otelo, do Wilson Grey e da Marta Anderson, contava ainda com as participações do volumoso Fininho e do famoso mágico Kauê Filho. O Rei do Baralho tinha uma coisa “Classe B” que me instigava muito, era quase que um pós-chanchada. A própria Cinédia, embora na época fosse um lugar decadente, era um grande estúdio de filmagem – e o veterano big shot Adhemar Gonzaga ainda circulava por lá.
MOREIRA DA SILVA
Como já falei, meus filmes Super 8 tiveram uma ampla exibição, mas, mesmo assim, ainda era uma coisa restrita. Não poderiam jamais ser comercializados. Nem era um tipo de filme comercializável. Além disso, minha câmera Super 8 tinha dado prego. Eu também sonhava com a possibilidade de me profissionalizar como cineasta e, em 1973, fundei minha primeira produtora – que, contraditoriamente, batizei de Superoito Produções Cinematográficas. Os meus sócios eram o meu pai e o meu primo Carlos Cardoso, que me deu de presente uma Leica Flex, que uso até hoje!
Eu era realmente um fã do Moreira da Silva, por isso que o escolhi como tema do primeiro curta-metragem realizado em 35 mm. O filme foi fotografado em branco e preto pelo Renato Laclete, de quem fiquei amigo durante as filmagens de O Rei do Baralho, e montado pelo Amaury Alves, que conheci na mesma ocasião. Trabalhei praticamente com a mesma equipe e nos mesmos moldes de O Rei do Baralho. Vi que podia usar a mesma estrutura de produção para fazer o Moreira da Silva. Além disso, esteticamente, meu curta segue a mesma tradição noir de O Rei do Baralho, ambos têm uma linguagem ligada aos anos 40. O Kid Morengueira, de terno de linho branco e chapéu Panamá, não deixa de ser um personagem “Classe B”.
Estranhei muito o tamanho do equipamento e o fato de não operar a câmera. É um equipamento pesado e que necessita de tripé, não é uma câmera Super 8. O fato de ter perdido o contato direto com a câmera foi um choque muito grande, porque eu vinha de uma experiência radicalmente oposta, mas de jeito nenhum foi traumático. Pelo contrário, foi prazeroso e acrescentou – fiz a transição do Super 8 para o 35 mm. Aprendi bastante coisa acompanhando as filmagens de O Rei do Baralho e consegui me disciplinar e fazer o filme em dois dias, com cenas filmadas em várias locações. Mas dei uma grande mancada. Dada a minha rebeldia, não queria fazer um documentário tradicional. O que foi uma pena, porque acabei não gravando uma entrevista com o Moreira – um dos pontos altos do Morengueira era a sua maneira falar.
Sempre fui underground, gostei de fazer as coisas diferentes. Considerava os documentários tradicionais caretas. Na verdade, a minha estréia no cinema profissional foi com um filme musical. A coisa do videoclipe sempre me chamou atenção e, quando garoto, era fanático pelos filmes do Elvis Presley. Achava o máximo os números musicais que pontuavam as chanchadas e os “filmes B” americanos. Então realizei cinco números musicais com o Moreira da Silva cantando seus principais sucessos. Acertei no Milhar era um plano-seqüência no Pão de Açúcar. Que barbada! era um videoclipe com o Wilson Grey e o Moreira no Jóquei Clube – foi a primeira vez que trabalhei com o Grey, que imediatamente torrou o cachê nas patas dos cavalos. Filmamos ainda o Kid no alto do Morro de São Carlos, cantando Na subida do morro. E, para completar, gravamos duas músicas na gafieira Estudantina, filmadas com som direto, Pistom de gafieira (do Billy Blanco) e O Cigano (do mestre Lupicínio Rodrigues), o grande clássico do Moreira. As outras músicas são do Wilson Batista e do Geraldo Pereira.
Outra mancada que eu dei, foi que, na época, nem sabia o que era playback. Achei que era só colocar o disco na vitrola e o Moreira cantar por cima, que teria sincronismo. Mas não é assim que funciona. Alguns números musicais ficaram até com algum sincronismo, mas outros não. Se eu fosse um diretor mais experiente, saberia como resolver. Depois foi um problema grande na hora da montagem, tive que solucionar com o Amaury na moviola. Acabei perdendo dois números, que ficaram totalmente fora de sincronismo. Um deles era Amigo urso, outro grande hit do Moreira, que filmei num parque de diversões.
O Morengueira sempre me interessou muito, mas só fiquei seu amigo depois. Durante a filmagem ainda era uma relação profissional e tive que pagar dois mil cruzeiros para ele participar do curta. Ao Wilson paguei somente trezentos cruzeiros. O Moreira foi muito legal nos dois dias de filmagem que fizemos. Ele já tinha 73 anos, mas impressionava muito a sua vitalidade. Filmei num fim de semana. No sábado, a gente filmou no São Carlos e no Jóquei Club. No domingo, rodamos no Pão de Açucar, de manhã, e na gafieira, à noite. Nesse mesmo dia, de tarde, ele ainda quis ver um jogo do Flamengo, no Maracanã. Tivemos que adequar a produção a isso. No decorrer dos anos, nos tornamos grandes amigos – o Moreira, inclusive, gostava muito do meu pai e da minha família.
O Moreira foi um dos caras que denunciou e tornou pública essa coisa de comprar música. Ele chutou o pau da barraca. Muita gente tinha comprado – e continuava comprando – mas não mencionava o assunto. Ele deu uma entrevista no Pasquim contando por quanto tinha comprado cada uma das músicas. Através do intérprete, o compositor podia até ganhar menos, mas ganhava alguma coisa. Se o autor não vendesse a parceria, acabava não tocando em lugar nenhum.
O Moreira, principalmente nessa época, ficou meio marginalizado. O filme ajudou a resgatá-lo. Ele era uma pessoa de origem humilde, tinha sido até chofer de ambulância na juventude, e era um cara que, embora tirasse uma onda de malandro, nunca bebeu, nunca jogou, nunca fumou e ainda gostava de dizer que era amigo dos homens (da policia). Mas o Moreira da Silva era muito maior que tudo isso e fico feliz de ter feito a minha estréia no cinema profissional filmando com ele.
Na época, para ser exibido no cinema, na frente de um filme americano, o curta-metragem tinha que ter um certificado do INC de “boa qualidade”. O Alex Viany mandava na comissão que distribuía o tal certificado e me limou. Acho que houve uma retaliação por causa da minha briga com o Cinema Novo. Isso originou um tremendo bate boca na Cinemateca do MAM. O Neville d’Almeida, ao defender o filme, chamou o Alex de “agente duplo”, o que deixou o velho bastante enfurecido. Sem esse certificado, não tinha o que fazer com o filme. O Sérgio Santeiro, que era um militante do curta-metragem, tentou me ajudar a reverter a situação, mas, como toda a situação imposta, não teve jeito.
Cheguei a procurar o Brigadeiro Averuar Celular, um militar que haviam colocado na presidência da comissão justamente para censurar o que se passava no curta, mas o Brigadeiro ainda fez piada, dizendo que, se fosse um filme sobre o Jorge Veiga, o parecer seria diferente. O Jorge Veiga fazia um programa no rádio chamado Aviadores do Brasil e o Moreira achava o Jorge Veiga um lixo, havia uma disputa entre os dois. O fato é que não há explicação para um filme sobre o Moreira da Silva sofrer censura estética. Ele era um expoente da velha guarda, um artista do tempo do Noel Rosa e do Francisco Alves, o inventor do samba de breque – “O último dos Moicanos”, como ele mesmo gostava de dizer.
Depois caiu esse negócio do certificado e, finalmente, consegui distribuir o Moreira da Silva – que acabou sendo um dos meus filmes mais exibidos.
MUSEU GOELDI e RUÍNAS DE MURUCUTU
Logo em seguida, em 1974, veio outra dessas histórias que só acontecem comigo. Nesse período, o cinema era subordinado ao MEC (Ministério da Educação e Cultura) e ainda não existia o MinC (Ministério da Cultura). O Departamento de Assuntos Culturais do MEC abriu uma concorrência para produção de 24 documentários de curta-metragem. Sendo que vinte deveriam abordar esses temas tradicionais de documentário e quatro – que recebiam uma verba menor – teriam que retratar os Museus do Açucar, do Ouro, do Folclore e o Museu Goeldi.
O museu paraense Emílio Goeldi era uma instituição de renome internacional, voltada a documentação da região amazônica. Um dos principais destaques do museu era a presença do famoso etnólogo Eduardo Galvão como chefe do Departamento de Antropologia. Galvão era pioneiro no estudo da questão indígena e havia trabalhado com Rondon e com o famoso pesquisador alemão Curt Nimuendaju, cuja coleção era uma das coisas mais preciosas do acervo do Museu.
O Eduardo Viveiros, que era estudante de antropologia, fez uma sinopse brilhante sobre o Museu Goeldi, mas quem acabou ganhando o concurso foi o Cacá Diegues. Acontece que, na época, o professor Manuel Diegues (pai do Cacá) era o diretor-geral do DAC e acho que foi por isso que ele acabou desistindo de fazer o curta. Como eu havia ficado em segundo lugar, fui chamado para fazer o filme.
Eu era muito organizado e, com a grana do MEC, consegui fazer dois filmes – o Museu Goeldi e Ruínas de Murucutu. Tinha visto, na revista Quatro Rodas, uma reportagem turística sobre umas ruínas que me impressionaram muito. Essas ruínas eram o que havia restado da primeira missão religiosa a Amazônia e tinham sido invadidas pela selva. O Renato Laclete mais uma vez foi o fotógrafo. Alugamos uma câmera 16 mm e filmamos tudo com negativo Agfa Color, que tinha cores muito bonitas.
Por causa das nossas cabeleiras, a meninas de Belém andavam atrás da gente nas ruas. Era uma coisa sensacional – nove mulheres para cada homem! Confesso que voltei para o Rio de Janeiro exausto. Ficamos quinze dias no Pará, hospedados no próprio Museu Goeldi. Belém era uma cidade sedutora e super-exótica, um ambiente tropical, muito próximo do Equador. A comida era diferente e a população toda miscigenada. Belém era uma cidade de origem portuguesa, a arquitetura era colonial, mas haviam construções art-nouveau da época áurea da borracha. Tirei muitas fotos dos azulejos de Belém. Os mercados de peixe eram iguais aos antigos mercados da Praça XV, no Rio, que depois derrubaram. Também comprei uma porção discos de carimbó e sirimbó, que usei nas trilhas sonoras de ambos os filmes.
O Museu Goeldi, além do importante setor de antropologia, também era museu de história natural, jardim zoológico e jardim botânico – uma confusão total. Fiquei fascinado pela beleza das vitórias-régias e pelo tamanho das cobras, lagartos e jacarés em exposição. Como estava trabalhando com negativo 16 mm, pude filmar muito – filmar e fotografar. O Laclete teve uma simbiose com Belém muito maior que a minha, tanto é que eu voltei e ele ficou lá mais seis meses. O Renato se esbaldou em Belém. O Laclete era um fotógrafo prodígio, trabalhava sozinho, sem assistente. Nós levamos todo um material de iluminação para o Pará, mas, quando chegamos no museu, percebi que a coisa mais bacana seria colocar os objetos do lado de fora, no seu habitat natural. O pessoal foi muito legal com a gente e permitiu a movimentação das peças, basicamente máscaras indígenas. Como a gente tinha ido lá a mando do MEC, as portas do museu estavam abertas.
O primeiro choque que você leva com as pessoas dessa região, é que elas falam muito pausadamente. É claro que, naquela época, os ar refrigerados não funcionavam e era um problema para dormir. E todo dia, entre 3 e 4 horas da tarde, tinha uma chuva com hora marcada – estava o maior sol, o tempo fechava e caía um temporal equatorial de uns 40 minutos, depois o tempo abria de novo.
Não me lembro porque o Viveiros não pode nos acompanhar. Isso atrapalhou um pouco, porque a gente não entendia nada de antropologia. Foi graças ao Eduardo Galvão – um cara muito inteligente e boa praça – que conseguimos fazer o trabalho sem maiores problemas. Fiz uma entrevista muito longa com o Galvão, que acabou servindo de narração para os dois filmes. Ele falava muito do caboclo (a mistura do branco com o índio) e das coisas de Belém, então a gente resolveu fazer esse outro documentário que chamei de Ruínas de Murucutu.
Na apresentação do Ruínas do Murucutu, usei uma música da Cely e do Tony Campelo que começa com o telefonema de um rapaz para a Cely. O rapaz convida a Cely para ir ao cinema, mas ela se desculpa dizendo que vai estudar História do Brasil. Então começa o filme. No curta, curiosamente, as tais ruínas de Murucutu – que ficavam próximas a Belém – só aparecem no título e no primeiro minuto de filme. Belém era quase um outro pais, totalmente parado no tempo – tinha até Ford bigode andando na rua. E, tirando o centro e a parte onde os ricos moravam, a cidade era um favelão. As favelas de palafita eram uma coisa imperdível de se documentar. A gente filmou muita coisa.
Fiz esses dois curtas em 15 dias. Os negativos foram processados nos laboratórios da Revela, em São Paulo, e foi o Amaury Alves que montou os dois filmes. Entreguei o Museu Goeldi para o MEC e fiquei com o Ruínas de Murucutu.
No ano seguinte, marquei uma projeção do Museu Goeldi e do Ruínas de Murucutu para o Levy Strauss, na Cinemateca Francesa, em Paris. Aproveitei o encontro para fotografar o famoso antropólogo, que não parava de cheirar rapé. Sobre os filmes, ele comentou: “Por trás da beleza do caboclo, se vê o passado dourado dos indígenas” e recomendou ao Jean Rouch que comprasse os filmes para Museu do Homem.
UMA AVENTURA NOS MARES DO SUL
Em 1975, mais uma vez fui diretor de produção e fotógrafo de cena em mais um filme de Júlio Bressane. O Monstro Caraíba deve ser a fita mais trash do Bressane. Foi praticamente todo rodado em Búzios, em apenas dois dias. As filmagens-relâmpago de O Monstro Caraíba estão documentadas no making of intitulado História dos mares do sul – um dos meus últimos trabalhos em Super 8.
O fusca vermelho do general Bressane, pai do Júlio, viajou para o litoral fluminense apinhado de animais empalhados (cobras, lagartos, etc.) e com um esqueleto do Mundo Teatral. O Laclete e o equipamento de filmagem, alugado do Roland Henze, foram no meu carro. O ritmo alucinante das filmagens e a presença do polêmico Carlos Imperial eram as coisa mais surpreendente dessa nova produção do Bressane. O Imperial, mesmo depois de perceber que havia caído numa cilada, nunca reclamou de nada e revelou-se um verdadeiro homem de cinema. Ele não tinha lido o roteiro do filme e não sabia que, para o seu desespero, O Monstro Caraíba não contava com casting feminino. Para piorar a situação, no hotel em que estávamos hospedados, o Imperial foi obrigado a dividir o quarto com o seu fiel motorista.
Sem nenhuma lebre para abater, o Carlos Imperial não agüentou mais que 48 horas. Alegando problemas familiares, tirou o time de campo no terceiro dia. Satisfeito, Bressane deu por encerrada as filmagens. O resto do longa seria montado com stock shots filmados pelo Julinho no Oriente. Além do Imperial, o único outro ator escalado para esta mini-epopéia era o Wilson Grey, que interpretou brilhantemente vários pequenos papéis. Grey fez a primeira versão do Pe. Vieira apresentada por Bressane. Numa sequência brutal, Antônio Vieira é assassinado por suas próprias palavras.
Antes voltar ao Rio, no seu carrão dourado, Imperial foi se despedir do Julinho. Agradeceu e confirmou que arcaria com todas as despesas de finalização. Aproveitou para pedir um pequeno favor ao Bressane, caso ele fosse procurado pela imprensa, deveria dizer o seguinte: “Foi ótimo trabalhar com o Imperial. Ele é um excelente ator. Tudo correu bem, exceto um dia, quando haviam tantas garotas em torno do astro que ele nem conseguiu filmar”...
Meses depois, Carlos Imperial assistiu a projeção de O Monstro Caraíba e ficou bastante envaidecido com o seu desempenho: “Eu estou simplesmente antológico, wellesiano”.
O LAGO MALDITO
Nunca me preparei academicamente para nada. Tudo que fiz e aprendi foi intuitivamente e com muito esforço. Já tinha vivido um período muito criativo na fase dos Super 8, mas aquilo chegou a um limite. O underground no Brasil era uma fantasia – não era nem uma coisa de butique. Só existia mesmo pela tua persistência.
Quando voltei ao Brasil, depois de uma longa viagem a Europa e aos EUA, vivi novamente um período bastante criativo e multidisciplinar. Várias coisas começaram a acontecer ao mesmo tempo. Primeiro, o André Midani me contratou como fotógrafo oficial da WEA. Essa inesperada, fascinante e lucrativa experiência me colocar em contato diário com o mundo da música. Tive a possibilidade fotografar grandes estrelas como Raul Seixas, Tim Maia, Hermeto Pascoal, Tom Jobim, Belchior, Carlos Dafé, Candeia, A Cor do Som, Ney Matogrosso, As Frenéticas, Jorge Ben, Gilberto Gil, Banda Black Rio e até os internacionais Rod Stewart, Dionne Warwick e John McLaughin. Ampliei bastante o meu horizonte profissional. Na época, os executivos da gravadora se dedicavam basicamente a fabricação de sucessos musicais, então tive total liberdade para fazer as capas de disco e os materiais de divulgação.
Paralelamente, comecei a usar uma Beaulieu 16 mm que havia comprado na França. Retomei a idéia de fazer um filme de múmia, conforme o Viveiros havia me aconselhado. Iniciei a fazer as filmagens desse novo longa metragem de uma maneira que imaginava ser mais profissional. Mas acontece que o Eduardo me deu o argumento, mas não era roteirista. Por isso, essa nova experiência acabou sendo uma espécie de remake do Super 8. Este novo filme chamou-se O Lago Maldito. Esse título saiu de uma história em quadrinhos. Sou fascinado por título de filme e pelo potencial poético e comercial que eles podem ter. Comecei a fazer esse filme de múmia sem roteiro. Na verdade, sou hipnotizado por determinadas clichês do cinema de gênero. Mesmo quando filmo com roteiro, acabo criando cenas e situações só para recriar essas imagens. O filme de gênero tem uma gramática própria, desenvolvida por Hollywood. Você precisa segui-la à risca para desenvolver corretamente cada sequência.
Sempre fui um apaixonado por automobilismo. Já tinha descoberto as ruínas de Murucutu folheando uma revista Quatro Rodas. Foi da mesma forma que descobri um sítio arqueológico fantástico chamado Vila Velha, perto de Curitiba. Decidi que ia filmar essa locação, que remetia a pré-história do Brasil – outro tema que também interessava muito aos cineastas udigrudis. De fato, como fotógrafo, achava aquelas formas surpreendentes. Você ter um lugar com tantas esculturas naturais é uma coisa sem explicação. O cenário valorizaria a presença da múmia.
Também por indicação do Viveiros, convidei nosso querido amigo Zeca Parente para ser a múmia. Ele era um milionário excêntrico e completamente maluco. Ele cantava igual ao Ray Charles e também topou ser o produtor desta aventura no Sul. A Helena Lustosa não era mais minha mulher, mas participou como atriz deste primeiro momento das filmagens do Lago Maldito. E lá fui eu, filmar em Vila Velha, junto com o Zeca, a Helena e o Daniel Stambowski – um assistente que arranjei para enrolar as bandagens no corpo do Zeca. A tarefa demorava horas e sempre prejudicava as filmagens. A primeira coisa que rodei com a Beaulieu, para “O lago maldito”, foi o Zeca atacando a Helena vestida de normalista. E de Vila Velha ainda fomos filmar a múmia nas Sete Quedas do Iguaçu. Era outro lugar que tinha fixação de conhecer e filmar – por causa da sequência colorida de Shock Corridor, dirigido pelo Samuel Fuller.
Mas eu ainda não sabia que uma das piores coisas para equipamento fotográfico é andar de carro. Porque tem uma trepidação que o homem não sente, mas que é fatal para o equipamento. Um dos elementos da lente da Beaulieu soltou. Como era uma ótica francesa, e os técnicos aqui só trabalhavam com objetivas alemãs, a lente não teve conserto. Por causa desse problema, boa das parte das cenas filmadas ficaram fora de foco. Foi uma ducha de água fria. A maldição da múmia havia nos derrotado mais uma vez.
Na mesma época, o Julio Bressane me chamou para ser diretor de produção de A Agonia, filme estrelado por Grande Otelo, Maria Gladys, Joel Barcelos e Wilson Grey. Essa produção me reaproximou do fotógrafo Renato Laclete, com quem, em seguida, retomaria as filmagens de O Lago Maldito. Para este longa-metragem, Bressane alugou uma Cameflex 35 mm da Verona Filmes, do Gérson Tavares. Na ocasião, descobri que entre os equipamentos disponíveis para locação na Verona, existia uma lente Zeiss 10 mm de foco fixo que se encaixava perfeitamente na Beaulieu. Passei a alugar essa lente direto e sentei o pau.
Do ponto de vista da produção, as filmagens do Agonia foram muito monótonas. Os atores ficaram estrategicamente hospedados na casa do diretor, em Jacarepaguá, e a maioria das cenas foi realizadas naquela região. Com um pouco mais de recursos, esta produção envolveu um número maior de pessoas na equipe. Entre elas, o versátil Guará Rodrigues – que voltara da Europa – na frente e atrás das câmeras. Tudo isso diminuiu minha responsabilidade, me permitindo Ter mais tempo para tirar fotos e me dedicar a um novo making of, que chamei de Horas do Outro Mundo, documentário rodado à cores.
O clímax dessa aventura sem limite pelo sertão carioca é a cena da Gladys com a coxa ferida pelos dentes de um animal selvagem. O making of registra com exclusividade Bressane riscando à giz, nas costas de Joel, o “M” do Vampiro de Dusseldorf. Com já disse, Julinho é, disparado, o melhor interprete dos seus próprios filmes. Isso se pode ver nitidamente nos meus documentários, onde a sua presença é sempre um show à parte.
Terminada a produção de A Agonia, dirigi novamente os meus esforços para retomar, pela segunda vez, o projeto de O Lago Maldito. Através do meu pai, consegui um apoio, no valor de Cr$ 40 mil, do colecionador Gilberto Chateaubriand que me permitiu montar uma estrutura de produção que imaginava capaz de suportar o enorme desafio que era fazer um filme de múmia no Brasil.
A primeira coisa que fizemos foi providenciar uma roupa para a múmia. Era um pijama de malha adaptado, que já trazia as bandagens costuradas. Acabou o problema da múmia ir se desmanchando ao longo das filmagens. Isso economizou tempo e facilitou o andamento da produção. O Stambowsky foi promovido e passou a ser a múmia. Ele era menor e mais fraco que o Zeca, mas o Parente era surfista e fazia movimentos descabidos para uma múmia. Além de ator e produtor, ele era muito dispersivo e ficava difícil de controlá-lo… Não era fácil também passar um dia inteiro, em pleno verão, vestido de múmia, carregando mulher de um lado para o outro. Mas como o Daniel era tarado nas meninas… Dava-se um jeito!
O dinheiro do Chateaubriand rendeu. Comprei mais negativos e contratei o Renato Laclete. Uma coisa bacana é que o Laclete foi se aperfeiçoando ao longo da grande quantidade de produções udigrudis que ele participou. Ele era muito bom fotógrafo de branco e preto. Como O Lago Maldito foi feito ao longo de vários anos, aquilo foi um cinema de ensaio. Em todos os sentidos. Acho que a principal virtude do Lago é que, o que falta ao filme em matéria de roteiro e diálogos, é compensado em termos de fotografia, enquadramento e na escolha das locações. Tinha voltado da viagem à Europa com a retina tinindo. Tomei uma overdose de Hitchcock. Assisti aos filmes do Val Lewton, do Boris Karloff, do Bela Lugosi, enfim, vi todos os grandes clássicos do terror. O que você não conseguia ver no Brasil, pude assistir lá. Revi o expressionismo alemão no só no cinema, mas nos museus também. Aprimorei bastante a minha cultura visual. Em O Lago Maldito coloquei em prática tudo o que eu tinha aprendido.
Na época, o maestro Júlio Medaglia tinha voltado da Alemanha. Ele estava dirigindo a Rádio Roquette Pinto e me chamou para fazer um programa. Comecei a frequentar a casa do Medaglia junto com o Wilson Grey. Com Stambowsky de múmia, o Grey, o Medaglia e o Felipe Falcão, formou-se um novo núcleo de atores. Recomeçamos as filmagens no Instituto Oswaldo Cruz, que tinha uma atmosfera perfeita para filme de terror.
Tive muita sorte porque a combinação do Wilson Grey com o Júlio Medaglia foi perfeita. O maestro tem um tipo gêrmanico que acentuava o tom expressionista do filme. Uma das maiores façanhas que consegui, foi lançar o Felipe Falcão nas telas. O Felipe, que nem ator era, se revelou um gênio da Sétima Arte. E também combinou muito bem com o Grey. O Felipe é uma pessoa aristocrática, um advogado, mas não se importava de fazer todas aquelas loucuras no filme. O Falcão é um amante de ópera e carrega com ele toda uma dramaturgia incubada. No Brasil não existe nenhum outro ator que chegue aos pés do Felipe. Ele é cara saído do expressionismo alemão, o Stronheim do Petrópolis.
O trio formado por Wilson Grey, o Felipe e o Medaglia foi o embrião do premiado Segredo da Mumia e, anos mais tarde, do Sarcofago macabro. As experiências científicas do professor Expedicto Vitus seguem a mesma linha daquelas que o professor Oãxiac Odez faz no episódio Ideologia, de O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Nessas experiências, o Grey exorcizava suas taras, agarrando as meninas e fazendo o diabo...
Meu tio, Duljacy Espírito Santo Cardoso, tinha uns cavalos de corrida e isso facilitou o acesso às coxeiras do Jócquei, onde o Grey e o Felipe torturavam a Lígia Durand, a Jane Silk e outras garotas. Um faxineiro da casa da minha mãe, chamado seu Mário, participava das filmagens na coxeira, onde se transformava numa criatura bestial e fazia cenas sexo com as empregadas domésticas que integravam o nosso casting. Dois amigos do meu pai, do tempo da Turma dos cafajetes, davam credibilidade ao elenco e ajudavam a compor o clima anos 40 de O lago Maldito – porque eram tipos originais daquela época. O deputado federal Altair de Oliveira Lima, que adorava de filmar, e o fotógrafo Oldar Fróes da Cruz, que parecia o Adolfo Celi. Também arrumamos um Packard para o Grey passear na Vista Chinesa. Este luxuoso automóvel pertencia a outro amigo do meu pai, o Maurício Memória, irmão do Frei Memória, que também acabou entrando no fita. É impressionante o poder do cinema. Todo mundo que convidávamos queria filmar. No Lago Maldito, a única pessoa que eu pagava era o Wilson Grey. Todo mundo trabalhou de graça. O Felipe Falcão cobrava um sanduíche de provolone.
Eu aproveitava oportunidades surgiam.Na época comecei a namorar a Carmem Gomes, uma das meninas mais bonitas e charmosas que conheci – lembrava muito a Jean Seberg. A Carminha era amiga da Ciça Guimarães e isso ajudou a trazer o Paulo César Pereio e o Joel Barcellos para o Lago. A Ana Maria Miranda era casada com o Macalé, por isso também topou fazer o filme. A Helena Lustosa me apresentou a uma amiga, chamada Jane Silk, que era, na verdade, uma clone dela. A Jane Silk era realmente um fenômeno e brilhou nos meus 16 mm! Era uma Helena “classe B”. Porque a Helena, também, não pode se dizer que era santa, mas a Jane Silk tocava até siririca nos filmes.
Isso tudo rolava na minha casa, na Rua José Linhares. Esse apartamento virou um verdadeiro aparelho udigrudi. Ali foram produzidos muitos filmes. Era o lugar onde, depois das filmagens, as pessoas iam fumar um e ouvir música. Era onde o Rogério Sganzerla gostava ouvir, diariamente, o LP Eletric Ladyland, do Jimi Hendrix. Segundo ele, o meu disco importado tinha um trecho que nenhuma outra edição em vinil tinha! O Júlio Bressane também frequentava muito esse meu apartamento, ele gostava de conversar com Viveiros. A gente era uma turma da praia, da boemia e da curtição.A programação era intensa. O Medaglia tinha me emprestado um projetor 16 mm e era comum a gente arrastar os amigos e, principalmente, as gatinhas para ver os copiões do Lago lá em casa. Como eu morava perto do Luna Bar, da pizzaria Guanabara e do Real Astoria, no Baixo Leblon, era uma loucura. Nas festas, os 16 mm viravam um super 8. E como os filmes eram filmes excitantes, isso excitava os presentes…
A câmera 16 mm, assim como o Super 8, dava muita liberdade. E é aquele negócio, liberdade demais atrapalha. Você fica perdido, entre mil possibilidades. Na vida, já fiz muita coisa que não deveria ter feito, mas só me arrependo das coisas que não fiz.
Enquanto continuava angariando recursos e atores para O Lago Maldito, fiz ainda outros pequenos filmes em 16 mm. Os mais importantes são A História do Olho, com a Cláudia Ohana, e Curiosidades de vidas irregulares, estrelado pela Jane Silk e um cara que a gente viu na rua, chamado Rodrigues, dirigindo um Triumph conversível.
Fizemos contato com ele e usamos o Triumph em algumas cenas de “O Lago Maldito”. Ele emprestava o carro e ficava assistindo as filmagens. O Rodrigues começou a perguntar por que a gente não fazia um filme de sacanagem. Então, à medida que a coisa foi rolando, a gente combinou de fazer o Curiosidades de vidas irregulares. O filme foi fotografado pelo Eduardo Viveiros e filmado por mim. O tal Rodrigues alardeou que ia fazer e acontecer… Só que no dia, brochou e, ainda por cima, tinha um pênis minúsculo! Então tive que tranformar o filme num trailer.
O Viveiros era um grande fã do Georges Bataille e me falava muito sobre um livro, chamado A história do Olho. Por isso, resolvemos filmar. Chamei o Mustafá Agumi, um americano que era filho da fotógrafa Martini Barra, amiga do Hélio Oiticica. A Claudia Ohana era minha amiga e trabalhou de graça. Só chegamos a rodar a cena principal do história, num casarão em Santa Tereza. Era a cena em que a prima tira a roupa e senta num pires de leite, para excitar o primo. Eu lancei o Mustafá que, mais tarde, foi ator do “La Luna”, do Bertolucci.
A parceria com o Viveiros é outra coisa da qual me orgulho. O próprio Levy Strauss o considera seu herdeiro intelectual. O Viveiros, nas férias, nas horas vagas e nos finais de semana, se voltava totalmente para o cinema. Foi o Eduardo que desenhou aquele mapa na careca do Felipe. Ele queria aprender a tirar fotografia e ensinei, mais ou menos, o que eu sabia. O Viveiros acabou se tornando um excelente fotógrafo. Ele gostava das filmagens porque também fazia as fotos de cena. Foi ele que fez still de “O segredo da múmia”.
A cronologia disso é muito difícil de lembrar. Também me empenhei em outro projeto, que era um documentário colorido sobre o Jackson do Pandeiro que se chamaria A Brasa do Norte. Esta produção acabou não evoluindo porque o dinheiro do Chateaubriand acabou. O Jackson morava meio longe, em Olaria. Cheguei rodar algumas cenas em sua casa, com o Laclete. Mas o filme também não foi adiante porque o Jackson era da seita Universo em Desencanto e queria que a gente fosse lá filmar. Pulei fora porque achava aquilo tudo uma picaretagem.
Tanto os curtas sobre o José Mojica Marins e o Dyonélio Machado, quanto os filmes do Júlio e as filmagens do Abismo, aconteceram tendo O Lago Maldito como pano de fundo. A múmia era a minha maior obsessão.
O UNIVERSO DE MOJICA MARINS
Em 1977, o maestro Júlio Medaglia me disse que, se eu quisesse fazer um filme sobre o Mojica, ele arranjava a produção com a TV Cultura. E arranjou, num simples telefonema ao seu amigo Walter Durst. E lá fui eu, o Renato Laclete e a Carmem Gomes para São Paulo.
A Carminha era uma menina muito inteligente e virou minha assistente. Quem filmou e fez o som direto foi o pessoal da TV Cultura. O Laclete fazia uma segunda câmera com a minha Beaulieu. Graças ao esquema da TV Cultura, consegui fazer O Universo de Mojica Marins quase sem custos. Quer dizer, depois consegui recursos com os produtores musicais Guti e Sérgio Carvalho para finalizar e ampliar o filme para 35 mm. Por ter usado um equipamento 16 mm, pude rodar bastante. Mas o importante é que eu pude fazer um trabalho que foi fundamental para mim. Foi o meu primeiro filme premiado no Festival de Brasília – ganhei um prêmio de roteiro, com um documentário que não tinha roteiro... E, em seguida, viajei para o badalado Festival Internacional de Cinema Fantástico de Sitges, na Espanha, pela primeira vez.
Dei muita sorte nesta produção, porque o Mojica em plena forma e, embora estivesse culturalmente marginalizado, ainda estava fazendo muita coisa na Boca do Lixo. Havia produzido o Inferno Carnal e o Estranha Hospedaria dos Prazeres simultaneamente e finalizava o polêmico Perversão. Pude registrar também a formatura de uma nova turma de alunos da escola de arte dramática que ele dirigia, na Mooca. No filme, é difícil de você precisar, mas ali tem mais de 100 alunos. Além disso, o Zé estava rifando sua velha Mercedez Bens negra para conseguir grana para uma nova produção: Notícia de Jornal. Ele estava num momento muito bom, ainda moço. As unhas estavam num tamanho que eu acho que nunca mais ficaram. E tinha o Satã, que era uma espécie Lothar do Mojica.
O Universo é um documentário bastante completo, o Mojica conta toda a sua estranha trajetória. Filmei até aquele staff maluco do Zé. Documentei o máximo que pude. Ao contrário do que havia acontecido no Moreira da Silva, desta vez pude fazer o serviço completo, entrevistei até a dona Carmem Marins, mãe do Mojica. Basicamente, eu filmei a estréia do Inferno Carnal, o show de encerramento dos alunos do Mojica e aquela antológica entrevista com o Zé. Na formatura, o Zé fala tanta loucura que o Gilberto não conseguiu nem cortar… Acho que fiz o filme em 4 dias, foi um blitzgrieg de filmagem.
Além disso, o Décio Pignatari fez um texto visionário para o filme e para o Mojica. No texto, o Piganatari fala que o Zé do Caixão é uma espécie de “Antônio Conselheiro de subúrbio, que fez do cinema o seu Canudos”. Acho que tem conceitos ali que são muito importantes. O Universo de Mojica Marins é o filme que fez o resgate cultural do Mojica, que já tinha feito muito sucesso nos anos 60, mas estava um pouco esquecido. O filme também trouxe o Mojica para os festivais de cinema. Quer dizer, ele já tinha estado em Sitges e no Écran Fantastique, mas nunca havia participado de um festival no Brasil.
Eu não ganhei nada para fazer este documentário. Foi meu primeiro trabalho com o Gilberto Santeiro, que era colega de faculdade do Eduardo Viveiros. A gente montou esse filme na TV Educativa do Rio, que havia sido recém inaugurada. De noite aquilo se transformava num mercado persa. Os funcionários vendiam magnético roubado da própria TV. Não sei como consegui que o Gilberto não me reduzisse o filme. Porque o Universo tem um tempo que é ideal para telefilme (26 minutos), mas já é grande para curta metragem. Para distribuir comercialmente, nas salas de cinema, fui obrigado a dividi-lo em dois. O segundo parte ganhou o título A Razão do ser.
Um problema, que não se repetiu comigo, mas que me traumatizou muito, foi que, até O Segredo da Múmia, todos os longa-metragens que eu trabalhei não passaram no cinema. Nem o Sem Essa, Aranha, nem O Rei do Baralho, A Agonia e muito menos O Monstro Caraíba foram lançados comercialmente. Eu trabalhava em cinema por amor à arte. Depois até ganhei algum dinheiro com os curtas, mas não tinha noção que cinema dava dinheiro.
O documentário sobre o Mojica foi muito importante pra mim, em todos os sentidos.
Infelizmente, na época, o Mojica tinha um problema qualquer com o Augusto Cervantes, que era o seu principal produtor, e só pude usar trechos do Estranho Mundo de Zé do Caixão. De qualquer maneira, a fita é um dos três grandes títulos do Mojica. Só o episódio A Ideologia já é uma obra-prima.
É engraçado porque o Mojica, no documentário, esconde o Lucchetti. Mas, depois do filme pronto, contei para o Mojica que estava fazendo um filme de múmia há a não sei quanto tempo, que já tinha não sei quantos minutos de material rodado, mas que não conseguia completar o filme. “Tenho medo de ficar filmando, filmando e não chegar a lugar nenhum”. Foi quando o Mojica falou: “não tem problema, porque tem outros malucos que nem você que fazem isso também – vou te apresentar o meu roteirista”, que era o Rubens Francisco Lucchetti, “ e ele vai escrever um roteiro que una essas sequências que você já filmou”.
O filme sobre o Moreira da Silva é muito legal, mas o Univesro de Mojica Marins é o meu primeiro documentário em 35 mm realmente de impacto. O curta foi selecionado para competir no Festival de Brasilia de 78, mas nem o filme do Júlio (A Agonia) e nem o filme do Rogério (O Abismo) entraram. Na época, o acesso ao Festival de Brasília era difícil. Os filmes udigrudis sofriam censura estética e eram, de fato, bem diferentes dos outros exibidos. Para ter uma idéia, o filme que ganhou Brasília esse ano foi o do Arnaldo Jabor: Tudo Bem.
Então houve o movimento mais insólito que eu talvez já tenha participado. Paralelo ao Festival de Brasília, montamos na Escola Parque uma mostra chamada Horror Nacional. Esse título, em plena ditadura, acabava ganhando um duplo sentido. Aliás, até hoje, ele é muito oportuno. De certa maneira, a gente acabou eclipsando o próprio Festival de Brasília. Principalmente, por causa do apoio que recebemos do Jairo Ferreira, na Folha de São Paulo, e do Oliveira Bastos, que era editor do Correio Braziliense e imprimiu um caderno especial sobre a nossa mostra. O Jairo era um ótimo crítico. Ele tinha um espaço fora do normal na Folha de São Paulo e só falava da gente…
O Óscar Ramos e o Luciano Figueiredo fizeram um objeto – uma cicatriz com uns dentes – que a gente expôs no saguão do Hotel Nacional. E conseguiu-se um lugar ao sol para nossos filmes proibidos. Exibiu-se, na mostra Horror Nacional, os filmes A Agonia, do Julio Bressane, O Abismo, do Rogërio Sganzerla, “Os Monstros Babalu”, do Elyseu Visconti, O Homem e sua jaula, do Fernando Coni Campos, “A Sina do Aventureiro” e os “Delírio de um Anormal”, do Mojica. Eu também defendi a inclusão de “A Dama do Lotação”, mas já havia um princípio de ruptura entre o Neville d’Almeida e o cinema marginal-experimental-udigrudi. Eu achava que a projeção do filme do Neville fortaleceria mais a nossa posição, a gente deixaria de ser excluído para ser também campeão de bilheteria.
Como reflexo dessa movimentação toda, esperava ganhar o prêmio de melhor filme ou melhor diretor, mas acabei ganhando melhor roteiro, um prêmio quase de consolação, porque o filme nem roteiro tinha… Mas, de qualquer forma, era um prêmio importante e foi o primeiro que ganhei. Também foi a minha primeira ruptura com o Mojica, porque o Zé não me perdoou por não ter dividido o cheque do prêmio com ele. Na ocasião, não percebi a importância que isso teria. Foi a primeira vez que eu descobri que o Zé do Caixão era humano.
O TERCEIRO OLHO
A Norma Benguel tinha várias latas de negativo para fazer um filme sobre o Jango, com direção do Neville d’Almeida. O projeto não decolou e, não sei por que, a Benguell e os negativos foram parar nas mãos do Sganzerla. Para fazer O Abismo, o Rogério chegou a vender um apartamento da Helena Ignez na rua Venâncio Flores, no Leblon. Mais uma vez, fiz as fotos de cena, a produção e um making of, chamado O terceiro olho.
O roteiro de “O Abismo” era genial. Mas, infelizmente, muito pouco dele foi filmado. Tudo o que o Sganzerla conseguiu rodar foi adaptado. O Rogério não encontrava o protagonista. Ele chegou a convidar o artilheiro Vavá para fazer o filme, mas a mulher do “Leão da Copa” deu um drible no Sganzerla. Depois, pensou no internacional Ronald Biggs, mas esbarrou nas libras esterlinas… Se o Biggs já cobrava caro para dar entrevista, imagina para filmar. No projeto original, o protagonista seria o Erasmo Carlos. Estive com o Rogério na casa do Erasmo. O Sganzerla conseguiu seduzir o cantor, mas na hora de fechar o contrato ofereceu dez mil cruzeiros. Não era o cachê do Erasmo, mas também não era pouco. O erro foi que o Rogério não era o cara certo para fazer essa negociação. Era um papo para o produtor. A solução seria dar um percentual da bilheteria. Porque a contratação do Erasmo Carlos daria maior visibilidade ao filme. O Erasmo não aceitou os 10 mil e o Rogério ficou contrariado. Sempre irônico, ele disparou: “Ah, quer dizer que o Tremendão ficou devagar”. O tempo fechou e perdemos para sempre o Erasmo.
O Rogério tinha o equipamento do José Sette de Barros, o negativo, a Norma Benguell e um elenco de atores co-adjuvantes de primeira – Zé Bonitinho, Wilson Grey e o demencial baterista Edson Machado. Apesar disso, continuava faltando o protagonista. Acabei sugerindo o Mojica para o papel. Acontece que a Benguell era mística e não quis contracenar com o Zé do Caixão. Um filme produzido pela Helena Ignez e estrelado pela Norma Benguel era uma equação difícil de solucionar. Quem acabou caindo no abismo foi o próprio Sganzerla.
DR. DYONÉLIO
Benito Mussolini foi quem inventou esse papo de Ministério da Cultura. Depois o André Maulraux gostou da idéia e criou o Ministério da Cultura na França. Parece que não passam de 15, os países que tem Ministério da Cultura. Mussolini criou também uma lei que obrigava a passar, na frente de um filme estrangeiro, um curta italiano. Essa lei – embora não existisse Ministério da Cultura no Brasil ainda – foi implantada aqui durante a ditadura. Cada produtora podia produzir até cinco curtas por ano. Eu não me lembro direito, mas vamos dizer que um curta custasse Cr$ 50 mil. Existia um teto de faturamento, de 250 mil, para cada curta. Então, pela primeira vez, senti que poderia caminhar com as minhas próprias pernas. Se eu fizesse cinco curta-metragens por ano, o cálculo seria esse: cinco vezes 50 mil seria igual a 250 mil. Com o lucro de um filme eu pagaria a produção dos cinco. E com o lucro dos outros quatro, eu ganharia 1 milhão! Eu já tinha o Universo de Mojica Marins (que havia sido dividido em dois) e o Moreira da Silva. Ou seja, já tinha três. Faltavam mais dois.
Parti para produção de um documentário sobre o escritor e psiquiatra gaúcho Dyonélio Machado. O Décio insisitia muito para que eu filmasse o romance “Os ratos”, obra-prima do Dyonélio. Cheguei a ganhar até um concurso de roteiro da Embrafilme com um projeto sobre Os Ratos, mas isso foi depois do curta, que foi filmado em 1978. O Lucchetti que fez esse roteiro, apesar dos conselhos que recebi de um importante produtor brasileiro: “Não gaste nada para fazer o teu roteiro. Concurso de roteiro aqui é prêmio de consolação para quem não ganhou finaciamento para longa-metragem. Entrega uma merda qualquer e põe o resto do dinheiro no bolso”.
Mas, muito antes desse concurso, o Pignatari já vinha me falando de Os Ratos, que para ele é um dos maiores romances brasileiros. Foi isso que me levou a fazer o curta, em 1978. Era a oportunidade de obter a permissão para adaptar “Os Ratos”, direitos cinematográficos que tenho até hoje. Mas, infelizmente, “Os Ratos” não tinha nada a ver com o meu estilo. Conheço o livro como a palma da minha mão, também fiz uma versão desse roteiro com o Waly Salomão, mas não era a minha praia. Por influência do Décio, fui parar no Rio Grande do Sul. O curta sobre o Dyonélio foi filmado num fim de semana. Trabalhei com o fotógrafo Antônio Penido operando a câmera e me ajudando a fazer o som direto.
O Dyonélio ficou muito lisonjeado, porque ele era um cara que foi marginalizado a vida inteira. Um grande escritor, mas que não tinha mais editor, embora continuasse a escrever. Ele havia entrado numa psicose greco-romana e há quase trinta anos que ele estava escrevendo uma trilogia ambientada na Roma Antiga. Fiquei muito impressionado com essa história. Aproveitei uma fixação que eu tenho por filmes épicos para recriar, dentro dos padrões udigrudis, algumas momentos desse mergulho do Dyonélio no mundo antigo. Essas filmagens foram feitas no Rio de Janeiro, após nossa viagem ao sul, e contaram com as participações especiais de Hélio Oiticica, Wilson Grey, Helena Lustosa e do montador Radar, entre outros. Todo mundo fantasiado de romano.
O Dyonélio guardava uma mágoa muito grande por ter sido cassado após ser eleito deputado, pelo Partido Comunista, em 1945. Para piorar a situação, ele acabou saindo do PC e foi abandonado por ambos os lados – esquerda e direita. E ele ainda tinha uma bronca danada do Érico Veríssimo, por causa de um concurso da Academia Brasileira de Letras que ambos participaram. Ele conta isso no documentário. O Dyonélio era um cara muito ético e ficou puto porque o Veríssimo mostrou pra ele uma carta do Gilberto Amado que revelava informações relativas ao concurso que deveriam ser sigilosas. Tudo isso tinha acontecido em 1935... Mas o Dyonélio ainda tinha se conformado.
Durante toda a filmagem, também tive que aturar uma discussão interminável entre o Décio e o Penido. O Toninho, como todo o pessoal de cinema, estava eufórico com a lei do curta metragem. O Décio era contra e argumentava que essa lei era uma interferência do Estado no entretenimento, que era uma coisa fascista, inventada pelo Mussolini e que já não tinha dado certo na Itália, etc. Mas era essa lei que havia me estimulado a fazer o documentário. Ele passaria no cinema e isso havia me proporcionado a chance de angariar os recursos para realizá-lo. Dr Dyonélio foi co-produzido pelo o Aluisio Leite Filho, da Cinemateca do MAM.
O Dyonélio também, por sua vez, era um gaúcho engraçadíssimo. Primeiro porque ele chamava a gente de “meu bem”… Ele ficou muito excitado com a nossa chegada. Tomou whisky demais no primeiro dia de filmagem e passou a tarde inteira recitando versos gregos e latinos. A gente até pensou que o cara ia até ter um treco, porque afinal ele tinha 83 anos… Mas o “centauro dos pampas” era forte!
A entrevista que o Pignatari fez com ele para o filme foi outra coisa gozadíssima. O Pignatari queria, na verdade, que o Dyonélio explicasse que entrou para o anonimato porque saiu do Partidão. Mas, quando o Décio fazia perguntas que envolviam questões políticas, o Dyonélio retrucava: “estás gravando, meu bem?” e, imediatamente, mandava desligar o gravador. O velho escritor gaúcho tinha ficado traumatizado com tantas prisões…
Outra curiosidade é que o Décio Pignatari, quando escreveu o roteiro de Dr. Dyonélio, disse que eu não precisava incluí-lo nos créditos. Ele temia que o seu nome prejudicasse o filme, em virtude da briga com o pessoal do Cinema Novo.
A HISTÓRIA DE UM OLHO
O cafajeste Jece Valadão estava empolgado com a oportunidade de trabalhar com Julio Bressane, o Rei do Udigrudi. Enquanto eram erguidos os cenários de O Gigante da América, no estúdios da Magnus Filmes, em São Cristóvão, ele perguntava diariamente ao Júlio quem seria a atriz principal do filme.
Bressane tentou contratar Sandra Bréa, que já tinha um compromisso com Walter Hugo Khoury. Pensou na Vera Fischer, mas ela estava grávida. Então ele teve um lampejo genial e resolveu convidar o travesti Rogéria para encabeçar o elenco. Ao saber da notícia, Valadão ficou uma fera. Foi logo avisando ao Julinho: “Só contraceno com ele a distância. Você não vai querer acabar em trinta segundos com um mito que levei trinta anos para construir”!
O Gigante da América, foi feito com recursos da Embrafilme, era uma verdadeira super-produção em relação as experiências anteriores do Bressane. Reunia um elenco de estrelas famosas, uma equipe numerosa e sofisticados cenários criados pelo Óscar Ramos. O meu trabalho de assistente de direção era sopa, então pude me dedicar quase integralmente as fotografias de cena e ao making of que chamei de A historia de um olho.
Desta vez, o personagem principal do meu documentário foi o extraordinário maquiador argentino Gilberto Marques. Ele tinha sido maquiador da Eva Peron e do Carlos Gardel. O Marques era um veterano do cinema latino-americano que há muitos anos que trabalhava no Brasil. Foi o homem que sugeriu ao Mojica que ele deixasse as unhas crescerem para compor o personagem do Zé do Caixão.
Entre outras loucuras que aconteciam em seu no camarim, registrei as transformações do Zé Lino Grunewald em Carlos Gardel e do Decio Pignatari em Dante Alighiere. A Tenda-Luz de Hélio Oiticica nas dunas de Cabo Frio era última sequência que faltava ser rodada para terminar o filme. Valadão, ao saber que nesta sequência faria uma cena de sexo, resolveu levar sua própria odalisca!
Estávamos hospedados na Praia do Forte. Após uma uma tremanda noitada, toda a equipe acordou de ressaca. Depois do café de manhã, Hélio, Óscar e seus ajudantes foram deixados pelo diretor de produção Ricardo Pudim nas dunas do Peró para levantarem a tal tenda. Pudim prometeu voltar em seguida com água e sanduíches, mas ao chegar no hotel Malibu, enquanto tomava umas e outras na beira da refrescante da piscina acabou se esquecendo do que havia combinado.
Quando chegamos para filmar, à tarde, Oiticica e os outros pareciam autênticos árabes de tão queimados pelo sol. Hélio foi logo avisando: “Olha aqui, seu pudim de cachaça. Acho melhor você não voltar para o Rio. Se eu não puder desfilar na mangueira” – estávamos às vésperas do carnaval – “um malandro do morro vai passar a navalha na tua cara”.!
Oiticica pegou o primeiro ônibus e foi embora. Mas, felizmente, na semana seguinte, pode brilhar na Marques de Sapucaí.
HO
Acho que a coisa mais bacana que consegui, ao longo da minha trajetória como fotógrafo e cineasta, foi que acabei me tornando parceiro e herdeiro de grandes artistas de vanguarda. Hoje em dia, quando você fala “artista”, o pessoal confunde com ator da TV Globo… Esse é o conceito de “artista” que se tem atualmente.
Hélio Oiticica acabou arranjando uma arenga qualquer com a imigração americana e, depois de 7 anos em Nova York, voltou ao Rio de Janeiro para se tornar ator de Ivan Cardoso. Sempre rebelde e em guerra com o mundo das artes plásticas, ele tinha decidido que agora era ator… Interpretou um senador romano no Dr. Dyonélio. Já tinha também feito um papel de marginal no filme “Uma vez flamengo”, do Ricardo Soberg*. E ainda fez um mercador egípcio no “Segredo da Múmia”.
E Hélio sempre foi uma pessoa muito especial para mim. Ele tinha grande admiração pelo meu trabalho. O super 8 significou muito para ele. Volta e meia, brincava comigo: “Você não é o maior cineasta brasileiro?”. Ele também curtiu muito o filme do Mojica e deu até aquela entrevista, que mais tarde eu usei no “Heliorama”. O Oiticica era amigo de vários cineastas importantes, mas quem ele escolheu para fazer um documentário sobre a sua trajetória fui eu.
Um dos maiores problemas era que a obra do Hélio estava toda encaixotada. Não pude filmar a Tropicália, nem os ninhos, nem os bilaterais, nem os relevos espaciais, nem os metaesquemas, quase nada. O “HO” virou mesmo um filme experimental. A gente filmou os parangolés e registramos a badalada estréia de um penetrável chamado Rijanviera, no Hotel Meridien. Entre os presentes estavam Caetano Veloso, Ferreira Gullar e a Maria Helena (viúva do marginal Mineirinho). Nesta antológica cena, a Lygia Clark e o Hélio dançam juntos dentro do penetrável. Curiosamente, é a única imagem do Hélio e da Lygia juntos.
Mas, ao mesmo tempo, o Hélio queria que filmasse tudo. Então ele inventou várias obras especialmente para o filme. Me lembro que dei ao Hélio a quantia de Cr$ 600,00. Ele ficou felicíssimo. Com essa grana, ele foi à Casa da Borracha e comprou material necessário para fazer vários parangolés, mini-jardins e recriar várias outras obras. Fez um parangolé vermelho, que chamou de “rouge”, e um outro, azul, que a Carminha batizou de “noblau”. Tinha os parangolés antigos e esses novos, feitos especialmente para o filme, em 1979. Eram uns parangolés de plástico, diferentes, que ele chamava de “Faixas de cor”.
A gente teve muita dificuldade porque não era qualquer um que sabia usar os parangolés – entre as pessoas que chamamos, o Nildo da Mangueira e o Carlinhos do Pandeiro de Ouro foram os grandes destaques. Mas era o Hélio quem melhor sabia vestir o parangolé… Também foi uma pena não ter aproveitado mais a Lygia Clark e a própria Lygia Pape no filme. Existia na época um certo ciúme, talvez a Lygia Pape quisesse ter feito esse filme. Mas a Pape era neoconcreta. E o Hélio, nessa época, falava que o neoconcretismo tinha sido uma bobagem, uma coisa que na realidade nem existia, e que importante mesmo eram os poetas concretos. O Hélio tinha desenvolvido uma relação muito forte com o Haroldo de Campos. Uma das coisas que me aproximou muito do Haroldo, desde a época da Navilouca, era que eu passava horas contando histórias do Oiticica para o Haroldo.
Ainda nos anos 60, eu tinha recortado uma reportagem sobre o Hélio, que saiu na revista Cigarra, com uma foto dele usando o saco bólide que aparece no filme. Aquilo ficou na minha cabeça. E sempre percebi o grande potencial plástico que poderia ter no cinema. E, de fato, a cena do Hélio andando sob a marquise do antigo Peg Pag do Leblon, atrás da José Linhares, é uma das cenas mais antológicas do “HO”. Agradeço ao saudoso Jairo Ferreira pela sugestão de usar a música do 2001 nesta cena. O plano do Peg Pag beira o “science fiction”. É um plano definitivo. Inclusive, porque o Hélio interpreta. Ele era um excelente passista. É um balé do Oiticica. Naquele momento, a obra do Hélio Oiticica atingiu não só a eternidade, como sua exposição máxima. É a obra dele, usada por ele. E, ainda por cima, com o Hélio vestindo a calça e o sapato de passista da Mangueira. Um figurino estranhíssimo. E ele também segurou a onda, é um plano-seqüência de 5 minutos. Foi por isso que eu chamei o Edson Santos para fotografar. Ele era melhor câmera que fotógrafo, funcionou muito bem. A prova é esse plano memorável.
O “HO” foi um filme que quase me levou à loucura. Primeiro porque o Oiticica ficava enlouquecido durante as filmagens. A gente foi fazer umas externas na Mangueira e foi um caos. O pessoal acabou indo cheirar no Buraco Quente e a coisa escapou um pouco do controle. A favela já era um labirinto. Um “penetrável” real e com vida: dentro de cada “ambiente” você tem uma família, uma história. Até um pai de santo acabou dançando com um bólide do Oiticica. Muita coisa eu não usei no filme, mas tenho essas sobras de material ainda. Infelizmente, perdi parte dos negativos, mas sobraram os copiões. Agora pretendo restaurar tudo que não usei no curta através de métodos digitais, porque esse material tem grande valor documental. São basicamente cenas de mangueirenses exibindo os parangolés na favela. Algumas foram aproveitadas, como o Nildo dançando contra aquela bandeira do Brasil. Mas o negócio poluía muito, várias pessoas entravam em quadro e você não tinha controle do que acontecia no morro. Outra cena que eu só aproveitei agora, no “Heliorama”, é o Hélio rolando no lixão da Mangueira, com um parangolé escrito “estou possuído”. Quer dizer, genial! Mas, na época, isso também chocou a gente. O grande Hélio Oiticica rolando no lixo!
Mas, de qualquer jeito, como o Haroldo de Campos mesmo definiu, o filme é um “cine-teatro-nô psicografado por Souzândrade, com roteiro ideogrâmico de Eisenstein”. O Haroldo preparou o texto do filme, à partir do que viu nos copiões. Usei parte do texto em cartelas e o resto narrado pelo Décio Pignatari. Na minha opinião, uma das melhores cenas do filme – que eu mesmo filmei com a Beaulieu – é aquela onde o Waly Salomão e o Luciano Figueiredo passam uns filtros coloridos na frente da rosto do Oiticica. Esta sequência montou muito bem com o trecho do poema do Haroldo que fala em retículas e que é lido espetacularmente pelo Décio.
Eu filmei uma hora e meia, em 16 mm, para o Ricardo Miranda montar apenas 13 minutos, que depois foram ampliados para 35 mm. Por isso que sobrou material para mais dois filmes. Curiosamente o “Meia-noite com Glauber” é de 97, quase 20 anos depois do HO, que é de 79! O “Heliorama” é de 2004.
Depois que o filme ficou pronto, fui negociar a distribuição com o Hugo Sorrentino, o dono da Art Filmes, um sujeito muito culto e refinado. Mas o Sorrentino, como bom negociante de cinema, tinha lá seus limites. Para ele, o curta-metragem só podia ter 8 minutos, no máximo. O HO tinha treze. Levei o “HO” na cabine da Art, crente que não teria dificuldades para exibir o curta nos cinemas. O Sorrentino de fato gostou, mas fez uma ressalva: “Seu Ivan, filme com esse tamanho não dá”. Aí ele me perguntou: “O senhor sabe quanto custa uma tela de cinema?”. Eu falei: “Não tenho a menor idéia”. E o Sorrentino completou: “Eu ponho esse filme lá no Art-Palácio Madureira; o espectador vê essa bicha rebolando dentro do parangolé, joga uma lata de cerveja na minha tela, rasga a minha tela… O senhor sabe quanto custa uma tela de cinema?”. Aí compreendi a situação. Fui na cabine de projeção e cortei o plano magistral do Hélio dentro do saco bólide, que era o final do filme. Em meia hora estava de volta a sala do Sorrentino: “Está aqui a sua pizza!”. E fechei o negócio.
De qualquer jeito, era sensacional porque você botava um produto com altíssimo repertório de informação, um filme de vanguarda, num cinema comercial. Você passava o teu filme na frente dos grandes lançamentos americanos. E o bom de negociar direto com o exibidor era que você fazia esse dinheiro num espaço de tempo muito menor. O cara participava, dividia a grana com você. A lei te dava 5% da bilheteria do filme que tivesse em cartaz até uma determinada quantia. Eu acho que fui muito feliz com esse filme. É um das minhas obras mais importantes. E vai ser cada vez mais importante. Pena que o Hélio morreu logo no ano seguinte ao filme. Ele próprio não pode escrever, usufruir mais do HO. Foi um período que eu produzi bastante. Na mesma época já rolava a filmagem de “O Segredo da múmia”, onde o Hélio também teve uma inusitada participação.
O SEGREDO DA MUMIA
Foi o Mojica que me deu o telefone do Lucchetti. Por curiosidade, ele morava aqui mesmo no Rio de Janeiro. O Lucchetti era o editor-chefe da Cedibra, editora que era do pai do cineasta Luís Rosemberg. Ele morava próximo a Rua Bariri, em Olaria, onde já tinha ido ver jogos do Botafogo. Então não foi dificill encontrar o endereço. O Helio Oiticica, que adorava passear no subúrbio, foi comigo. Quando chegamos, a gente levou um susto danado, porque a casa do Lucchetti, cheia de relógios, objetos estranhos e livros, era um ambiente sinistro, que não combinava com Olaria. O Lucchetti ficou empolgadíssimo com a minha proposta. Ele é um cara que escreveu não sei quantas mil histórias em quadrinhos e roteiros para o Mojica. Além de uma infinidade de pornochanchadas. O Lucchetti carrega uma estética muito ligada aos anos 40, que eu soube explorar muito bem. Muito do humor dos meus filmes é gerado pelo anacronismo dos seus textos. Ele já havia escrito histórias em quadrinhos de múmia, mas nunca imaginou que alguém fosse contratá-lo para escrever um filme sobre esse tema.
Quando procurei o Lucchetti para escrever o roteiro, cheguei a pensar na possibilidade de lançar o filme como um seriado, com capítulos de 10 minutos, usando o benefício da Lei do curta-metragem. Mas a Lei do curta acabou se tornando um abacaxi, porque os exibidores botavam só os seus filmes na frente dos campeões de bilheteria. A opção que sobrava para produtor independente, eram os circuitos menores.
Por volta de 77, houve uma abertura na Embrafilme para as produções udigrudis do Rogério e do Julio. Aproveitei o momento e pedi ao Eduardo Viveiros uma sinopse do Lago Maldito para encaminhar um pedido de finalização para o projeto. A distribuidora da Embrafilme – que era dirigida pelo Gustavo Dahl – já ocupava 50% do mercado e o Lago Maldito ainda devia ser bastante underground para mentalidade daquela época. Por isso mesmo, acho que acabou ficando na gaveta. Foi só quando o chanceler Celso Amorim assumiu a direção da empresa, que a minha sorte mudou.
Um dia, estou em casa, toca o telefone. Eu atendo: “É o Ivan Cardoso? Ah, seu Ivan, aqui é da Embrafilme, o ministro Celson Amorin vai dar uma palavrinha com o senhor, o seu projeto é o primeiro que ele vai assinar”. O novo diretor, ao arrumar a gaveta, deve ter encontrado o meu pedido de finalização. Como o que eu pedia era uma mixaria, me deram. Acontece que, como já tinha passado um tempo e a inflação era galopante, o dinheiro já não era mais suficiente para fazer o filme.
Durante um coquetel no Hotel Meridien me associei ao Zelito Vianna, produtor do Glauber e um dos caciques do Cinema Novo. Nessa mesma noite, convidamos a atriz Zaira Zambelli e o ator Anselmo Vasconcelos, que estava no auge por sua performance em República dos Assassinos, para estrelar o filme. A gente já tinha o Wilson Grey, o Felipe Falcão e o Julio Medaglia. Parte do filme já estava filmado. Só que o Lucchetti nos enganou. Quando entregou o roteiro de “O segredo da Mumia”, vi que ele aproveitava apenas um quarto do “Lago maldito”… Todo o resto do roteiro era uma história nova. Mas essa história era tão fascinante, que resolvemos bancar o argumento do Lucchetti.
Graças a sociedade com o Zelito, agora eu estava dentro da Embrafilme. A minha relação com a empresa mudou. Quem tratava agora com a Embra era o Zelito. Eu não era mais obrigado a ficar sentado, esperando para falar com o Carlos Augusto Calil, o diretor de assuntos não comerciais da estatal. O novo script da “Múmia” foi filmado entre 79 e 80. Mas só foi lançado em 82. Como a gente gastou todo o dinheiro que havia recebido na filmagem, demorou pra conseguir novos recursos para a montar e mixar o filme.
O Zelito foi o produtor mais louco que já tive. Poderia dizer até que foi o melhor, o mais cinematográfico, no sentido que foi o único que me deu total liberdade. Já no primeiro dia de filmagem, ele viajou para os Estados Unidos. E não me deixou grana nenhuma, só um bilhete – que eu tenho até hoje – dizendo que, se eu tivesse algum problema, poderia procurar o Roberto Faria! O Roberto Faria tinha sido diretor-geral da Embrafilme. Sempre gostei dos filmes do Roberto Carlos e do Farias como cineasta, mas não tinha a menor intimidade com ele, pelo contrário. Mas, embora ausente, o Zelito sempre esteve presente nas horas e locais certos.
Por causa dessa ligação do Zelito com o Roberto, o seu filho Maurício Farias – que hoje em dia é diretor de cinema – estreou no meu filme fazendo som direto. E o filho do Zelito também, o Marcos Palmeira. Foi o segundo filme do Marquinhos. Ele e o meu assistente Alfinete dividem uma escrava numa suruba egípcia.
O orçamento que tinhamos para fazer o “Segredo da Múmia” não era nada . Filmei três semanas com o João Carlos Horta de fotógrafo, o câmera César Elias de assistente e o Haroldo Marinho Barbosa de produtor. Nessa primeira etapa a principal locação era a casa da família Borgeth, no Parque da Cidade, onde eu assistia os filmes deTarzan quando era pequeno. Depois o dinheiro da Embrafilme acabou e a gente teve que reduzir a equipe. Comecei a trabalhar com o Cesar Elias de fotógrafo e atriz Nina de Pádua como produtora. Trabalhamos assim mais um ano, num esquema muito próximo do “Lago Maldito”. A diferença é que agora havia uma certa facilidade, porque o Zelito tinha uma camera Éclair, uma moviola Steinbeck 16 mm, negativo e crédito para revelar o material filmado na Líder. Nossa base de produção passou a ser a lendária Mapa Filmes.
Contratamos o Evandro Mesquita e a Regina Casé, que eram do Asdrubal Trouxe o Trombone – um grupo de teatro que na época fazia muito sucesso. A Nina de Pádua, que também era do Asdrúbal, veio trabalhar no filme e me disse que, além de atuar como atriz, gostaria de ser minha assistente. Eu aceitei na hora, porque a menina era linda...
A Zaíra Zambelli estava trabalhando numa produção do Cacá Diegues, que era rodada em outra cidade, e acabou furando com a gente. Isso me criou um problema grande, porque tive que escolher outra atriz para o papel principal em cima da hora. Minha primeira opção seria a Maria Zilda, que ainda não era a Maria Zilda. Tinha a própria Nina, mas como eu já estava a fim dela, fiquei encabulado porque poderia parecer que a estava comprando. Além disso, achava ela muito branca para o papel de egípcia. Acabei optando pela Tânia Boscoli que tinha um corpo escultural. Ela era mais inexperiente, mas tinha sido lançada no cinema, no “Gigante da América”, graças a uma indicação minha.. Durante todo o meu namoro com a Nina, ouvi muitas reclamações por conta disso. E também ouvi muita reclamação da Tânia e do Evandro porque dublei eles com a voz do Jimmy Olsen e da Mirian Lane.
Foi genial porque eu consegui contratar um elenco novo à altura do elenco original do “Lago Maldito”. A Regina Casé no filme está hilária. Aquela cena dela com o Felipe é antológica. As reuniões da equipe e do elenco eram marcadas de manhã, na Mapa. A Regina Casé chegava com o Evandro e sempre dormia. É engraçado porque, apesar de fazer esses filmes malucos, sou muito tímido e tinha uma certa dificuldade de explicar as cenas que gostaria de fazer para a Regina. Eu queria ter certeza que ela faria o que eu quisesse em cena, por isso fui pedir ajuda ao Evandro, que já era meu amigo. A “múmia” não teve leitura de roteiro. E, embora eu até tivesse produtor, o Zelito era um produtor turista. Minha sorte foi ter o Carlos Wilson e a Nina como assistentes. Eles me davam alguma segurança. O Carlos Wilson era diretor de teatro, ator e também era contemporâneo e colega dessas pessoas.
Imaginava botar uma mangueirinha na xereca da Regina para que ela mijasse guaraná na careca do Felipe Falcão. Me lembro do Evandro falando: “Fica tranqüilo que a mina faz o que tu mandar”. Mas a coisa mais ousada que consegui filmar foi aquela cena do Falcão fazendo uma minete na Casé. Foi uma cena que rodamos 5 vezes. Depois da cena dublada, a Regina Casé me ligou e disse que o seu namorado não tinha aprovado e que ela gostaria que a cena fosse cortada do filme. Mas essa é uma das minhas melhores cenas. Ou, pelo menos, uma das melhores do filme. Eu jamais a tiraria do filme e, infelizmente, nós nunca mais voltamos a nos falar – achei que a Regina fosse mais liberal. Esse era um problema para o Zelito resolver. A Regina Casé, pelo menos naquele momento, me parecia um personagem de chanchada. Mas ela acabou sendo muito mal explorada pelo cinema brasileiro. Acho que o seu melhor desempenho na tela é o meu filme. Ela está muito bem, caracterizada como empregadinha. Lembra muito a Zezé Macedo e a dupla dela com o Felipe ficou do barulho.
A grande revelação do filme é, sem dúvida, o Felipe Falcão. Um ator extraordinário. Ele deu um banho. A Clarice Piovesan também foi outro achado. Botei o nome dela de “Gilda”, no filme, mas ela estava mais pra Jayne Mansfield que pra Rita Hayworth. Ela compôs muito bem o personagem da loura burra. Tinha um que de “Marylin Méier”. A Clarice ajudou muito a dar um clima de cinema americano ao filme. Além disso, a Piovesan se integrou totalmente ao nosso grupo.
O Wilson Grey era realmente um tipo sensacional. E “O segredo da múmia” é o ápice da sua carreira. Ele já tinha sido protagonista do filme do Elyseu Visconti, o “Lobisomem”, mas o filme nunca foi lançado. A “Múmia” é o primeiro filme onde ele pode curtir esse status de protagonista. O cinema brasileiro devia isso a ele. O Grey foi um cara que me ensinou muito. Um gentleman. Um cara carismático, humilde e sem inimigos. Ele era um velho malandro da Lapa e muito querido no meio cinematográfico, já tinha trabalhado várias vezes com todo mundo. A Múmia também ganhou muito com a participação especial de José Mojica Marins, que abre o filme, e com a contratação de nomes de peso como o meu grande amigo Colé, Cláudio Marzo e Jardel Filho. Mas quando o filme ficou pronto, o Wilson Grey comeu todos eles por fora. E nunca poderia esquecer de mencionar as insaciáveis “mulheres fera”, interpretadas pelas apetitosas Maria Zilda, Dora Pellegrino, Patrícia Travassos, Jane Silk e Silvana Rodrigues.
Valeu a pena os 5 anos de luta para produzir o filme. O pessoal achava um loucura que um brasileiro fizesse um filme de múmia. Era uma coisa totalmente inusitada. Mas o cinema de terror sempre existiu e sempre existirá. É um gênero que vem da origem do cinema. Sempre surgirá um novo filme para renovar o estilo. “O segredo da múmia” era realmente uma novidade e, até hoje, é uma unanimidade. O filme ficou pronto muito antes do que se chamou depois de “espantomania”. Acho que as pessoas até perceberam isso. Ele é posterior ao Jovem Frankenstein, tem até a ver com o filme do Mel Brooks, mas carrega a minha principal marca registrada. O meu trabalho fala a linguagem universal do filme de gênero, mas seduz os estrangeiros porque esses temas são temperados pelo swing brasileiro.
A trilha sonora tem uma ligação direta com a trilha do “Gigante da América”, por causa do uso de músicas de clássicos do cinema americano. O Gilberto Santeiro participou muito dessa parte e da estruturação dos cinejornais. O filme, na verdade, foi montado por três montadores. No primeiro corte, o Santeiro botou uma assistente italiana chamada Chris Altan. Depois entrou o Ricardo Miranda, que já tinha montado o “Dyonélio” e o “HO”. O Gilberto só assumiu a moviola quando o filme precisava levar o corte final.
O Zelito Viana teve a idéia de convidar o Haroldo Marinho para ser o diretor de produção do filme. O Haroldo foi fundamental, teve muita elegância ao trabalhar com a gente. Por também ser diretor, ele se limitava a dar o apoio logistico à produção, não interferindo nas filmagens, nem na decupagem das cenas. Na época, eu nem passava a decupagem para equipe. Eu mandava rodar sem que eles soubessem o que iam filmar. Havia apenas a descrição das cenas no roteiro. O único que, eventualmente, me contestava era o Maurício, filho do Roberto Farias. Várias vezes ouvi dele: “ah, isso não pode filmar assim”. Eu perguntava por que e o Maurício respondia: “O meu pai diz que não pode”… Ele tinha recebido um aprendizado do Roberto e ficava falando que ia pular o campo. Mas eu insistia: ”Não pode? Então eu vou filmar assim pra te mostrar que pode!”. E, de fato, nunca houve nenhum problema de eixo com as cenas filmadas.
No primeiro dia das filmagens, rodamos várias sequências na Barra da Tijuca, que, naquela época, ainda era um areal. Tinha até umas dunas, onde a gente filmou as cenas de Egito antigo. Eu tinha um amigo, o Sérgio Rodrigues (vulgo Alfinete), que montava na hípica e me arranjou uns cavalos de graça. Ele trouxe esses cavalos lá da Fazenda Marapendi. O Haroldo Marinho era engenheiro, um cara todo organizado, e como na Barra ainda não tinha prédio, não tinha nada, ele marcou num determinado kilômetro da Rio-Santos. No horário combinado, o Alfinete apareceu com três cavalos. O Haroldo achou aquilo o máximo. Quando o Anselmo Vasconcellos viu os cavalos, deu aquela de brasileiro – “Deixa comigo que eu sei montar”. Esses animais sempre estranham um desconhecido. E se o cavaleiro não sabe dominar o cavalo, é o cavalo quem domina. Sei que ele foi dar um galope e o bicho disparou. Só vi o capuz egípcio do Anselmo sumindo no horizonte. Isso antes de filmar o primeiro take! E o cavalo danou a correr na direção de um canteiro de obras, cheio daqueles vergalhões de aço e caminhões em movimento. Falei: “Agora que esse cavalo vai matar Anselmo Vasconcelos!”. Felizmente, o Alfinete pegou outro cavalo e conseguiu dominar o animal do Anselmo. Então a gente pode filmar. No final do dia, o Haroldo Marinho falou: “O Ivan, o teu outro assistente vai ser o Alfinete!”.
De todas as minhas múmias – que ao todo, se contarmos o stunt man Guarilha, foram cinco – devo confessar que o ator Anselmo Vasconcelos foi disparado quem melhor interpretou este fantástico e romântico personagem. Uma curiosidade do Segredo da Múmia é que todos os ataques da múmia foram todos filmados duas vezes. E as atrizes também acabaram mudando. A Cláudia Ohana participou da primeira versão. No segundo dia de filmagem, tentamos rodar no tal aqueduto onde a gente tinha sido preso na época de “A múmia volta a atacar”. Aquele lugar deve ser amaldiçoado, porque novamente a filmagem não evoluiu. Externa em cinema é terrível, por causa do problema da luz. Principalmente quando você vai filmar em lugar que tem mata, é um desastre. Isso me deixou arrasado e, à noite, a Nina de Pádua foi na minha casa me consolar. Começamos um romântico namoro, que me ajudou muito a fazer o filme. Me deu mais prazer de trabalhar, porque estava apaixonado pela Nina.
Às vésperas do lançamento do filme, passei por um tremendo sufoco, porque ainda não tínhamos um título definitivo para a fita. Foi um problema porque era um negócio e tinha essa coisa de datas, compromissos, etc. Você tinha que decidir aquilo num determinado prazo até para poder fazer o cartaz. A gente sempre chamou o filme de “Múmia”. “O lago maldito” dançou porque não era um titulo comercial, não traduzia o filme. O título teria que ter a palavra “múmia”. O roteiro do Lucchetti se chamava “A múmia de Runamb”, mas era um título de história em quadrinhos. Na Líder, chegou a ser registrado como “A Maldição da múmia”, mas o Zelito tinha medo que a maldição do título se abatesse sobre a comercialização do filme. No departamento de publicidade da Embrafilme, fizeram uma lista com mais de trinta títulos para que eu escolhesse. Tinha até um que eu falei: “Esse só serve para lançar em Portugal” – era “O amor atrás das gazes”.
Foi tomando banho, depois da praia, que pintou a palavra “Segredo”, que fechou o titulo do filme. “Segredo” era uma palavra antiga e que também remetia ao universo cinematográfico – “O segredo da porta fechada”. A última vez que eu fui num cineclube, o Cineclube Santa Tereza, foi para assistir esse filme do Fritz Lang. No terceiro rolo, queimou a lâmpada do projetor e nunca mais consegui saber qual era o segredo da porta fechada... O título O segredo da Múmia foi realmente um gol aos 46 minutos do segundo tempo.
A Embrafilme, tão mal falada, na verdade foi a maior glória em estrutura de produção e distribuição que o cinema brasileiro já teve. Não é essa loucura de hoje em dia, que produzem filmes para ficar na prateleira. A Embrafilme podia até suportar as produções que ficavam encalhadas. Porque, tirando os filmes da Boca do Lixo, os campeões de bilheteria daquela época eram da Embrafilme. Ela tinha um departamento que cuidava dos anúncios, da divulgação, tinha escritórios espalhados em todos as regiões do país, foi a maior perda que o cinema brasileiro sofreu. Com “O Segredo da múmia”, viajei o Brasil inteiro. Fui de Manaus a Porto Alegre, para lançar o filme.
Sempre me liguei muito na publicidade dos filmes. A Múmia teve uma campanha muito bacana. A propaganda era toda sensacional. Acho que um dos meus maiores méritos é que, mesmo sendo um pequeno produtor, consegui criar uma marca para os meus filmes. A direção de arte do Óscar Ramos saiu da tela para as peças publicitárias. O Óscar fez um cartaz espetacular, inspirado no poster do Gato Preto, do Val Lewton. Os anúncios, as fotos de porta de cinema e os displays foram criados de acordo a tradição do filme de gênero. A “Múmia” teve anúncios coloridos na Folha, no Estadão e no Jornal da Tarde. São Paulo teve uma publicidade muito mais agressiva que o Rio. Aqui no Rio, só estar no circuito do Severiano Ribeiro já era um berço esplêndido. E o trailer – que é uma arma fulminante para você atrair o público – ficou imbatível. O Luccheti faz muito bem essa coisa do clichê.
O Lucchetti sempre fez os textos dos meus trailers, que depois eram adulterados por mim e pelo Gilberto Santeiro. Embora o Santeiro seja um montador clássico, tem uma verve incomum para isso. No trailer da “Múmia”, por exemplo, aquela frase: “É homem com homem, mulher com mulher, cobra engolindo cobra!” é dele. Foram frases como “Pode o amor durar 30 séculos?”, “Conheça o Egito que Hollywood não mostrou” e “Cenas de sexo e terrir” – narradas pelo fabuloso Ramos Calhelha – que ajudaram a chamar o espectador. As frases, junto com a múmia e as mulheres que apareciam nuas no filme, resultaram num trailer de arromba.
Transformei o lançamento do filme numa guerrilha. Foi um desbravamento. Eu tinha que lançar um signo totalmente estranho ao que estava no ar. Então eu passeava pela Avenida Paulista e pelo Centrão, em carro aberto, com um dublê vestido de múmia e várias odaliscas semi-nuas. E a empenhada divulgadora Georgia Matarazzo nos levou a programas como o do Jota Silvestre, onde ganhei um troféu, que guardo até hoje, de “Melhores da Semana”. Também fomos ao Flávio Cavalcanti, onde a múmia circulava livremente pelo estúdio, como se fosse um louco. Ela invadia o palco e interrompia o apresentador, que fazia o gênero mal-humorado. Ao contrário dos meus colegas, para mim a produção de um filme não se encerra na primeira cópia. Não sossego enquanto não vejo o filme na mídia e a sala cheia.
Quando O segredo da múmia estreou, foi uma loucura. Na própria Embrafilme sacaram que o filme ia bombar. O Gonzaga De Lucca era o novo gerente de comercialização da Embrafilme. E devo ao Gonzaga, boa parte do nosso sucesso. Ele escolheu como estratégia lançar o filme em São Paulo, por causa do espaço que eu tinha na Folha e pelo ambiente lá ser mais favorável ao tipo de filme que eu fazia.
Todo o filme carioca fracassava em São Paulo. O Gonzaga achava que, se a gente dominasse a capital paulista, ganhava fácil o Rio e o resto do país. No Art-Palácio, que era um cinema quase do mesmo nível do Ipiranga e do Marabá, e no Top Cine, localizado na Paulista, o filme entrou em cartaz no início de dezembro. Mas teria que dar lugar a outra fita no dia 25. Quando o exibidor marcava um filme que era do interesse dele, pouco importava a lei de obrigatoriedade. A combinação era que eu ficaria apenas duas semanas. Mas, no Top Cine, o filme fez uma excelente bilheteria. Faltavam apenas 30 espectadores para o filme dobrar. Aí o Gonzaga comprou trinta ingressos e fez o cara da bilheteria rodar a roleta 30 vezes. O exibidor, que era o Gabriel Albicocco só faltou subir pelas paredes. Porque tinham tirado a gente do Art-Palácio, mas tiveram nos engolir no Top Cine, porque estávamos dentro da lei. Se você fizesse a renda média da sala, você podia ir dobrando o número de semanas em cartaz. O filme foi muito bem em São Paulo. Todas as críticas foram positivas. A coisa extrapolou o Jairo Ferreira. O Rúbem Biáfora, o Edmar Pereira, o Sérgio Augusto, o Miguel de Almeida... Toda a imprensa paulista foi simpática a múmia brasileira.
Depois O segredo da múmia foi lançado no Rio de Janeiro e no nordeste do país pelo grupo Severiano Ribeiro, sempre em grandes circuitos. Fizemos mais de 300 mil espectadores, uma verdadeira façanha para um filme udigrudi. Posso dizer até que recuperei a tradição de O bandido da luz vermelha. A partir dessa época, como eu também sempre fui produtor, passei a ligar para os gerentes dos cinemas todo dia, depois da sessão das dez, e a registrar em gráficos a bilheteria dos meus filmes. Tenho esses gráficos até hoje e, com eles, aprendi muita coisa. Com o passar dos anos e os sucessivos filmes, cheguei a duvidar, devido a clareza dos dados e a regularidade dos números, se as pessoas iam ver o meu filme ou se elas, na verdade, eram assíduas frequentadoras daquelas salas de cinema?.
O Festival de Brasília, junto com o de Gramado, eram as principais vitrines do cinema brasileiro. Com certeza, o grande número de prêmios que ganhamos foi outro dado fundamental para o êxito comercial do filme. No Festival de Gramado, por ironia do destino, quem mandava no júri era o Joaquim Pedro de Andrade, que era fã do Wilson Grey. E o Grey acabou levando o Prêmio Especial. Mas ficou triste, porque ele sonhava ganhar o de Melhor Ator. A Múmia foi marcante não só pelo resgate dos atores da chanchada, como também pelo aproveitamento de elementos que não eram atores. O Felipe Falcão, por exemplo, para surpresa geral, ganhou o Prêmio de Ator Coadjuvante! O Rubens Lucchetti levou, merecidamente, o Premio de Roteiro. E o maestro Julio Medaglia ficou com o de Trilha Sonora. Apesar da trilha ter sido creditada exclusivamente a ele, cabe esclarecer que foi um trabalho de equipe e que contou com a contribuição do próprio Santeiro e minha também.
Esse prêmio de Trilha Sonora criou uma polêmica enorme. O David Tygel e Sergio Sarraceni encabeçaram um abaixo assinado que dizia ser um absurdo nos premiar porque a música do nosso filme não era original. Mas acontece que não era um prêmio de música original, e sim de trilha sonora. A gente foi defendido pelo Nélson Motta, que escreveu um artigo brilhante sobre “O Segredo da Mumia”. Foi esse artigo, publicado na Última Hora, que definiu o “terrir” como sendo o meu gênero. E foi o Gilberto Santeiro que completou: “Se o Hitchcock é o Mestre do Suspense, você será o Mestre do Terrir”.
Depois, no Festival de Brasília, ganhamos mais 5 prêmios. Faturei o de Melhor Diretor; o Grey, finalmente, foi eleito Melhor Ator; o Gilberto ganhou o Prêmio de Montagem; o Óscar Ramos merecidamente ganhou Cenografia e o Medaglia, novamente venceu na categoria Trilha Sonora. Em sua vitoriosa carreira, “O segredo da Múmia” totalizou 17 prêmios. O “terrir” foi lançado de maneira espetacular. Em Gramado, tinha um representante do Festival Internacional de Cinema Fantástico de Madrid que viu a Múmia e quis exibir o filme na Espanha. Nessa oportunidade, conheci o John Gilling e Sam Peckimpah. Na Espanha, acabei ganhando o Prêmio da Crítica (o meu primeiro prêmio internacional).
Quando ganhei esse prêmio na Espanha, passei por Paris e fui procurar a representação da Embrafilme, que era chefiada pelo Ewerton Machado. Na ocasião, o Jorge Peregrino, chefe do Departamento Externo da Embrafilme, também estava em Paris. E como o meu filme tinha ganhado um prêmio Internacional, ele me convidou para ir ao Festival de Cannes. Foi quando tive a oportunidade de tirar as fotos do Godard.
Foi a minha estréia no Festival de Cannes. “O Segredo da Múmia” foi exibido no maior mercado de cinema do mundo, com direito anúncio nas principais revistas especializadas. O filme foi muito bem recebido e acabou fazendo sucesso no mundo inteiro. Fui convidado para o Fantasporto, para o Festival da Bélgica e vários outros festivais. Várias pessoas escreveram sobre a Múmia, que se tornou cult. Na ocasião, conheci o Justino Martins, que fez uma grande reportagem sobre mim na Manchete. Foi um filme que me abriu muitas portas e que me botou na vida. Também estreitei laços de amizade com o Walter Hugo Khoury e o Anibal Massaini. Como eu fazia um cinema comercial não alinhado com a turma do Cinema Novo, foi fácil me aproximar do pessoal de São Paulo. O Khoury tinha acabado de fazer o “Eros, o Deus do Amor”, produzido pelo Enzo Barone, e se preparava para fazer o “Amor, estranho amor”, com o Massaini. O Enzo não tinha projeto e o Khoury nos apresentou, para que o Barone fosse produtor das “As Sete Vampiras”, o filme que ambicionava fazer a seguir.
Em Gramado o Anselmo Vasconcelos havia me apresentado a Carla Camurati, que achei perfeita para essa nova produção. O dinheiro que a Embrafilme havia nos dado para a Múmia era tão pouco, que não tivemos dificuldade em zerar nossa conta com a distribuidora. E a Embrafilme tinha uma regra espetacular. Se o financiamento para um filme fosse pago, você estava automaticamente credenciado a receber um novo.
Devido ao sucesso do “Segredo da múmia”, e a influência do Júlio Medaglia na TV Globo, o núcleo do Walter Avancini me chamou para fazer uma novela de múmia. Passei uma semana em São Paulo, trancado num hotel junto com o Rubens Lucchetti, o Daniel Más e outro roteirista – todos nós já contratados – tentando desenvolver um argumento.
O Daniel tinha muita imaginação e facilidade para escrever. Ficava o tempo todo competindo com o Rubens, embora não tivesse intimidade com o universo do horror. O Daniel era trash e achou o Lucchetti uma peça de museu. Ele nunca tinha visto nada igual. O Lucchetti é muito tímido, cheio de manias – só escreve na própria máquina, na casa dele, sozinho – e acabou fugindo de São Paulo para Ribeirão Preto, onde tinha voltado a morar.
De fato, o processo criativo a quatro é difícil. Ainda mais com o diretor presente. Estou falando do Lucchetti, mas eu também tinha os meus limites. Após muitas brigas e discussões, finalmente o Lucchetti conseguiu fazer um primeiro tratamento, que depois foi adaptado ao padrão global pelo Daniel. A história ficou até legal. Mas foi uma pena, porque o núcleo do Avancini foi extinto e perdemos essa oportunidade.
O segredo da Múmia, graças ao Lucchetti, teve a felicidade de ser lançado em quadrinhos. Sempre fui leitor de histórias em quadrinhos, mas nunca militei nesse mundo. Na época, também, as revistinhas de terror made in Brazil praticamente nem existiam mais. Já foram as últimas gotinhas. Eram as editoras querendo surfar no sucesso do filme. De qualquer jeito, consegui migrar para essa mídia, o que foi muito legal. Fui um dos poucos cineastas brasileiros, além do Mojica, teve esse privilégio....
OS BONS TEMPOS VOLTARAM – VAMOS GOZAR OUTRA VEZ
Quando voltei ao Brasil, cheguei a ter várias reuniões com o Enzo Barone e o Renato Grecchi, em São Paulo, para tentar fechar o negócio de As Sete Vampiras. O Barone era mais produtor de comercial e os atrativos que eu tinha para seduzí-lo – além do sucesso, da repercussão e dos prêmios obtidos com O Segredo da Múmia – era a possibilidade de ter a Carla Camurati e o Mário Gomes, dois astros “globais”, como protagonistas do filme.
Mas, infelizmente, o negócio acabou gorando porque o Barone teve um problema e foi obrigado a viajar para Honolulu. O concurso da Embrafilme foi se aproximando e me vi forçado a arranjar outro produtor de qualquer maneira. Acabei procurando o Aníbal Massaini, que topou entrar no negócio, mas com uma condição. Ele queria que eu o ajudasse a terminar uma comédia baseada em histórias de sexo entre primos. O Massaini já tinha um primeiro episódio pronto, dirigido pelo Walter Hugo Khoury, chamado As primas, e queria fazer mais dois episódios, de 30 minutos cada.
Imediatamente fui para sauna do Jóquei Clube. Li um monte de contos eróticos da revista masculina Ele & Ela e bolei um argumento de arrepiar, intitulado Sábado Quente. Convidamos o Daniel Más para fazer o roteiro. O Daniel tinha prestígio enorme em São Paulo. Ele era editor da Vogue e também tinha escrito novelas para a TV Tupi. Na época, ele tinha acabado de escrever um Caso Especial para a Globo e estava voltando a militar nessa área.
Foi legal, porque o Aníbal aceitou, além do Daniel como roteirista, o Óscar Ramos na direção de arte e o Carlos Egberto Silveira como fotógrafo e câmera. Ele vinha do Menino do Rio e de outros filmes da LC Barreto. Era um fotógrafo que já tinha passado pelo cinema paulista e havia estudado na Inglaterra, na The London Film School. O Egberto é o melhor iluminador que eu conheço.
O Daniel Más era uma língua muito ferina. Um jornalista que revolucionou o colunismo social, ou melhor, sexual. Foi uma espécie de precursor do besteirol, embora não tenham lhe dado esse reconhecimento. O Daniel era muito pervertido e fez um roteiro, cheio palavrões e de sacanagem, que satisfazia plenamente as taras do Aníbal. Embora eu próprio tenha feito o argumento, roteiro para mim é apenas uma série de indicações. Caminhos para eu compor as imagens que me fascinam. Eu até gosto de, no decorrer das filmagens, aumentar os papéis dos atores que estão mais afinados e criando o filme comigo. Reconheço que isso seja um problema para a produção. No sentido que acabo filmando coisas que não estavam previstas, mais de qualquer jeito isso sempre funcionou.
Os bons tempos voltaram lançou vários atores no cinema: meu primo Pedro Cardoso, o Alexandre Frota, a Karina Cooper, o Paulo César Grande, a Karen Accioly e o André Felipe Mauro, que era do neto do Humberto Mauro. Essa fita também foi sensacional porque eu tive a oportunidade de trabalhar com vários atores veteranos que já tinham participado de outras produções da Cinedistri – como a Consuelo Leandro, o John Herbert, a Zezé Macedo, o José Lewgoy, o Tião Macalé, o Colé e o Wilson Grey. Completam o elenco, a deliciosa Tânia Bôscoli, a versátil Maria Gladys e a escultural Matilde Mastrangi – uma verdadeira deusa do sexo da Boca do Lixo.
Os bons tempos voltaram não é um filme de terrir, é uma comédia. Mas eu também já havia feito várias comédias em Super 8. Além disso, sempre fui fascinado pelo mundo kitsch do cinema erótico e era um espectador assíduo das pornochanchadas. Vi que a Múmia havia funcionado e queria fazer mais filmes. Os bons tempos foi filmado em 83, logo em seguida à Múmia. O filme foi lançado em 84, um ano fraco para o cinema brasileiro, mas teve muito mais bilheteria que a Múmia. Acho também que o ciclo da pornochanchada estava acabando. Mesmo assim, a fita ficou no terceiro lugar de bilheteria daquele ano. Fez perto de 1 milhão de espectadores. Só devo ter chegado atrás dos Trapalhões e de mais outro filme pornô..
Pela primeira vez, eu tive a possibilidade de filmar com duas câmeras. O Aníbal é um excelente produtor. E quando ele está no set, faz tudo: sobe em escada, acende refletor, bate claquete, etc. O Massaini tem uma vitalidade incrível. Pela primeira vez, vi uma pessoa que tinha mais energia do que eu. Tive até problemas com ele por causa disso. A gente tinha acabado de ter uma reunião. E quando eu chegava em casa, o telefone já estava tocando. Era o Aníbal, que já tinha mudado isso e aquilo. Ele era incansável na produção e tinha muita disciplina. É o sistema de produção mais parecido com o do Júlio Bressane que eu já vi na minha carreira. Só que totalmente voltado para o comércio e com muito mais bala na agulha. O Júlio não tinha produtor. E o Aníbal tinha o seu irmão caçula, o Oswaldinho, sempre com a sua mala 007 cheia de dinheiro, pagando todo mundo na hora e fazendo as coisas acontecerem no set.
Foi uma pena porque, no final, por uma série de contingências, a gente não pode concluir a filmagem dentro do plano previsto, que eram duas semanas. O Carlos Egberto passou mal no dia que a gente ia filmar a cena em que o Pedrinho Cardoso desvirgina a Carla Camurati, que era sua prima na história.
Era o clímax do filme. Talvez o resultado dos Bons Tempos pudesse ter sido ainda melhor se a cena fosse filmada naquela noite. E teria evitado uma série de aborrecimentos. Porque, aí, houve uma briga danada entre os atores e o produtor. Esta cena era a mais importante para conclusão do roteiro que os atores haviam lido e aceitado encenar.
Ai criou-se um impasse. Tentamos filmar mais duas vezes essa cena, lá no Pontal do Recreio dos Bandeirantes. Na primeira tentativa, o Pedro Cardoso pisou num prego, durante um ensaio de teatro. A cena era na praia e ele não poderia enfiar o pé machucado na areia. Então adiamos novamente a filmagem. Na segunda tentativa, a Carla Camurati arrumou um torcicolo – que é o tipo da desculpe clássica de atriz. O Massaini é um produtor que está acostumado a lidar com esse tipo de problema. Levou até um médico na casa dela. Só que ele estava acostumado a trabalhar com feras mais domáveis que a Camurati e o Pedro, estrelas que escaparam totalmente do seu controle.
Isso foi muito ruim, porque desencadeou uma série de brigas e acabei perdendo o maior produtor com o qual já trabalhei. O filme também era co-produzido pela Embrafilme. O Carlos Augusto Calil, que era o diretor da estatal, felizmente gostou do material filmado e consegui apaziguar a gente. Todas as partes assinaram um acordo e fui novamente contratado, pelo Massaini, para rodar a tal sequência sem a qual os Bons Tempos não se completaria. Só que a cena não ficou com a temperatura que o Anibal desejava. Eles fizeram uma cena romântica e o filme beirava a pornochanchada…
Montei o copião com Éder Mazini, um excelente montador. Ele era muito ligeiro, nunca trabalhei com um editor tão rápido. Fiz um primeiro corte aqui no Rio, com o lendário Radar, na moviola do Pedro Rovai. E o filme foi para São Paulo, para o Éder fazer o acabamento. Fui lá só para colocar as músicas e dar o corte final. Depois que a fita estava pronta, o Anibal deu o pulo do gato, acrescentando – como era hábito em muitas pornochanchadas – cenas com dublê de corpo... Só que, aí, como os atores já tinham assinado um novo contrato, não houve jeito de reclamar.
A principio, as cenas me chocaram. Depois, pensando melhor, vi que esses takes acrescentados também eram artísticos. Porque só o cara arranjar os dublês de corpo e fazer a falsificação já era uma coisa sensacional. Da minha parte, não me envergonho da obra. Pelo contrário, me orgulho bastante de Os bons tempos – Vamos gozar outra vez. Acho que o filme tem planos sensacionais e muita coisa bacana. A fotografia do Egberto, por exemplo, é espetacular. A cenografia e os figurinos do Óscar também são de primeira. A própria Camurati está deslumbrante no filme.
Mas, ao mesmo tempo que os atores reclamavam da presença de um produtor tão agressivo assim no set, o Aníbal também me dava muita liberdade em várias outras áreas. Por exemplo, no caso da contratação da jovem atriz Karina Cooper. A Cinedistri tinha a tradição de contratar ex-misses para papéis co-adjuvantes e, a princípio, foi um choque para o Massaini a minha indicação da Karina, que não era exatamente um modelo de beleza, mas uma ótima comediante. Ela acabou roubando a cena nos Bons Tempos e foi muito ousada nas cenas de sexo com o André Felipe Mauro e o Paulo César Grande, na época um ex-jogador de basquete.
Outro ponto alto do filme foi a recriação do antológico Os Brotos Comandam, programa de rock’n’roll que o Carlos Imperial fazia na Rádio Guanabara, no final dos anos 50. A locução, recriada pelo próprio Imperial, costura boa parte do filme e ficou muito legal. Eu tinha conhecido o Imperial nas filmagens de O monstro caraíba, do Júlio Bressane. Foi um reencontro maravilhoso que só possível também graças ao Aníbal, que era seu grande amigo. O meu incansável produtor também conseguiu os direitos de músicas da Cely Campelo, de vários roquinhos brasileiros dos anos 50 e do clássico “It’s now or never”, de Elvis Presley. A trilha sonora dos Bons Tempos chegou a ser lançada em disco pela Fermata. Foi sensacional.
AS SETE VAMPIRAS
Desde a primeira vez que eu ouvi o título As Sete Vampiras do Lucchetti, achei fabuloso. Enxerguei ali um potencial comercial enorme. Imediatamente vi escrito nas marquises dos cinemas. Se uma vampira já era de arrepiar, sete então... Era um verdadeiro buquê de vampiras! Isso foi antes do lançamento de O Segredo da Múmia. O Lucchetti já tinha voltado a morar em Ribeirão Preto e começou a me mandar alguns tratamentos, mas ao desenvolver o roteiro, não calculei o enorme desafio que estaria enfrentando. Felizmente resolvido mais tarde pelo Óscar Ramos.
Rodei As Sete Vampiras inteiro em oito semanas, mas só consegui realizar a seqüência da planta carnívora devorando o botânico, que abre o filme, um ano depois. O Óscar já trabalhava na Croma, do Odorico Mendes. Era uma grande produtora de São Paulo, que fazia muitos comerciais, e foi lá que ele conseguiu o contato de uns garotos pirados que construíram a planta toda em látex. O Óscar apenas desenhou essa planta, que me orgulha muito até hoje. O próprio Roger Corman considera a minha planta carnívora muito melhor que a da Pequena Loja dos Horrores.
De todos os meus filmes, As Sete Vampiras é o que eu mais gosto. Porque foi o que me deu mais dinheiro. Além disso, foram várias coincidências muito prazerosas. Primeiro a gente ter conseguido filmar no Quitandinha, outro lugar que eu ia muito quando era criança, em festas e bailes de carnaval. Todo mundo que vai a Petrópolis passa pelo Quitandinha. Não sei se ele foi o maior cassino brasileiro, mas foi seguramente o mais famoso. É um prédio de arquitetura normanda, muito bonito. Por dentro é tudo enorme e tem uma decoração que remete a cenografia dos filmes de Hollywood. Nas Sete Vampiras, o Quitandinha funcionou como um verdadeiro estúdio de cinema. E foi o meu primeiro filme produzido pela experiente Maria da Salete.
Como a “Múmia” tinha me revelado – e me projetado – como “o mestre do terrir” e os “Bons tempos” tinha feito uma excelente bilheteria, consegui atrair dois nomes de peso da iniciativa privada para investir no filme. O primeiro foi o empresário Mauro Taubman era o dono da Company e um verdadeiro rei Midas – onde esse cara botava a mão virava ouro... Aqui no Rio, a Company era uma marca de qualidade na área de roupas esportivas. O Mauro era um grande investidor de eventos para jovens e nunca tinha produzido cinema. Então a entrada do Mauro Taubman no filme foi um atestado de que aquilo era um bom negócio. A primeira cartela do filme era: “Ivan Cardoso e Mauro Taubman apresentam”...
“As Sete Vampiras” foi também o meu primeiro filme co-produzido pelo playboy Cláudio Klabin, que é um dos meus melhores amigos. Na época, a Salete também arrumou um apoio do Flavio Holanda, que locava equipamentos de iluminação. Um dos maiores problemas do cinema – e não foi diferente nas “Sete Vampiras” – é a parte de iluminação. A quantidade de luz que é usada é a principal diferença do cinema americano para o cinema brasileiro. Fotografia é luz. Quanto mais luz você tem, ainda mais na mão de um fotógrafo como o Carlos Egberto, mais você vai poder pintar o set – literalmente. E isso é sempre uma guerra danada entre a produção e o fotógrafo.
E a fotografia das Sete Vampiras é deslumbrante e mereceu até o prêmio Kodak. O Egberto, apesar de ter um estilo muito particular de trabalho, brilhou. Na época, ele tinha assistentes maravilhosos. O César Elias era o câmera. O Sérgio Leandro (o “Ratinho”) era o segundo assistente e fazia o foco. O “Ratinho” pegava onda no Arpoador, atualmente trabalha mais em Hollywood que aqui. E ainda tinha um terceiro assistente, o Marcelo Rocha (vulgo “Apparechio”) que hoje em dia é um dos maiores fotógrafos de comerciais de São Paulo. O Egberto é um artista excêntrico. Ele fotometrava a cena e jogava o Spectra para o alto e para trás. Uma das funções do “Apparechio” era voar e agarrar o fotômetro. Se caísse no chão, ele tomava aquele esporro.
Com o dinheiro da Embrafilme e desses dois sócios, pude de fato fazer o filme que eu queria fazer. A gente teve a felicidade de encomendar a música tema do filme ao Léo Jaime. A CBS, que era a gravadora, entrou em entendimentos conosco e com a Embrafilme para sincronizar a data de lançamento do filme com o período que a música seria trabalhada pelas rádios. A “Vampira” já foi um filme produzido, senão industrialmente, semi-industrialmente. Desde do início da produção, já tinha a data de lançamento. Era no fim do ano, nas férias de dezembro, e nos interessava que a música começasse a tocar na rádios em outubro. Produzimos, até, um vídeo clip para sua divulgação.
A indústria fonográfica, pelo menos naquela época, dominava a programação das rádios FM através do jabá. O disco do Léo Jaime foi lançado no meio do primeiro semestre e, cada dois meses, trabalhavam uma faixa. “As Sete Vampiras” seria a terceira ou quarta faixa a ser trabalhada. Era o tempo exato pra ela chegar as paradas de sucesso, às vésperas do lançamento do filme. Acontece que, nem a gravadoras, muito menos nós, tínhamos controle sobre as rádios AM. E a música estourou na AM uns seis meses antes do filme sair. Aí não teve como controlar mais. Foi até uma coisa que nos preocupou muito, mas depois acabou tudo dando certo. “As Sete Vampiras” foi um dos maiores sucessos do Léo Jaime. Ela foi mais que um sucesso, porque tocou insuportavelmente. Por sugestão do Santeiro, o trailer ficou assim: “Depois do sucesso da música, Ivan Cardoso traz para o cinema “As Sete Vampiras”. A música era realmente uma música tema, porque contava, mais ou menos, a história do filme: “São sete garotas”...
Fora a que havia sido encomendada ao Léo Jaime, o resto da trilha sonora foi toda composta pelo maestro Julio Medaglia e gravada pelo Amilton Godoy, lá em São Paulo. O Medaglia também foi sempre uma pessoa muito sintonizada e interessada em tudo, não só pelo trabalho dele. Não tinha nenhum tipo de problema relacionado a questões autorais. Eu levava os discos do Bernard Hermann e do Alfred Newman e pedia pra ele fazer a trilha naquela linha. E ele fazia, sem maiores problemas. E a trilha ficou excepcional.
A direção de arte de As Sete Vampiras também é soberba. O Quitandinha era um cenário pronto. A gente só precisava adornar, colocar adereços, telões de papelão, essas coisas. Uma coisa que eu já tinha percebido na “Múmia”, apesar dos poucos recursos, e pude constatar no “Bons Tempos” também, é que o Óscar também era um puta figurinista, então a gente investiu muito neste setor e foi muito feliz também.
Eu achava a Nicole Puzzi fantástica. E uma coisa que eu sempre imaginei foi ela no papel da Silvia. Eu a contratei pelos os seus lindos cabelos longos e lisos, que é um tipo ideal para vampira. Mas no dia da filmagem, ela chegou em Petrópolis com o cabelo encaracolado. A sorte é que o Óscar conseguiu dar um jeito pra ela ficar mais de acordo com o personagem. Mas aí, ela já tinha perdido um terreno enorme no filme. O diretor comprou gato por lebre.
A Andréa Beltrão foi uma atriz por quem eu me apaixonei desde o primeiro momento que a vi. Tive que bloquear minhas emoções porque ela era casada com meu primo Carlinhos, o irmão Pedro Cardoso. Tanto é que, em seguida, ela veio fazer o papel principal no Escorpião. Eu a considero uma atriz maravilhosa e um grande talento cômico. Ela é muito engraçada, sem ser tão freak como a Regina Casé. A Regina Casé já é muito caricata, uma Zezé Macedo pós-tudo. Naquela época, a Beltrão era uma novidade e era muito jovem, atraente, sedutora e carismática. Uma atriz irretocável e me deu muita alegria ter podido trabalhar com ela, principalmente nas “Sete Vampiras”.
Além da Andrea e da Nicole, eu tive que escalar 7 vampiras. E, por conta disso, acabei consegui coisas que até Deus duvida. Contratar a Simone Carvalho, que era uma Rainha da Pornochanchada, para um papel secundário. Consegui esta façanha graças a amizade com o marido dela, o produtor e diretor Cláudio Cunha. A Simone é uma pessoa muito doce e um dos rostos mais cinematográficos que eu já filmei na vida – principalmente caracterizada de vampira. Tanto é que ela foi a imagem de venda de As Sete Vampiras.
A Lucélia Santos também é uma pessoa que eu lamento não ter tido outras oportunidades de trabalhar. Ela não só é uma tremenda atriz, mais uma das pessoas mais generosas que eu conheci. O papel dela também era pequeno, apesar dela ser a líder das “vampiras”. “As Sete Vampiras”, no filme, é um show que acontece na boate do Quitandinha. Depois de ter estrelado não sei quantas novelas, de ter sido a “Escrava Isaura”, de ter feito inúmeros filmes e de já ser um dos maiores nomes do cinema brasileiro, a Lucélia não fez nenhuma objeção em aparecer de peito de fora e tanga, caracterizada de vampira, dividindo o palco com mais 6 meninas e o Pedro Cardoso. Ela foi muito legal.
Nosso elenco tinha outra Rainha da Pornochanchada paulista, que era a Alvamar Taddei. Uma mulher que tinha um corpo sensacional e não tinha problema nenhum de ficar pelada. E tinha ainda a Dedina Bernadelli, uma louraça com peitão, muito bonita, que eu lancei. A Tânia Boscoli, que já tinha feito comigo a “Múmia” e os “Bons tempos voltaram”, uma grande amiga minha. E a Danielle Daumerie, uma menina que eu vi na praia, de topless. Ela tinha apenas 14 anos e só trabalhou com autorização dos pais e do Juizado de Menores. Cabe registrar que eu descobri a Danielle muito antes do Lobão...
E fechando esse time, que fez mais de um milhão de espectadores, uma atriz que eu gosto muito, que é a Suzana Mattos. Para o papel dela eu estava procurando esse biotipo que começa com a Lana Turner, a loura do cinema americano, e que, no “Segredo da múmia” tinha sido Clarice Piovesan. A gente procurou, procurou... Eu tinha ficado amigo do Moacir Deriquém, que era um cara que sabia quem ia acontecer no elenco da Globo. Se você precisasse de um ator, ligava para o Deriquém e ele te mandava cinco. A gente procurou essa loura através de revistas tipo Playboy e Ele & Ela, no cinema, na TV, no teatro... Mas não encontrava – e olha que eu fiz teste com tudo que é loura que tinha praça.
Acabamos ficando com a Lousie Cardoso, que passava no teste pelas qualidades de atriz e a pela beleza física, mas que não era se quer uma loura oxigenada. Foi o Roberto Carvalho, da Rob Filmes, quem falou: “Quem tem a mulher que você está procurando é o Déde Santana, é a mulher dele”. Na época nos procuramos o Dedé, mas o ele estava excursionando com os Trapalhões e a gente se esqueceu. Dois dias antes de começar o filme, chegou lá no meu escritório a Suzana Mattos acompanhada pelo Dedé Santana. Na hora, como eu já estava enlouquecido com os milhares de problemas que toda a produção tem, eu a vi, achei bonita, mas o elenco já tava fechado. Para não fazer uma desfeita, falei: “Leva ela lá na casa do Óscar, pra ter uma participação no filme”.
À noite, o meu assistente Alfinete foi na minha casa e falou: “Cardoso, você não viu que aquela menina que foi lá no escritório era quem a gente estava procurando? Ela foi à casa do Oscar e todo mundo do departamento de figurino ficou louco. As roupas ficaram perfeitas”. O Óscar é um cara todo britânico e refinado, nunca quer te estressar ou trazer problemas. Ele não tinha me falado isso porque sabia que, há dois dias do filme começar, ia ser um perrengue. Ai o Alfinete falou: “Liga pro Óscar e pergunta pra ele se não é verdade isso que eu estou lhe dizendo”. Então eu liguei para o Óscar e ele confessou que a personagem tinha estado na casa dele. O que os olhos vêem, você não pode negar.
Ai eu fiquei com um problema enorme – descontratar uma atriz do quilate da Louise Cardoso, há dois dias do inicio das filmagens. Era como romper um noivado, você vai dizer o que? O meu critério sempre foi trabalhar com tipos. Eu não sou diretor de teatro, não componho personagem. Eu já escolho o ator certo para o lugar certo. Então a gente contratou a Suzana. E depois, na prática, isso criou outros problemas.
A Nicole tinha sido namorada do Dedé e a primeira cena que a Suzana tinha que filmar era com ela. Aí a Suzana ficou tão nervosa que não conseguiu falar o texto. Eu quase enlouqueci. O papel da Suzana é um dos principais nas “Vampiras” e poria em risco a produção... Cheguei a dar um telefone inusitado pra a Louise Cardoso, perguntando se ela não queria dar aulas pra Suzana... Paguei um segundo mico com Louise... Mas, não sei qual dos assistentes percebeu que, ao bater o texto com o Dedé, que ficava o tempo todo no set, a Suzana falava com voz de boneca e,naquele tom, daquele jeito, ela conseguia falar... Na verdade, ela tinha um personagem. Então não houve mais problema.
O elenco “all stars” das Sete Vampiras contou também com a participação do irresistível Carlo Mossy, que trabalhou no filme de graça. O Mossy fazia o papel de um fotógrafo que tirava fotos da Suzana Matos interamente nua, numa das mais belas sequências do filme. Isso deixou o Dedé Santana em transe, porque ele morria de medo que o Mossy devorasse a sua loirinha. Foi engraçado que, pra fazer a cena, a Suzana ficou inteiramente nua, mas colocou um esparadrapo cor de pele na “periquita”. Uma coisa manjada desses filmes “nudies” antigos, mas que eu nunca tinha visto. Uma coisa do além.
Na época de lançamento do filme, ela acabou sendo capa da Playboy – com texto de apresentação escrito por mim. Também foi capa da Ele&Ela e saiu nua em tudo que era revista. E as outras vampiras também... “As Sete Vampiras”, graças ao Taubman, a Embrafilme, aos méritos do próprio filme e ao meu esforço, teve todo trabalho de mídia muito grande. Eu investia muito nas fotos de cena. Contratei o Sérgio Pagano e o Alexandre Salgado pra fazerem o still e, seis meses antes do lançamento do filme, todo mês tinha foto de mulher pelada no filme em alguma revista.
Na área das homenagens aos artistas veteranos também fui muito feliz. Transformei o Wilson Grey em Fu Manchu. Continuei trabalhando com o Colé, que teve o papel que eu mais gostava no filme, o do inspetor Pacheco. Todo muito torcia por esse personagem, ele era um detetive biruta que trabalhava sob a batuta do delegado interpretado pelo Bené Nunes, que se tornou outro grande amigo pessoal e que me chamava de “o terrível”. Foi uma coisa que muito me honra, essa relação com o Bené Nunes.
O Bené era um grande pianista e participou de umas dez chanchadas. Algumas como galã, outras como co-adjuvante. Os papéis que ele fazia nos meus filmes eram pequenos. Ele já estava velho, não entendia porque que eu queria filmarcom ele e trabalhava sem ganhar nada, só por farra mesmo. O Ivon Cury, nas “Sete Vampiras”, faz o personagem do Barão von Pal, e também fico muito feliz de ter sido amigo do Ivon. Do elenco das chanchada trabalham ainda nas “Vampiras”, a fenomenal Zezé Macedo e o galã John Herbert (no papel de dono da boite do Quitandinha). A Zezé acabou virando um xodó meu e de toda a equipe. Nas filmagens, era uma ciumeira danada entre as “vampiras”. A Zezé, embora fosse muito mais velha que as outras atrizes, acabou correndo por fora e pagando place. Como o personagem dela contracenava com a Andrea Beltrão, ela foi ganhando peso. O casting de estrelas masculinas trazia também o Léo Jaime (o cantor da boate), o Ariel Coelho (o botânico que é comido pela planta carnívora), o Nuno Leal Maia (o detetive Raimundo Marlou) e as participações especiais de Tião Macalé e Dedé Santana. E não poderia deixar o Felipe Falcão de fora do elenco. Ele é porteiro dos fundos da boate que odeia as mulheres. A boate do Quitandinha também teve vários frequentadores ilustres. Entre eles, o Mariozinho de Oliveira, o Sandro Solviati, a Neuzinha Brizola, o Altair de Oliveira Lima e o jornalista Matinas Suzuki – que até hoje brinca comigo porque coloquei ele de mafioso japonês.
Foi uma pena o Ariel Coelho ter morrido tão jovem. Se o Sérgio Leone o tivesse conhecido, certamente ele teria feito vários faroeste spaghetti. O Ariel tinha a cara que a câmera gosta, uma cara de cavalo. Um rosto enorme, estranhíssimo. Um ator com “fisique de role” pronto para filmes de terror. O Nuno Leal Maia era o galã do filme. De todos os atores, o Nuno era o meu amigo mais íntimo, o que trabalhou no maior número de filmes meus, mas foi o único que criou problema. O papel dele era uma homenagem ao Philip Marlow. Era para fazer um detetive clássico, tipo Humphrey Bogart, mas ele entrou numa de fazer o papel cômico. Isso acavalava com o personagem do Colé.
É mais dificil dirigir ator do que atriz. Porque mulher você gosta, então você atura, tem mais saco. O que a Nicole fez no cabelo, ela pagou com maquiagem de látex que o Antônio Pacheco botou na cara dela. No filme, ela é vitima da planta e sofre um processo de envelhecimento acelerado. Para fazer essa maquiagem, o Pacheco demorava de duas a três horas. Chegava até a irritar a pele do rosto da Puzzi. Era muito sacrificante e ia piorando cada vez mais. Um dia, ela estava um monstro, tinha sofrido muito para colocar a maquiagem. O Nuno – pra fazer pirraça comigo, porque eu cobrava dele uma postura de mocinho – na hora de filmar falou que tinha esquecido o personagem. Ai eu falei: “Cara, o personagem é você! Como é que você pode ter esquecido quem você é?”. Como ele não queria se lembrar quem era, mandei apagar a luz e falei: “Então vamos esperar meia hora pro cara se lembrar do personagem”. A gente só ouviu a Nicole Puzzi grunindo, por debaixo da maquiagem: “Não! Não!”. O mocinho rapidamente se lembrou do papel.
A Simone Carvalho tinha extrapolado a pornochanchada e já estava fazendo uma novela na Globo chamada Vereda Tropical. Quando ela foi assinar o contrato, falou que ficava só de tanguinha, durante a cena do show, mas que não queria ficar nua, da cintura para baixo, numa cena de banho que tinha no roteiro. Ela explicou que não era por problemas morais e sim porque um acidente de carro havia deixado uma cicatriz enorme na sua coxa esquerda. Como nos interessava muito a contratação dela, aceitamos. Mas quando assinei o contrato, falei que o importante era que ela tomasse um banho sensual: “Se você vai se sentir mais a vontade só mostrando os seios, que mostre com todo o erotismo. Se você quiser, pode até tomar o banho de calcinha”. Só que, na verdade, eu queria é que ela ficasse completamente nua. Eu faço cinema pra ganhar dinheiro. Naquele tempo, uma mulher como a Simone Carvalho nua, era certeza de cinema cheio. Era fundamental para a carreira comercial do filme.
Pra nossa sorte, a cena que ela teria que ficar nua foi filmada no Rio de Janeiro, depois do Quitandinha. A Simone já tinha filmado todo o papel, tinha visto o nosso empenho para realizar o filme. Só faltava a cena do banho. A coisa mais dificil para os atores, os diretores e para o filme, é essa maneira de filmar a história fora de ordem. A novela é muito mais fácil, porque o personagem vai crescendo com a trama. Se você pudesse filmar o script do principio ao fim, o filme ficaria muito melhor.
O Egberto é um fotógrafo clássico, que trabalha dentro dos padrões hollywoodianos. Nas “Sete Vampiras”, ele preparava a luz e ia beber alguma coisa. A cena foi filmada no banheiro de mármore de um apartamento na Vieira Souto, que era da Beki Klabin, mãe do Claudio. Estava me preparando para filmar com o César Elias, quando recebi um recado que a Simone Carvalho queria falar comigo. A Simone queria saber se alguém poderia comprar um conhaque. Na minha cabeça, imaginei que era por causa do banho, que era frio. Mas, quando ela veio filmar, perecebi que estava completamente nua. Dei um cutucão no César, sem demonstrar muito a minha empolgação. O César, que era o meu terceiro olho, trocou a lente da câmera e lambeu o corpo dela de cima a baixo, pelo lado que não mostrava a cicatriz. Ela não só revelou os seios, como se revelou por inteiro…
Essa foi uma das cenas mais marcantes e sensuais do filme e no trailer. As Sete Vampiras foi um problema nos lançamentos no nordeste, principalmente em Recife e Fortaleza, porque os caras se masturbavam tanto durante o filme que acabavam dormindo. Quando acendia a luz, o cara estava desacordado, com o negócio para fora da calça… Isso foi documentado pela imprensa. As famílias ficavam horrorizadas. O filme fazia em São Paulo, no cine Ipiranga, cerca de 5 mil espectadores num fim de semana.
O Quitandinha era de enlouquecer. Aquilo era um estúdio. A maioria das filmagens eram noturnas. Eu poderia estar filmando lá até hoje, tamanha a exuberância arquitetônica do lugar. Aquilo me excitava muito. Para onde você olhava, tinha um plano. Na noite anterior as filmagens do show das “Sete Vampiras”, houve uma mudança no plano de filmagem. Nós devíamos ter escutado a Salete e parado de filmar às duas da manhã. Era a nossa filmagem mais importante, porque reunia as vampiras, o Pedro Cardoso, o Léo Jaime e os Miquinhos Amestrados, tinha coreografia, era bem complicado. Mas como a filmagem estava rolando bem entre o Nuno e a Beltrão, a gente percebeu que poderia adiantar várias sequências. E resolvemos atrasar a filmagem do dia seguinte. Mas o pessoal da produção, no Rio, não conseguiu ser informado a tempo. Ao invés de terminarmos as filmagens às duas, a gente foi até às cinco horas da manhã!
A Lucélia Santos, que mora no Itanhangá, foi a primeira “vampira” a entrar na kombi, às seis da manhã. A Lucélia e o Pedro Neschling, esse que agora trabalhou comigo no “Lobisomem na Amazônia”, mas que na época ainda era um neném de colo. Depois a kombi foi passando pelos outros bairros – Leblon, Ipanema, Copacabana, Botafogo – e pegando as outras atrizes. Onze horas da manhã, a gente é acordado, após poucas horas de sono, com a notícia da chegada das atrizes. A gente estava hospedado num hotel em frente ao Quitandinha. Tentamos oferecer um quarto para as atrizes descansarem, mas elas queriam filmar. Só para o Carlos Egberto fazer a luz do show, ele pediu cinco horas. Onze horas com mais cinco, as filmagens só poderiam começar às quatro da tarde. A Lucélia foi pega às seis da manhã, já estaria completando dez horas.
Enquanto o Egberto preparava a luz, o Carlos Wilson foi ensaiando a coreografia, as atrizes e os atores foram sendo maquiados e caracterizados, aquela coisa toda. Quando estava tudo pronto pra começar a filmar – a luz, as atrizes, a coreografia, tudo – caiu um raio em Petrópolis e nos queimou treze lâmpadas! Quase que impossibilita a filmagem. A gente tinha um parque de luz muito bom, mas treze lâmpadas significavam um prejuízo enorme. Quando você aluga o equipamento de luz, não sabe quantas lâmpadas vão queimar na sua mão e você vai ser obrigado a repor. Além disso, essa despesa vem depois do término das filmagens, quando você já não tem dinheiro. Cada lâmpada dessas é uma fortuna. Você era obrigado a comprar no mercado negro, dos eletricistas que roubavam da Globo e te vendiam pela metade do preço.
Para refazer essa luz, o Egberto me pediu de duas a três horas. O Eg é muito clássico, com ele não tem jeitinho. Ainda mais porque tinha que remanejar o que sobrou e redesenhar toda a iluminação. A Lucélia já tinha filmado papel todo e estava com viagem marcada para a China. Aquele era o seu ultimo dia nas “Vampiras”. Ou filmava aquele dia ou se perdia a Lucélia Santos. O número das “Sete Vampiras” era a parte mais importante do papel da Lucélia, que fazia a “Naiara, a filha de Dracula”. Ela chupava o sangue do Pedro Cardoso no show. Tinha toda uma historinha do personagem que perderia o sentido sem essa cena – e nós perderiamos esse still da Lucélia.
Por causa do atraso, a situação foi se deteriorando. As atrizes foram ficando exaustas. A Lucélia, como toda líder (ainda mais petista), começou a falar que, se não começasse a filmagem em meia hora, ela ia botar a roupa e ir embora, “porque aquilo era um absurdo”… Ela tinha razão, porque se ultrapassou totalmente a carga horária já desumana do Brasil. Ao mesmo tempo, a equipe toda ficou muito constrangida e chateada com essa postura, porque todo mundo estava num esforço de produção muito grande pra que tudo desse certo. Nesse dia, a gente tinha alugado mais equipamento inclusive. Mas a revolta da Lucélia foi contagiando a Simone Carvalho e as outras vampiras. A Tânia Bôscoli ainda tentou me defender. Uma tremanda confusão.
Eu procurava ficar o mais longe possivel do elenco, em cima da técnica, pra apressar os preparativos para filmagem. Mas não adiantou, porque a Lucélia veio pra cima de mim, me dando a maior bronca. Ao mesmo tempo que ela veio, o Carlos Egberto me chamou com a noticia de que a luz estava pronta. Quando eu me virei pra falar com ele, a Lucélia ficou louca porque achou que eu estava dando as costas pra ela. Então foi para o camarim, tirar a roupa e ir embora. O camarim era muito grande, entrei chutando umas bolas de plástico que tinham lá, virei para Lucélia e disse que ela tinha que me respeitar, porque eu era o diretor. Além de diretor era também o produtor, era a autoridade máxima do filme, e não estava fazendo molecagem, nem anti-profissionalismo nenhum com ela, pelo contrário. O tinha havido um problema técnico, que acarretou um grande prejuízo, e a gente estava tentando de tudo para solucionar. A Lucélia então começou a chorar e falou: “Vamos filmar!”. Até hoje somos grandes amigos. Ela ficou soberba no papel. E paguei treze lâmpadas.
Não posso esquecer de mencionar que é o Alfred Hitchcock que apresenta “As Sete Vampiras”. Contratipei um plano do seriado Hitchcock Hour e coloquei na abertura. Eu chamava As Sete Vampiras de uma chanchada hitchcockiana. O filme que já nasceu um sucesso. Ele foi muito bem lançado pelo Marco Aurelio Marcondes. A gente fez uns spots fulminantes, que passavam no intervalo do Jornal Nacional, com a música do Léo Jaime e as meninas nuas. A chamada era “A qual delas você daria o seu pescoco?”. Essa campanha arrastou muita gente para os cinemas. E mais uma vez, gracas ao Lucchetti, conseguimos lançar uma versão em quadrinhos do filme. Só que na época da “Múmia” esse mercado editorial de HQ brasileiro ainda existia. A da “Vampira” só foi feito mesmo para pegar uma carona no filme. Já era uma revista mais fora de linha.
Como eu acumulava as funções de diretor e produtor do filme, isso era um bode. Existe uma relação dialética entre produtor e diretor. O diretor é sempre mais mãe e o produtor mais pai, quer dizer, o produtor corta o barato do diretor. Como eu era as duas coisas, só o que me controlava era o final da grana. Eu não fazia como o Massaíni, que cortava o roteiro. Eu sempre respeitei o Lucchetti. E sempre filmei mais do que montei, isso é uma burrice. Você está jogando o dinheiro fora.
Na “Vampira”, filmei o roteiro todo, com produção da Maria da Salete. A parte da planta ficou faltando. Eu nem sabia como resolver esse problema. Na época, o Oscar não tinha ido para São Paulo. Além das dificuldades técnicas, faltavam recursos. Na Embrafilme, você tinha que passar por uma auditoria para pedir um reajuste do orçamento. Eram apenas cinco seqüências com a planta. Mas eram cinco sequências que eram cruciais para o filme. O problema foi resolvido dentro de uma logística de produção muito sui generes. O Taubman deu mais dinheiro e a gente conseguiu concluir o filme.
As Sete Vampiras foi um sucesso, se pagou já no lançamento, em São Paulo. O resto do Brasil inteiro foi lucro. Fui convidado novamente para o Festival de Sitges, onde o filme foi muito bem recebido. Lá eu conheci o Anthony Perkins, o Christopher Lee, o Michael Powell e a esposa dele, a Telma Schumacher, que era montadora do Scorcese. Conheci também o Michael Carreras, que era diretor de cinema e foi o último dono da Hammer, e Roy Ward Baker, que filmou com a Marylin e fez grandes filmes de terror, como o clássico Scars of Dracula. Era engraçado como esses caras ficavam hipnotizados Suzana Matos, que viajou comigo.
Mas o encontro com o Christopher Lee foi o que mais me marcou. Nunca vi uma cara tão alto, com rosto e mãos tão grandes. Ele tinha sido cantor de ópera e falava oito línguas, inclusive português. Isso era um problema, porque a Suzana Matos fazia indiscrições. Era como conhecer o Conde Drácula, em carne e osso. Você não conseguia tirar os olhos dele, o tempo todo você ficava esperando o momento que ele vai virar o Drácula e te mostrar os dentes. Um ator com vínculos hollywoodianos, um ator da Hammer, um mito do cinema. Fiz uma entrevista com o Lee e pensei em chamá-lo para trabalhar num filme. Isso até seria factível, se o cinema brasileiro não fosse tão bitolado. Porque esta na cara que isso não era tão difícil assim.
O filme foi muito bem de bilheteria. Foi bem no festival de Gramado, mas não foi tão bem recebido quanto “O Segredo da Múmia”. Infelizmente, a frase do Tom Jobim está certa: “A saída do artista brasileiro é o aeroporto”. Aqui, fazer sucesso é um crime. “As Sete Vampiras” é um filme agressivamente comercial e isso já criava alguns problemas. As pessoas, no cinema brasileiro, tem um preconceito com o filme comercial. Os meus filmes sempre atingiram o povão, o público jovem e um publico informado. O meu filme emplacava no subúrbio e na Zona Sul. Isso era importante, porque as duas partes se somavam. Mas era engraçado porque, nessa época, se o seu filme fosse cinco estrelas ou se o bonequinho batesse palma em pé, você perdia público. O filme tinha esse meu lado underground e artístico, mas também obedecia a um esquema de produção testado. Era uma pornochanchada de terror, uma coisa que tinha espaço no mercado.
Uma coisa também que eu acho que define o meu perfil de produtor e diretor, de uma maneira muito particular, é que eu sempre usei as sessões do Festival de Gramado como teste. Eu sempre modifiquei os filmes entre Gramado e o lançamento. A gente cortou de seis a nove minutos do filme. E acho legal você tentar aprimorar o filme observando as reações do público, ter essa humildade. Os diretores aqui não admitem críticas, são semi-deuses. Fazem uns filmes muito ruins, mas se negam a corta um fotograma. O Rogério Sganzerla falava que defender as pessoas era fácil, difícil era defender os filmes.
No Festival de Gramado nós ganhamos três prêmios com as “Vampiras”. A Zezé Macedo ganhou o prêmio especial, o Egberto ganhou fotografia e o Óscar ganhou cenografia. A “Vampira” não atingiu o Festival de Brasilia, porque foi lançado comercialmente antes, mas foi um splash no Riocine, que mais tarde deu origem ao Festival Internacional do Rio. Faturamos os prêmios de melhor filme, melhor diretor, melhor direção de arte, melhor montagem, a Andréa Beltrão ganhou atriz coadjuvante e recebemos ainda uma menção honrosa para fotografia. O filme também ganhou um prêmio no Fantasporto. Fui no Festival de Cannes por conta própria, porque o filme já era um grande campeão de bilheteria então nada mais natural. “As Sete Vampiras” foi capa de revistas de divulgação lançadas durante o Festival e foi o filme brasileiro mais bem vendido naquele ano.
Quando eu cheguei em Cannes, o Antônio Urano, funcionário da Embrafilme, veio me dizer que tinha um japonês atrás de mim. Pensei: “Um japonês atrás de mim? Isso é alguma sacanagem”. O Aníbal falou a mesma coisa. Achei que aquilo era uma piada do Massaini, que sempre brincou muito comigo. Na época, eu tinha ate uma camisa florida, de seda, que eu comprei na Kings Road. A mulher do Aníbal, a Marineida, sempre falava: “Quando o Ivan bota essa camisa é uma chuva de prêmios”. Aí, materializou-se o japonês, Masao Mitsuyma. O cara tinha visto “As Sete Vampiras” no festival da Belgica e pagou U$ 40 mil dólares para distribuição, no Japão, em cinema, televisão e vídeo. Depois de acertada a venda da “Vampira”, feita através da Embrafilme, falei para o Masao que eu também tinha um outro filme, de múmia, não tão comercial e bem acabado como esse, mas um filme de múmia. Ele também ficou interessado em comprar e pediu para eu dar uma fita para ele ver. No dia seguinte, ele comprou por 20 mil dólares. Infelizmente, não tenho esses cartazes japoneses, que devem ser sensacionais.
Naquele ano, fui quem mais vendeu filme brasileiro em Cannes, vendi 60 mil dólares. Depois do negócio acertado, a gente foi tomar uma Coca-Cola e perguntei para o cara: “Eu queria saber por que é que você quis comprar os meus filmes se ninguém me conhece no Oriente?”. Então o Masao falou: “É muito simples. No Japão, múmia é múmia, vampira é vampira e japonês gosta muito de mulher brasileira”. Era a prova dos nove que a minha fórmula deu certo. E também uma coisa gozada, é que se o teu filme vai bem numa praça aquilo que se repete pelo mundo afora. É uma coisa excitante. A “Vampira” foi muito bem, fiquei numa situação confortável, ganhei um dinheiro legal.
O cinema brasileiro regrediu muito. A ABRACI (Associação Brasileira de Cineastas) era muito forte, muito participativa. Na época, ela conseguiu que a Embrafilme aceitasse nos contratos que o diretor ganhasse um fixo, relativo aos direitos autorais, de 5% até o filme pagar a grana que a Embrafilme tinha adiantado. Depois de pago, esse valor ia para 10%. E esse percentual era sobre as partes do produtor e do distribuidor. Isso incidia sobre cerca de 60% da renda do filme. Eu devo ter ganhado tanto dinheiro como diretor, quanto como produtor, nas “Sete Vampiras”.
Através do Valério Andrade e do José Lino Grunewald, consegui levar o Antonio Muniz Viana para assistir uma sessão das “Vampiras”, na cabine da Lider, em Vila Isabel. E o Muniz Viana considerou as Sete Vampiras “o melhor filme brasileiro depois de O Cangaceiro”, uma coisa emblemática.
O ESCORPIÃO ESCARLATE
Depois do sucesso de “As Sete Vampiras”, novamente fiquei numa situação que me dava direito a outro financiamento da Embrafilme. Esse novo projeto também foi escolhido pelo título. O Lucchetti me falou, ao telefone, outro titulo que me deixou de pernas para o ar: “O Escorpião Escarlate”. Quando o Lucchetti jogou esse “Escorpião” no meu caminho, levei logo uma picada! Imediatamente quis trabalhar com este signo clássico do filme B. Num certo sentido, o Lucchetti encontrou em mim um viabilizador para o seu estranho universo.
Acho que eu devo ser uma pessoa muito ingênua e muito apaixonada pelo que faço. O Lucchetti me cativou pelo conhecimento que ele tem do gênero de cinema que eu mais gosto – o cinema dos anos 40. Essa foi a grande época do cinema, entre as décadas de 30 e 50. Eu também ficava muito impressionado com o jeito dele decupar as cenas. O único roteiro assim que eu conhecia era o do “Bandido da Luz Vermelha”, que também era todo decupado no estilo americano. Os roteiros do Lucchetti eram clássicos, sempre escritos num papel pardo e com a mesma velha Remington*. Mas, infelizmente, o Lucchetti começou a ficar deslumbrado com o sucesso dos meus filmes. Isso foi chato porque o Lucchetti original era mais bacana. O Lucchetti em estado bruto, autor de pulp fiction.
Entre o título, o argumento original e o filme, teve muita carta e telefonema para Ribeirão Preto. No início, o Escorpião Escarlate era inimigo de um tal de Morcego. O Morcego era outro personagem de história em quadrinhos – um protótipo do Batman – que o Lucchetti devia curtir. Mas achei que Morcego contra Escorpião era bicho demais. E também fiquei meio preocupado porque, na minha cabeça, esse Morcego era o Batman – e isso poderia acarretar problemas de direito autoral. Então, aproveitei a minha experiência de rádio-ouvinte e preferi chamar o Anjo para enfrentar o temível Escorpião Escarlate. Obriguei o Lucchetti a substituir o personagem. Isso foi uma bomba na cabeça do Rubens, porque ele tinha desenvolvido uma veleidade de autor. O Anjo não era um personagem do Lucchetti, e sim do Álvaro Aguiar. O Lucchetti não se incomodava em trabalhar com a “Naiara, a filha de Drácula” ou a “Múmia”, que eram personagens de aluguel, que vários roteiristas manipulavam, mas esse Anjo – o playboy detetive da Rádio Nacional – era uma marca registrada do Álvaro Aguiar, de quem comprei os direitos autorais. Infelizmente, o Álvaro faleceu antes do filme ficar pronto.
O Mauro Taubman só não produziu o filme porque estava patrocinando uma égua que iria participar das Olimpíadas de Tóquio. Por intermédio do Alfinete, me associei ao Luiz Gelpi, dono da Side Walk, o que foi fundamental para a realização do “Escorpião Escarlate”. O Gelpi não só substituiu o Taubman, como ainda me arranjou mais um sócio, o Victor Malzoni, que era outro grande empresário paulista. Esse cara tinha um cinema dentro de casa. O cinema é fantástico porque ele contamina. O Malzoni só não era produtor de cinema porque não era otário – ele era construtor de shopping centers. Fui na casa dele e fizemos uma sessão das “Sete Vampiras”, com a presença do Gelpi e de um outro amigo dele, o Marcos Paulo Fileppo Forte, que era dono da Fortincorp, uma indústria de tecidos, e também participou da produção do filme. A própria Side Walk, além de um grana, liberada através da Lei Sarney, forneceu também todo o figurino do Escorpião.
Eu acreditava no cinema nacional como indústria. Cheguei a ter escritórios montados no Leblon, com várias salas, onde começamos a produzir esse filme, que era um produto menos apelativo que as Vampiras, mas que tinha uma estrutura muito mais sólida.
Consegui, inclusive, reunir um casting ainda mais forte que o do meu filme anterior. Soubemos que a apetitosa Isadora Ribeiro ia estourar na Globo, então a contratamos. A Cristiane Oliveira, que era amiga do Léo Jaime, ia direto na minha produtora pedir para trabalhar no filme, mas o papel que eu teria para ela era o mesmo da Isadora. Fui obrigado a dizer: “Você é bonita demais para trabalhar no Cinema Brasileiro” – não deixava de ser uma boa desculpa. Ela era apenas uma modelo, mas depois fez a novela “Pantanal” e explodiu. Além da Isadora, consegui contratar a Monique Evans, que é um dos maiores “sex symbol” da minha geração. Nunca me esqueço, sempre a paquerei na praia. A Monique foi uma das modelos mais lindas que já apareceram e deu um banho como Madame Ming. Foi uma sacanagem não terem dado o prêmio de atriz coadjuvante para ela em Gramado. O Jorge Furtado, que era um dos membros do júri, não deixou a Monique ganhar o prêmio alegando que ela não era atriz. O que é um preconceito de troglodita, esquerdofrênico. Não existe esse negócio de quem é ator, quem não é ator – isso é papo de quem não é diretor de cinema. Se fosse assim, o Felipe Falcão nunca teria sido ator. Eu sempre tive olho clinico para enxergar tipos. Se tivesse que fazer esse filme 10 vezes, faria 10 vezes com a Monique Evans!
A princípio, o Anjo seria o José Wilker, mas ele foi chamado para outro filme e contratamos o Herson Capri, o que foi melhor, apesar dos problemas que ele nos criou posteriormente. Capri é um excelente ator e encarnou com perfeição o personagem do Anjo. O elenco traz novamente a dupla a Andréa Beltrão e o Nuno Leal Maia e ainda Wilson Grey, Ivon Cury, Zezé Macedo, Bené Nunes, Consuelo Leandro, Tião Macalé, José Lewgoy, Mário Gomes, Felipe Falcão (no papel do Sapo Coxo, um membro da quadrilha do Escorpião), Colé (como Metralha) e Léo Jaime (como Jarbas). Esses dois últimos, junto com o designer paulista Racif Farah (no papel Faísca), são os três assistentes do Anjo. E, pela primeira vez, tive o previlégio de trabalhar com o genial Ankito e com o Rei da Noite Carlos Machado. Na época, a grande mulher brasileira era a Roberta Close, que nós conseguimos contratar para fazer um strip-tease. No contrato, botei que ela teria que ficar nua, mas isso depois, na prática, não pode se materializar.
O Escorpião era uma versão aperfeiçoada – em algumas coisas sim, já em outras não – das minhas outras produções. O cinema tem aquela coisa terrível do Raymond Chandler – você pode fazer tudo certo e dar errado ou pode fazer tudo errado e dar certo. Os Miquinhos Amestradas fizeram uma música ótima, mas que não teve o mesmo sucesso que As Sete Vampiras. É impossível ter controle sobre isso. O Léo Jaime tinha uma posição mais agressiva no mercado, já vinha de outros sucessos.
Na verdade, para a “Vampira”, tentei contratar o Raul Seixas para o papel de Bob Ryder. A minha vida inteira, persegui o Raul para que ele trabalhasse em algum filme. Já na época do Universo de Mojica Marins, quando eu era fotógrafo da Warner, pedi ao Mazola, que era o seu produtor, que o Raul fizesse uma música para o documentário. Mas o grande Raulzito não sacou o Zé do Caixão. O que, na minha cabeça, tinha tudo a ver. Durante a pré-produção das “Vampiras”, tivemos uma noitada no Hotel Othon – eu, ele e a Kika. Acertou-se tudo para que ele fizesse o papel do roqueiro. Mas, quando eu desci do elevador, já sabia que seria impossível conciliar o “maluco beleza” com as “Sete Vampiras”. Ele era um homem bomba. Não ia cumprir os horários, seria outro filme. Novamente o Raul Seixas me escapou… O Leo Jaime também acabou funcionando muito bem. Ele era mais jovem. No Escorpião, finalmente consegui contratar o Raul para fazer a música. Acertamos os detalhes no dia do seu último aniversário – 28 de junho de 1989. Ele chegou a rabiscar o refrão do tema para o filme, mas faleceu logo depois.
A produção do Escorpião já foi um prenúncio do seu desfecho. Quando o filme ficou pronto, o Collor acabou com Embrafilme… Nos não recebemos nem a última parcela, foi um terror. Coisas que acontecem no Brasil. Como você é induzido a investir em coisas que não vão dar certo nunca. Nós até íamos processar a União, mas depois tivemos que desistir porque o Luís Severiano Ribeiro acenou com a possibilidade de distribuir o filme. O Marco Aurélio foi trabalhar com o Severiano e tive que desistir do processo. Só que o filme acabou não sendo distribuído. O meu advogado, o Dr. Pedrylvio Guimarães Ferreira, queria até processar o Severiano, mas falei que se eu começasse a processar todo mundo, nunca mais ia passar meus filmes em lugar nenhum. Agora, o pior foi a minha situação: fiquei com um filme pronto, que custou o dobro das “Sete Vampiras”, na prateleira.
O Escorpião deu problema desde o início. Na época, a Embrafilme tinha um acordo com a Fuji e dava uma parte do financiamento em latas de filme. Mas eu, como fotógrafo, sempre fui fã dos negativos Kodak. Como recebi também um apoio do Banco Nacional, gastei logo uma parte comprando filme virgem. Quando a Embrafilme viesse com esse papo de me dar o negativo, eu já teria. O Banco Nacional era fantástico, ele apoiava indistintamente todos os longa-metragens que eram produzidos. Você tinha só que colocar a logomarca deles no inicio do filme. Isso já foi no governo Sarney, quando a Embrafilme começou a implodir. O ministro Celso Furtado fez uma intervenção “branca” na empresa. Embora o Furtado fosse do mesmo grupo de esquerda dos mandarins do cinema, ele desafinou os coros dos contentes. Tanto é que o meu projeto foi um dos primeiros a ser produzido naquele período.
Já era o principio do fim da Embrafilme, porque eles afastaram os barões do cinema. Era uma espécie de Ancinav da época, porque esse pessoal – os herdeiros do Cinema Novo – fazia produções milionárias que não rendiam nada, por isso também não puderam reclamar. A festa acabou. Começou-se a produzir menos. Aquela época foi uma loucura. A Kodak brigou com a Lider, porque ela usava negativo Orwo para fazer as cópias. O resultado dessa disputa, é que a Kodak parou de vender negativo para a Líder e montou um laboratório próprio, em São Paulo. Era a Curt-Alex. De manhã, recebia a visita do José Alvarenga, que era o diretor comercial da Líder, com quem você negociava o preço da revelação e das cópias. O Alvarenga era um cara fulminante nas finanças. Ele me deu um conselho que eu nunca esqueci: “Ivan, o dinheiro que entra no seu bolso, não pode sair”. Infelizmente, o dinheiro que entrou no meu bolso, sempre saiu… Então, como eu estava dizendo, de manhã eu recebia a visita do Alvarenga e, à tarde, recebia a visita do Luiz Fernando Noel, que era o representante da Curt-Alex. Cada um derrubando o preço do outro… Acabei indo para Curt-Alex, porque me deram o negativo ótico do filme – uma bobagem, uma coisa que custa em menos que 5 mil dólares.
Acabei indo para São Paulo também porque achei que era estrategicamente bom, pois ficaria perto dos meus produtores. Mas, ao mudar de laboratório, mudei também de maternidade. E ainda, resolvi mudar de fotógrafo. Fui fazer o filme com o José Tadeu Ribeiro, não mais com o Carlos Egberto. Como é de praxe, a Kodak deveria vender todos os negativos da mesma emulsão. Mas eles me venderam negativos de quatro emulsões diferentes – uma história que terminou na justiça. Quando você compra o negativo para filmar, você compra todas as latas da mesma emulsão – quer dizer, do mesmo lote de fabricação – para que a imagem do filme tenha uma unidade. O filme era branco e preto e colorido. A parte do negativo que era branco e preto – que a gente usava para filmar as aventuras do Anjo – estava perfeita. Mas a parte colorida, tinha duas emulsões vencidas. Eu só descobri isso na segunda semana de filmagem. O José Tadeu é um excelente fotógrafo e câmera. Ele trabalha muito rápido. O Jacques Cheuiche, seu assistente, também era ótimo. Era uma equipe excelente, a gente vinha cumprindo exatamente o cronograma de produção. Mas quem descobriu o defeito fui eu. Quando vi o material colorido estragado, aquilo deu um revertério na produção. Tenho que agradecer novamente a Maria da Salete. Se não fosse ela, o filme teria descarrilhado mais a ainda...
O fotógrafo saiu e a gente teve que trocar o pneu com o carro andando. Não podia parar porque tinha um estúdio alugado, com cenários prontos e os atores e a equipe contratados. Chamamos de volta o Carlos Egberto. Só que no primeiro dia de filmagem ele teve um ataque epilético! Acabei recorrendo ao velho Renato Laclete, mas ele não tinha mais a prática da época do Lago Maldito. Então foi uma coisa traumática. Depois, quando o Egberto se recuperou e voltou, concluímos o filme. Mas é inacreditável, quem vê o Escorpião Escaralate na tela não percebe nada disso.
Segundo o saudoso Cosme Alves Netto, diretor da cinemateca do MAM, o filme tem as melhores brigas do Cinema Brasileiro. Quem coreografou as brigas foi o Gian Carlo Bastione, que era um italiano que trabalhava para TV Globo. Quando me indicaram o Bastione, falaram assim: “você não vai gostar de trabalhar com ele, porque ele dirige as brigas e você vai se sentir usurpado”. Pelo contrário, foram os melhores dias de filmagem que eu tive na vida. O pai dele tinha trabalhado no Ben Hur. Era um pessoal da Cinecitta, profissionais do cinema italiano. O cara ficava puto com nosso horário de almoço, não admitia. Uma hora de almoço para ele era muito. Ele mantinha os dublês treinando o tempo todo. O filme tem muita porrada, quedas, efeitos, tudo que eu quis fazer. A parte das lutas do seriado ficou maravilhosa. O segredo é o lugar onde se coloca a câmera, para fazer a ilusão, o truque. E nisso o Bastione era um mestre: ele não só sabia dirigir a sua equipe de dublês, como sabia enquadrar como ninguém. Rodamos com duas câmeras, com velocidades alteradas. Foi uma aprendizado inesquecível.
O Nuno faz o personagem do Guido Falconi, um cantor de ópera italiano que é o Escorpião numa determinada dimensão do filme. Na primeira cena que filmamos, ele já fez tanta palhaçada que o set inteiro caiu na gargalhada. O personagem dele era sério, mas como o pessoal caiu na gargalhada, pensei: “Não vou de novo ficar discutindo com esse cara. Se a primeira platéia, que é o set, está gostando, as outras também vão gostar”. E de fato ele está muito bem como Guido Falconi. O nosso querido Homem de Itu é um tremendo comediante.
A filmagem com a Roberta Close também foi muito gozada. Contratei um argentino, o Giancarlo Berardi, que era o coreógrafo do Carlos Machado, para o fazer o número de strip-tease da Roberta. Chegou a hora de filmar, fui chamado aos camarins do Golden Room do Copacabana Palace para resolver um sério problema. Se a Roberta Close ficasse nua, o seu membro despencaria na tela. Não tinha como ela ficar completamente despida sem um aplique que ajudasse a amarrar o tal “negócio”... Tivemos que pedir ao Óscar que resolvesse esse grande pepino. Ele ficou uma arara, reclamou muito, mas fez o que tinha que ser feito.
Não posso esquecer de registrar que, no Escorpião, passei a ter a melhor assistente com quem já trabalhei – a Luiza Arantes Pedroso. Uma portuguesa muito querida. Quem começou a produzir o filme foi a Salete, mas foi a Luiza que me deu forças para terminá-lo e ainda me ajudou no lançamento.
O Escorpião Escarlate era um filme mais “cult”, mais próximo de “O segredo da múmia”. Tinha esse lance de misturar branco e preto com colorido, essas referências a personagens clássicos do cinema e da radio novela. A própria história já é toda metalingüística. A chamada publicitária era “Pode um sonho virar realidade?”. O som do filme foi feito com os mesmos discos Majors que eram usados nas trilhas dos seriados americanos antigos. Novamente teve um trabalho primoroso feito pelo Júlio Medaglia e o Gilberto Santeiro. O Herson Capri também, embora tenha criado um problema por causa de uma bobagem, está espetacular no filme. O Escorpião Escarlate foi injustiçado no Festival de Gramado. Ganhamos apenas três prêmios. O super-Óscar Ramos ganhou figurino e cenografia e o Medaglia ficou com a melhor trilha sonora. Depois recebemos mais três prêmios no Festival de Natal. Eu ganhei melhor diretor, a Andréa Beltrão ganhou melhor atriz e o Óscar Ramos, de novo, ganhou melhor figurinista. Em Brasília, finalmente arrebentamos. Ganhamos 5 prêmios, sendo que dois importantíssimos: melhor filme pelo voto popular e o prêmio de melhor diretor. Tudo caminhava para dar certo.
Nas “Sete Vampiras”, a própria nudez das starlets se encarregava de atrair a atenção do público e de ocupar os espaços na mídia. A coisa funcionava automaticamente, à partir dos spots para televisão e das fotos das atrizes nuas nas revistas. No caso do Escorpião, já foi mais difícil. Teve um espaço grande entre o filme ficar pronto e sua estréia nos cinemas. Desesperado, cheguei a fazer um “lançamento” do Escorpião jogando suas latas diretamente da janela do Hotel Kubitschek Plaza, no Festival de Brasília. Foram 3 anos de espera, de 1990 a 1993. Quer dizer, o filme já entrou fulminado. O Escorpião acabou indo para Riofilme, que estava iniciando como distribuidora e tinha sido criada para ocupar o espaço da Embrafilme.
Mas, por ser uma distribuidora do município do Rio de Janeiro, a Riofilme não conseguia distribuir o filme para o Brasil inteiro. A guerra entre o cinema brasileiro e os exibidores na época estava ainda mais acirrada. O Escorpião só conseguiu ser exibido no Rio, em Minas e em Brasília. No resto do Brasil, não foi exibido. Só na televisão, muitos anos depois.
Como a Riofilme não tinha recursos para uma campanha de lançamento, tive que partir de novo para o trabalho físico e ir para rua com o Escorpião. Na época, os bicheiros haviam sido todos presos em Água Santa. Eu sempre fui ligado nesse negócio de marketing e enxerguei neste fato uma grande possibilidade de mídia. Eu tinha grande amigo, que depois virou até meu produtor, o advogado Alexandre Dumans, que me orientou que procurasse a Dra. Julita Lengruber, diretora do Conselho Penitenciário para consulta-la sobre a possibilidade de levar o Escorpião Escarlate à Água Santa, para promover o meu filme. Perguntei se eu iria preso e ela assegurou que não. Então, avisei a toda a imprensa. Às três horas da tarde, o temível Escorpião Escarlate chegou para visitar seus “amigos” bicheiros em Água Santa. Claro que a imprensa toda já estava na porta do presídio. Foi uma loucura total…
O personagem do Escorpião Escarlate é um encapuzado… Vestimos o Jorge Amaral, um português amigo da Luiza, de Escorpião e mandamos ele para a frente do presídio, para tentar visitar os bicheiros. Não demorou para aparecer um cana truculento e perguntar: “Que porra é essa de Escorpião Escarlate?”. Em seguida, levou o pobre do Escorpião preso. Fiquei argumentando que era apenas o lançamento de um filme, mas até desfazer o mau entendido, demorou. O português ficou desesperado, porque estava ilegal no Brasil! Mas essa confusão toda serviu ao nosso propósito. No dia seguinte, a visita do Escorpião aos bicheiros saiu na primeira página de tudo quanto é jornal. Então resolvi partir para outras ações semelhantes, porque eu tinha que manter o filme na mídia. Pensei até em pendurar o Escorpião num prédio da cidade, tipo homem aranha.
Também teve um encontro da classe artística com o César Maia, no Teatro Delfim. Fui lá com o Escorpião, tirar uma foto com o prefeito. Não sei se o Escorpião ter visitado os bicheiros criou algum constrangimento, mas o César Maia não entendeu a nossa proposta. E olha que ele é um cara de mídia. Poderia ter levado isso mais na esportiva. Além disso, o prefeito também é responsável pela Riofilme e imaginei que ele me permitisse fazer essa pegadinha. Eu insisti na foto uma vez, insisti duas, na terceira tentativa de fotografar o Escorpião com o prefeito, o César Maia mandou o Escorpião tomar no cú! Isso testemunhado por toda imprensa. Ai deu uma primeira página que foi um tiro pela culatra. Eu fiquei apavorado, falei: “Agora é que fodeu a porra do lançamento”.
Os ventos não estavam favoráveis. O filme teve um público em torno de 40 mil espectadores. Depois, ao longo dos anos, o Escorpião foi um dos meus filmes mais exibidos pelo Canal Brasil. Passou na TVs Globo, Band e Educativa, ganhou prêmio no Fantasporto, em Portugal, passou no mundo inteiro. Até na Coréia e na Finlândia foi premiado. Os americanos sempre ficam intrigadíssimos ao ver um filme brasileiro com aquela linguagem. Comercialmente, o Escorpião me quebrou. Fiz todo um investimento que não teve retorno e isso me desestruturou a ponto de ter que buscar outras fontes de renda. O “desgoverno” Collor era daquelas coisas que você tem que estar vivo para crer. Me recordo que, na sexta-feira, ao terminar a gravação dos ruídos com o genial Geraldo José – que aparece na fita, revelando ao público sua arte de sonoplasta – paguei com ele com um cheque. Na segunda-feira, o Geraldo me ligou desesperado, porque o dinheiro tinha sido confiscado pela Zélia.
O processo da Kodak também foi outra coisa terrível, porque não tive outra solução. Eles me deram um prejuízo enorme. A gente fez a perícia no laboratório Duart, em Nova York, que atestou que os negativos estavam vencidos. A Kodak trocou tudo e ainda me deu dez cópias. Fizemos um acordo. Mas essas brigas todas são muito desgastantes. Na América é que deve ser bom ter uma briga assim. Aqui você não ganha nada e ainda fica maldito.
Para fazer o Escorpião, chamei um rapaz que era modelo e tinha feito algumas apresentações vestido de múmia, na época do lançamento do meu primeiro filme. Como o personagem do Escorpião era um mascarado, não percebi que seria necessário chamar um ator e não um figurante para esse papel. O Florêncio era um rapaz muito delicado e, como Escorpião, ele foi um desastre.
O Sandro Solviati, que no filme faz um dos capangas do Escorpião, era outro ator que, se o Sam Pekimpah ou o Sergio Leone tivessem botado o olho, com certeza teria feito vários papéis em faroeste. O Sandrão tinha cara de bandido de cinema. Ele se irritava muito com o Florêncio e começou a tentar dirigir o rapaz. O Sandro começou a fazer tão bem o Escorpião, que a gente o colocou no papel. Enquanto membro da quadrilha, o Sandro contracenava em plano e contraplano com o Escorpião, então não houve problema. Fiquei devendo a ele, esse crédito. E a performance do Sandrão como bandido é muito boa. Além disso, a gente não podia revelar quem era o Escorpião. Na cabeça da radiouvinte, interpretada pela Andréa Beltrão, o Escorpião Escarlate era o cantor de ópera. Se a gente revelasse a “identidade secreta” do vilão mascarado, isso quebraria a explicação do filme.
No super 8, eu parodiava não só o gênero classe B, como a própria sessão de cinema. Antes do filme principal, incluía também trailers, propagandas, filmes institucionais e um curta-metragem – tudo produzido por mim. Como os filmes super 8 tinham esse lance, o Santeiro sugeriu abrir o Escorpião com uma homenagem ao Canal 100. Fui muito feliz nessa empreitada, por conta de um laço afetivo que eu tinha com o Carlinhos Niemeyer, um camarada normalmente duro nas negociações. Eu era filho de um grande amigo do Niemeyer, dos tempos da antológica Turma dos Cafajestes, e pude escolher livremente as cenas que queria usar na minha recriação do Canal 100. Não só chamei o Cid Moreira para narrar, como quem fez os textos foi o Alberto Shatovski, que era um dos redatores oficiais do cinejornal carioca. Recriei um autêntico Canal 100. Garimpei, do acervo do Niemeyer, uma corrida de automóveis na Barra da Tijuca, uma reportagem sobre apreensão de maconha na favela do Cantagalo, uma matéria sobre o trânsito no Rio e vários planos das atrizes americanas Zaza Gabor, Linda Darnell, Ava Garner e Tip Hedren de passagem pelo Brasil. A última reportagem do cinejornal, que a gente mesmo filmou, anuncia que As aventuras do Anjo serão levadas do rádio para o cinema – eu próprio apareço, acompanhado pela saborosa modelo Josi Campos, assinando o contrato com o Herson Capri. Foi uma coisa que deu um toque especial à apresentação do filme.
NAIARA, A FILHA DE DRÁCULA
Em 1992, comecei a escrever na Tribuna da Imprensa. Isso foi o início do meu exílio cinematográfico. Nunca tive papas na língua e, a partir do momento que tive uma coluna diária, acabei falando tudo o que pensava. Ressuscitei algumas discussões da época da “Géleia Geral” e, mais uma vez, acabei contrariando os interesses dos “barões” de cinema brasileiro.
A única pessoa que me alertou sobre isso foi o Carlos Imperial. No dia que falei para o Imperial que ia ter a coluna, ele me disse: “Não faça isso, você só vai arranjar inimigos”. Eu já militava na imprensa desde a década de 70. Na década de 80, tinha uma coluna mensal na Interview, chamada “Subway”. Também cheguei a fazer mais de 70 entrevistas para esta revista. Desde a época do “Nosferato” que esses trabalhos para a imprensa eram uma maneira de me sustentar – além disso, ampliavam a minha divulgação. Mas, nesse período da Tribuna, entrei de corpo e alma na imprensa e acabei num purgatório que talvez tenha sido dos mais longos do cinema brasileiro.
Para socorrer os cineastas que estavam moribundos, após a passagem do Collor pelo governo, o presidente Itamar Franco lançou o concurso “Resgate do Cinema Brasileiro”. Este prêmio lançou um novo modelo de concorrência pública para produção de filmes que, de alguma forma, veio substituir Embrafilme. Todo mundo levou alguma coisa, mas eu acabei não sendo “resgatado” pelo rancoroso Luiz Roberto Nascimento Silva, ministro da cultura do Itamar. Teria que ser, até pelo prejuízo que o governo havia me dado com o Escorpião. Isso foi inacreditável. Levei mais de uma ano trabalhando o roteiro do “Naiara a filha de Dracula” com o Diler Trindade.
A “Vampira” me deixou numa situação muito confortável. Eu estava investindo e comprei os direitos da “Naiara, a filha de Drácula”. A “Naiara” era uma personagem dos quadrinhos de horror brasileiros dos anos 60. Era editada pela Taika e desenhada pelo Nico Rosso. Foi um erro meu, pois eu devia ter atacado esse projeto antes do Escorpião. O Lucchetti chegou a fazer um primeiro tratamento para o roteiro do filme. “Naiara” é um personagem imbatível – afinal, ela é a filha de Drácula.
Na época do “Prêmio Resgate”, o Diler seria o produtor do filme. O esquema de produção do Diler é um protótipo dessas leis de incentivo e da própria Globo Filmes. Ele usava os artistas da Globo que, por contrato, além do salário, recebem também tantos minutos de mídia. O Diler explorava isso com a Xuxa, o Aragão e o próprio Faustão. Assim como o meu novo projeto de longa-metragem, o Diler também era imbatível – ele era produtor da Xuxa. Não tinha como eu não ser “resgatado”. Mas, infelizmente, tive que esperar mais alguns anos por um concurso para curta-metragens da Riofilme.
Eu também já tinha feito de tudo. Além de esculhambar a estrutura viciada do cinema brasileiro diariamente na Tribuna – e também em entrevistas para outros veículos. No Festival de Gramado de 86, já tinha feito o enterro simbólico dos preconceitos e das certezas do cinema brasileiro, em parceria com o Julio Bressane e o Julio Medaglia. Toda essa atividade manteve a minha fama de mal e acabei sendo condenado a um enorme exílio. Fui obrigado a recomeçar.
Nestes longos anos que estive longe das telas, aproveitei para divulgar meu trabalho como fotógrafo e artista plástico. Nos anos 90, participei de mais de quinze exposições – entre individuais e coletivas. Uma parte significativa do meu acervo fotográfico foi reunido nas mostras Quase Pintura (que, além de fotos, exibiu também objetos) e De Godard a Zé do Caixão, exposição que levou ao Museu de Arte Moderna de São Paulo mais de 80 retratos de cineastas brasileiros e estrangeiros. Esta mostra também foi apresentada em Portugal, durante o Fantasporto. Em 2000, exibi o trabalho O homem do cérebro que virou chiclete na galeria do artista Vitor Arruda.
Também lancei um livro sobre a minha trajetória como cineasta, chamado Ivampirismo – o cinema em pânico (1991), e fui homenageado com uma retrospectiva completa sobre o meu trabalho no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, em 1998.
À MEIA-NOITE COM GLAUBER
A coisa chegou a um ponto que eu tive que apelar e me inscrever num concurso da Riofilme para curta-metragem. Na época eu pensei: “Quero ver se apresentando um roteiro sobre o Glauber Rocha não vão aprovar”… E claro que aprovaram. A idéia do curta era juntar a “Estética da Fome” glauberiana com a “vontade de comer” antropofágica do Hélio Oiticica e do José Mojica Marins.
Não sou fatalista, mas acho que cada pessoa tem o seu destino. Recentemente estive no Festival de Turim, na Itália. Lá pude participar de um encontro “Os Mestres do Terror” com o John Landis, o Joe Dante, Mick Garris, Tobe Hooper e o Dario Argento, a propósito do lançamento de filmes que eles produziram para HBO. Os diretores americanos falaram que estavam felizes por trabalhar para televisão, porque não sofreram as imposições que são comuns nos filmes feitos para Hollywood. Eles falaram em liberdade e o Dario Argento, que já é de uma cinematografia mais próxima a nossa, falou: “Liberdade foi a única coisa que eu sempre tive pra fazer o meus filmes, nunca tive foi o resto”… O cinema brasileiro também tem essa maldição da liberdade, porque você pode fazer tudo, mas quase tudo que você faz acaba dando em nada. Mas eu não posso reclamar, porque o curta “À meia-noite com Glauber” foi um filme que de fato me ressuscitou. Com ele fui a mais de trinta festivais internacionais, incluindo o importante Festival de Veneza. Ele fez dobradinha com o Escorpião Escarlate em vários festivais fora do Brasil e acabei ganhando quatro prêmios internacionais, pelo conjunto da minha obra e pelo filme propriamente.
A dona Lúcia Rocha também foi uma pessoa muito generosa. Ela primeiro me vendeu três minutos de imagens dos filmes do Glauber, depois eu comprei mais três. Acabei com seis minutos que, no meu entender, se não são todas as melhores cenas, pelo menos fazem um leque bem variado das melhores imagens do Glauber, incluindo o plano antológico da morte do Corisco. Com essas imagens eu pude fazer um trabalho poundiano. Comparei, como um biólogo, lâmina a lâmina, vários planos de filmes do Zé do Caixão com os planos do Glauber e montei esse estranho diálogo entre a Estética do Fome e essa estética antropofágica que chamei de “vontade de comer”. Com muita diplomacia, consegui também que o Sganzerla me cedesse trechos do Bandido da Luz Vermelha e o Julio Bressane o antológico plano clássico da “Família do Barulho”, em que a Helena Ignez vomita sangue – filmes que também entravam nesse diálogo.
Ampliei pedaços do curta-metragem O Pátio, que é um dos maiores filmes e um dos menos conhecidos trabalhos do Glauber. Um filme formalista, concreto e, sobretudo, experimental (inclusive é o próprio Glauber que avisa isso no letreiro). E, mais uma vez, consegui seduzir o Haroldo de Campos a escrever o texto do filme. Ele já tinha feito essa viagem pela obra do cineasta baiano. Quase na mesma época, o Haroldo tinha revisto todos os filmes do Glauber e soube direitinho como costurar, num texto magistral, esse dois ícones da arte moderna brasileira – que já haviam se encontrado no polêmico, desconhecido e marginal longa-metragem Câncer. Outra pérola negra glauberiana tratada com destaque pelo curta.
O título original do filme era “À meia-noite com Glauber Rocha e Hélio Oiticica na suíte do Daniel Más”. O ponto de partida do filme, que também chegou a se chamar “À meia-noite com Glauber na zona proibida”, eram umas fotos que tirei desse pessoal para a revista Vogue. Foi quando eu conheci o Glauber. O Hélio estava fazendo uma matéria para Vogue, sobre o que estava acontecendo no Rio de Janeiro no verão de 1979. O Daniel Más é que tinha arranjado pra ele fazer. Eram onze horas da noite, quando o Oiticica ligou pra minha casa, na José Linhares, me chamando pra fotografar o Glauber numa suíte do Hotel Marina onde estava hospedado o Daniel Mas. Estavam lá, nessa noite, Glauber e a Paula Gaetan, o Rubens Gerchman e a Silvinha, David Zingg, Fafá de Belém, além do Daniel seu namorado Zé Walter, e o Hélio Oiticica. O Glauber ao me ver com a câmera, veio me dar um esporro, dizendo que estava vendo atrás de mim os fantasmas do Rogério, o Julio e o Torquato… Ele disse que os meus amigos eram todos uns merdas, que ele é que era o bom... Nós acabamos quebrando o maior pau. Foi um pega pra capar, mas que acabou criando uma relação entre a gente. Depois ele justificou para o Oiticica que aquilo tinha sido um duelo entre dois cangaceiros, mas que estava tudo bem. Ele tinha uma moviola em casa, no Arpoador, e sempre estava desesperado para fumar um baseado. Aproveitava para levar os meus curtas pra ele assistir. E o Glauber devia odiar (ou amar) porque os filmes tinham textos do Décio Pignatari e do Haroldo de Campos… Desde aquela época, eu já falei que desejava fazer um documentário sobre ele. Ele estava terminando o Idade da Terra – que considero um filme totalmente trash.
Acho que uma das coisas mais radicais do À meia-noite com Glauber foi, justamente, ter revelado um lado mais pop, política incorreto e louco do Glauber. Os intelectuais de esquerda sempre tiveram medo de enxergar muitas coisas que foram reveladas por mim. O filme deve ter “liberado” o espírito do Glauber, que certamente andava “amarrado” pelos tabus esquerdofrênicos. Tanto é que, a partir dele, uma série de outras obras sobre o inventor do Cinema Novo surgiram. O À Meia-noite com Glauber foi um grande sucesso, embora aqui no Brasil, misteriosamente, tenha sido projetado (e premiado) unicamente no Festival de Gramado de 1997. Mesmo assim, o José Carlos Avellar, através da Rio Filme, chegou a publicar um livro sobre o filme, chamado “Glauberélio/Helioglauber”.
No início da produção, cheguei a pensar no humorista David Pinheiro – o popular Sambarilove – para fazer o papel do Glauber, por causa de grande semelhança física entre os dois. Mas David ficou com medo, depois a dona Lucia falou que ele morreria se interpretasse o filho dela no curta! O Sambarilove acabou ralando daquele que seria o maior papel de sua carreira. E foi o meu único filme que passou nas retrospectivas oficiais programadas para o ano Brasil-França. Acredito que não passou por minha causa, mas por tratar-se de um filme sobre o Glauber. E foi a partir desse filme que eu iniciei o trabalho de restauração e ampliação pra 35 mm dos super oitos (concluídos com o longa-metragem “A Marca do Terrir”). E também comecei a trabalhar com o montador Francisco Sergio Moreira, embora também tenham participado da montagem do curta o Gilberto Santeiro e o Eder Mazini.
Estava tão ansioso por voltar ao cinema que acabei fazendo praticamente tudo no filme, da trilha sonora aos letreiros. Como o Óscar Ramos foi morar em Manaus, a partir de À meia-noite com Glauber, eu mesmo comecei a fazer os cartazes e toda as cartelas de apresentação para os filmes. Foi uma honra poder incluir, nos créditos do filme, os nomes de grandes mitos do cinema como Jean Pierre Leaud e Pierre Clementi.
HI-FI
Fui muito bem recebido em Veneza e o “À meia-noite com Glauber” causou um forte impacto no Festival. O filme foi selecionado pelo Roberto Turigliato, que hoje em dia é diretor do Festival de Turim. Na época, ele era curador de uma mostra paralela, em Veneza, dedicada as novas tendências do cinema mundial. O jornalista Bruno Marino era responsável pela divulgação do Festival. Encerrada a competição, ele me levou no Museu de Arte Moderna de Roma, onde visitei o departamento dedicado exclusivamente ao estudo do cinema experimental, que ele dirigia. Mal pude acreditar. O que era condenado, amaldiçoado e proscrito no Brasil, na Itália era uma cátedra! Os caras tinham muito interesse pelos nossa produção udigrudi, mas não consideravam esses filmes experimentais. No entender dos italianos, experimentais eram apenas aqueles filmes do Norman Mclaren, rabiscados diretamente na película.
Eu continuava muito revoltado com a situação que me colocaram no Brasil. Eu havia inventado um gênero, ganho uma quantidade recorde de prêmios nacionais e internacionais, feito 1 milhão de espectadores com Os Bons tempos voltaram e outro milhão com “As Sete Vampiras”, tinha conseguido atrair patrocinadores da iniciativa privada para os meus filmes… Porque essa discriminação? Uma coisa cruel e surreal. Então, de tanta raiva da política do Francisco Weffort para a cultura, comecei a arranhar vários pedaços de negativos e pontas de filme que eu tinha em casa.
Na minha opinião, o Augusto de Campos e o Décio Pignatari são os dois maiores poetas brasileiros vivos. O Augusto de Campos havia me mandado um CD chamado “Poesia é Risco”, produzido pelo filho dele, o músico Cid Campos, com o próprio Augusto interpretando suas poesias e algumas traduções. A foto da capa do CD era de minha autoria. E ao ouvir as gravações, senti vontade fazer esse cine-poema-popcreto para cine-cubistas que é o Hi-Fi.
Eu fiz o “Hi-Fi” depois dessa minha viagem a Itália. Pensei comigo: “Eles querem um filme experimental? Então eu vou mostrar como se faz um filme experimental”. Eu próprio, com o estilete, comecei a desenhar pequenas animações e padrões geométricos diretamente na película. Depois, eu ia selecionando trechos do CD do Augusto e procurando montar com essas animações com outras imagens do meu arquivo, de um jeito que traduzisse aquilo cinematograficamente. O Hi-Fi confirma a forte atração que existe entre som e imagem. O trabalho dos Campos é inédito e sem precedentes em nossa cultura.
O “Hi-Fi” recupera uma tradição de um cinema muito de vanguarda, é um filme realmente experimental. Acho até que algumas animações e soluções de montagem devem ter deixado o Augusto bastante satisfeito. Mais uma vez, recorri ao Chico para montar o curta. Na época, ele era curador da Cinemateca do MAM, e foi fácil conseguir um pedaço do Cidadão Kane e outro do “Entre’acte” – a famosa cena do Marcel Duchamp jogando xadrez com o Man Ray – para misturar com trechos inéditos de filmes feitos por mim, em super 8 e 16 mm.
Tive a felicidade de ser o único cineasta brasileiro que realizou uma grande variedade de filmes em parceria com os três inventores da Poesia Concreta. Só consegui fazer o Hi-Fi, que considero um dos meus maiores filmes e foi produzido sem dinheiro público, graças ao apoio que recebi do amigo Alexandre Dumans do CTAV-Funarte e da minha família. O filme foi exibido no Fantasporto, em Turim e na Mostra Internacional de Curta-Metragem de SP – onde foi premiado.
IVAN CARDOSO VOLTA A ATACAR
Esses movimentos que te excluem, te marginalizam, te vetam, te censuram, que te tornam um artista maldito, também acabam valorizando o seu passe. Porque num país em que se contam nos dedos os bons cineastas, se um cara é vetado é porque ele tem algum valor, é porque ele incomoda, ele é diferente dos outros. Eu tinha uma certa fixação pelo engenheiro Leonel Brizola. E o Brizola falava do efeito bumerangue. Então, por volta de 2002, acabou esse meu exílio. E de uma forma triunfal, se não fosse também meio tragicômica. Porque eu ganhei, simultaneamente, 4 concorrências para produção de filmes. No Brasil é tudo ou nada.
Eu ganhei um concurso da Petrobrás para fazer um curta-metragem. Eu simpatizo muito com esse formato, excelente para você fazer filmes de arte. Você não tem compromisso nenhum com nada, a não ser com o tema que você focaliza. “Heliorama” é o meu último curta-metragem e o terceiro em que eu me volto ao trabalho do Helio Oiticica. Ganhei também um prêmio do MinC para realização do telefilme O Sarcófago Macabro, talvez o projeto mais maluco que eu fiz até hoje e que mistura trechos do “Lago Maldito”, material de arquivo da Segunda Guerra e uma parte que filmei agora com o Carlo Mossy, o Toni Tornado e o Orlando Drummond (o famoso “seu Peru”).
Na época em que o embaixador Arnaldo Carrilho estava no comando da Rio Filme, escrevi uma carta para ele, expondo a minha situação, dizendo que eu estava fora do baralho há treze anos, que precisava voltar a filmar, que faziam dez anos que o Escorpião havia sido lançado. E a Rio Filme acabou me dando 180 mil reais. Tentei canalizar esses recursos para o Sarcófago, mas como já tinha entrado com o projeto da Marca do Terrir, uma antologia dos meus filmes superoito, o Carrilho falou: “não quero cineasta com obra inacabada”. De fato, desde o filme do Glauber, que eu havia começado a restaurar esses filmes superoito e tinha continuado com o meu próprio dinheiro.
E, por último, a Petrobrás me deu 1 milhão pra fazer o “Amazônia Misteriosa”. Esse projeto, aos poucos, foi se transformando em Um Lobisomem da Amazônia. Desde 98, quando eu conheci o Paul Naschy, o célebre homem-lobo espanhol, no Fantasporto, vinha tentando emplacar este filme. Como era baseado no livro do Gastão Cruls, um grande escritor, achei que a adaptação literária seria a um caminho... Se os outros conseguem assim, porque é que eu não conseguiria? E consegui. Em parceria com o produtor Diler Trindade e voltei triunfalmente ao longa-metragem.
Quando digo que foi uma coisa tragicômica, é porque, hoje em dia, a produção cinematográfica é super-burocrática e super-controlada. Não que eu ache que o dinheiro público não tem que ser controlado. Mas foi uma loucura, porque eu estava filmando um e tinha que parar para filmar outro. Aí parava para montar o outro. E parava para mixar o outro. Isso pelas datas contratuais e não pelo plano de produção que cada filme deveria ter. Além disso tudo, ainda tive um problema de saúde que me atrapalhou, no ano de 2003. Fiz 50 anos e fui fazer um check up. Deu que eu tinha um nódulo no pulmão, tive que fazer uma biopsia, mas graças a Deus era benigno. Mas ate descer no hospital e levantar vôo de novo, perdi mais de 6 meses. Foi um processo traumático.
Quer dizer, eu já era acostumado, desde a época do superoito, a fazer um monte de filme junto. Os temas que eu estava manipulando me eram todos familiares. Mas, de qualquer jeito, você fazer quatro filmes juntos foi um esforço. Mas isso prova que eu estou em plena forma e que pode vir quente que eu estou fervendo.
HELIORAMA
No À meia-noite com Glauber consegui construir, apenas com alguns planos do HO e algumas sobras deste curta, um diálogo intenso entre a obra de Hélio Oiticica e o cinema de Glauber Rocha. Mas, talvez por causa do próprio título do filme, toda vez que me pedem o curta é por se tratar de um filme sobre o Glauber.
Para o Heliorama mapeie tudo que haviam filmado com o Hélio Oiticica. Aproveitei os recursos concedidos pela Petrobrás para comprar imagens do Hélio em Super 8 (filmadas pelo Andreas Valentim, o Paulinho Lima e Antônio Carlos Fontura) e uma cena antológica, do longa-metragem Uma vez Flamengo, dirigido pelo Ricardo Soberg, em que o Oiticica faz uma participação no papel de assaltante. Além desses materiais, inclui sobras dos meus filmes Dr. Dyonélio e O Segredo da Múmia, onde o Hélio trabalha como ator, e restaurei vários trechos inéditos do HO. Deste filme, pretendo recuperar ainda mais 40 minutos de cenas do Hélio na Mangueira. Essas imagens se tornaram valiosíssimas.
Desde o início do projeto que o Haroldo de Campos se comprometeu a escrever o texto para o filme, sem nunca me cobrar nada. Fez porque gostava do Hélio e de mim. Mas o Haroldo estava doente. Eu ia a São Paulo, levava um vídeo com as imagens do filme. Muito generosamente, ele me recebia em sua casa, localizada na Rua Monte Alegre 635, no bairro de Perdizes. Nós trocávamos idéias, o Haroldo me dava milhares de sugestões. Mas chegava uma hora que, debilitado pela doença, ele próprio dava por encerrado o nosso encontro. Na saída, me prometia que ia escrever o texto em breve, mas nunca escrevia.
Todos os prazos já tinham se esgotado. Eu já estava recebendo aquelas famosas cartas impressas, me ameaçando. É o “efeito Guilherme Fontes”. Você recebe um financiamento e no dia seguinte você já é ladrão. Na verdade, só o texto do Haroldo de Campos valeria muito mais que os 50 mil reais que recebi para fazer o filme.
Quis o destino que esse fosse o último texto do Haroldo de Campos. Ele morreu um mês depois de ter me enviado o que ele chamou de um Cine-Roteiro Heliográfico para o Ins(pirado) Ivan (do Ivampírico Terrir). É um texto escrito a mão, o que é uma coisa rara tratando-se do Haroldo – sempre fiel a sua velha Remington. Pela caligrafia você vê que ele fez um esforço enorme para escrever suas últimas sete páginas.
Uma coisa que, com certeza, motivou o Haroldo a escrever o texto foi um outro texto, feito pelo Décio Pignatari para A Marca do Terrir, que considero uma obra-prima. É uma visão muito aguda sobre a minha trajetória e o Super 8. Desesperado com o prazo, mostrei o texto do Décio para o Haroldo. Ele ficou louco com aquilo e, poucos dias depois, me telefonou dizendo que o seu também estava pronto.
Imediatamente voltei a São Paulo para agradecer-lhe e consultá-lo sobre quem poderia ser o narrador ideal. Na mesma ocasião, aproveitei nosso último encontro para fazer uma longa entrevista, em vídeo. Vários trechos deste depoimento aparecem no Heliorama e também foram fundamentais para a finalização de A Marca do Terrir. Ao sair de lá, foi terrível, porque já sabia que nunca mais ia ver o Haroldo. Guardo uma tristeza muito grande até hoje e sempre me emociono quando lembro desse momento. Nunca mais vou ter a oportunidade de conhecer outra pessoa como ele. Embora ele tenha dito que eu ainda era um artista muito jovem e que ainda iria fazer muita coisa. Vai ser muito difícil continuar sem a sua inspiração.
O texto do Haroldo era dificílimo de traduzir em imagens. Mas eu tinha essas imagens, porque o texto foi escrito à partir delas. Devo muito ao incansável montador Francisco Moreira. Sempre empanhado em salvar da destruição, recuperar e colar todas essas cenas que garimpei e produzi. Outra tarefa árdua foi encontrar um narrador à altura da poesia do Haroldo. Coube ao Fausto Fawcet está missão quase impossível. O Fausto resgata um pouco esse lado marginal carioca do Hélio. Foi um verdadeiro lance de dados. O Fawcet não apenas leu o texto do Haroldo muito bem, como recriou vários trechos em vinhetas sonoras que se encaixaram perfeitamente ao filme. A música do compositor Guilherme Vaz foi outro elemento que ajudou a dar um toque bastante avant garde ao Heliorama.
O Haroldo e o Hélio – estarão sempre vivos no meu coração. E, graças aos meus filmes, eles atingiram a vida eterna.
MARCA DO TERRIR
Outra coisa muito bacana foi quando o Festival do Rio trouxe o Roger Corman pro Brasil, em 93. Nesse ano veio também o Mike Vraney, que era o distribuidor do Mojica nos EUA. O Vraney veio aqui em casa ver As Sete Vampiras, o Escorpião Escarlate e a Múmia. Eu estava todo orgulhoso de estar mostrando o meu trabalho, porque queria que ele penetrasse nos EUA. Aí o Vraney viu na prateleira, debaixo do vídeo, uma VHS escrito “Nosferato no Brasil”. Ele deu um pulo e falou “Cool, man! Nosferato no Brasil!”... E ele lançou não só os meus longa-metragens, como o “Nosferato no Brasil” e os outros superoitos e uma fita com as sobras dos filmes. Ele ai me explicou que o cara que gostava de filme de vampiro, gostava de ver o filme de vampiro e as sobras do filme de vampiro, o cara que gostava de múmia, idem... Fiz uns rolos enlouquecidos com as sobras das “Vampiras” e do “Escorpião”. Depois o cara botou uma música lá por conta dele, na maior. Uma pirataria total, porque o cara não me pagou porra nenhuma. Lançou 5 filmes meus na América e não recebi um cent por fita vendida. Outra situação que só acontece comigo. Tenho a minha a obra lançada nos EUA e não tenho ela lançada no Brasil. Uma loucura total, porque não é só brasileiro que dá trambique.
Os meus super 8 continuaram uma polêmica e isso criou uma lenda em torno dos filmes. Porque, até a “Marca do Terrir”, eram filmes mais falados do que vistos, apesar de terem tido uma grande circulação na época em que eles foram feitos. Na década de 90, eles só foram lançados comercialmente na América. Mas, fora isso, aqui eles só passaram no programa do VJ Luiz Thunderbird, na MTV e depois num canal da Abril, onde toda a série Quotidianas Kodaks foi exibida.
Não conheço muito a história de outros cineastas. Sei que tem diretores que, com muito menos idade que eu, fizeram obras muito mais avassaladoras e revolucionárias. Mas acho também que, sem desmerecer o nosso cinema, produzi – na fase do super 8 – um ciclo de filmes muito forte. Feito numa época muito árida, que só conseguiu ser feito porque estava submerso mesmo. Imitei o Sganzerla no lance da provocação ao Cinema Novo e, por um equívoco, eles revidaram. Mas revidaram com uma força desproporcional, porque eu tinha 19 anos e fazia apenas o que eles pregavam – cinema com uma câmera na mão e milhares de idéias na cabeça. Mas eu toquei o dedo na ferida e levei porrada de todo lado. Minha sorte é que eu tinha grandes intelectuais do meu lado. E os superoitos acabaram entrando para a história do cinema mundial.
Levei uns oito anos para restaurar todos os filmes e finalizar “A Marca do Terrir”. Acho que acabei sendo bastante vitorioso nessa empreitada. O Embaixador Arnaldo Carrilho, que foi presidente da Rio Filme, atirou no que viu e acertou no que não viu. O embaixador era um homem de cinema. Foi o último grande gestor que nós tivemos e teve coragem de produzir “A Marca do Terrir”. Junto com o Carrilho teve uma pessoa fundamental nesse processo, que é o Wilson Borges, um águia do mercado financeiro que virou dono da Líder.
A Lider estava falindo. Os bancos penhorando as máquinas, o pessoal não recebia a seis meses e o laboratório estava ameaçado de fechar. O Wilson Borges comprou a dívida da Líder e, como ele era uma pessoa estranha ao meio, no início, poucos cineastas se aproximaram dele. Fui um dos primeiros que se tornou seu amigo. Ele me pediu para apresentá-lo ao Francisco Sergio Moreira, porque queria montar um setor de restauração. O Chico era montador dos meu filmes e acabei sendo responsável pela sua ida para Labocine.
Na época, o Wlson falou para mim: “Enquanto eu tiver aqui você não paga nada; só não faz filme se não quiser”. Aproveitei para restaurar os melhores momentos da série Quotidianas Kodaks. Ficaram alguns materiais de fora, mas fiz um trabalho quase completo – e de leão! É um tarefa muito difícil de você fazer porque, na verdade, deveria ser feita por outra pessoa. Mas, no Brasil, você tem que fazer tudo. Até restaurar os próprios filmes. Acredito que, no caso da Marca do Terrir, tenha feitio um trabalho pioneiro. Se eu não fizesse “A Marca do Terrir”, esse material realmente corria o risco de desaparecer.
Felizmente, tenho uma teoria, não sei nem se procede, mas acho que o super 8, apesar de ser um negativo para amadores e de uso doméstico, que passa nos piores projetores, deve ser um dos negativos mais resistentes, apesar da aparente fragilidade. O único cuidado que tive foi guardar na casa da minha mãe. Na década de 80, o Calil, que era Diretor de Assuntos Não Comerciais da Embrafilme, consciente da importância dessa produção, que envolveu atores, circuitos inventados e ampla divulgação, pagou uma telecinagem do material para U-matic.
Durante o processo de montagem de A Marca do Terrir, fiquei na duvida se deveria transformar o filme num documentário que além de registrar a minha saga em fazer esse ciclo de produção ainda desconhecido, fosse um amplo painel de um período pouco conhecido de nossa história contemporânea. Mas isso me obrigaria a ressucitar velhos fantasmas e abrir feridas que estavam cicatrizadas de polêmicas que embora continuem atuais foram travadas a há mais de três décadas. Se por um lado isso tornaria o filme, um documento precioso sobre aqueles anos cinzentos, o formato documentário tiraria a força da fórmula das Quotidianas Kodaks. Acabei optando por apresentá-lo numa versão semelhante aos programas que apresentava originalmente, uma vez que acredito que seja uma maneira mais fascinante de mostrar esses filmes ao público jovem. Mesmo assim gravei uma série de depoimentos e entrevistas com atores, cineastas, artitsas e intelectuais envolvidos. Parte destas entrevistas só foram utilisadas na apresentação do filme, onde apereço convidando o público a assistir o filme e nos letreiros finais. Quando o filme for lançado em DVD, pretendo usar todo esse material com extra, formando um amplo painel de tudo o que aconteceu.
Quando ampliamos os filmes para 35 mm tivemos que passar de 18 quadros para 24 quadros. Além dos Ivamps, o filme conta com a participação especial de filme Rogério Sganzerla, Waly Salomão, Caetano Veloso, Sandro Solviati, Haroldo de Campos e José Mojica Marins, entre outros.
O “Marca do Terrir” é um sucesso e o longa-metragem é uma espécie de máster desse raro material. Sempre tive um grande xodó por esses que foram os meus primeiros filmes. O diretor sempre é obrigado a ver os seus filmes um milhão de vezes. Vi esses rolos não sei quantas vezes. Primeiro como super 8 e agora estou vendo em 35 mm, como “A Marca do Terrir”. O titulo acabou sendo escolhido porque fui marcado por esse gênero. O terrir me obrigou a fazer uma nova leitura desses filmes. Cheguei a dormir, muitas vezes, com filme super 8 espalhado na cama, exausto, após trabalhar até altas horas da madrugada. Como eu sou solteiro, de um lado da cama era o filme e do outro era eu dormindo. E é aquele negócio, pau que nasce torto nunca se endireita. Até nessa hora repeti o mesmo processo de montagem da década de 70. Selecionava esses trechos a olho, usando apenas uma lâmpada. Os trechos que filmei já montados, preservei assim. Até por questões linguagem. Claro que acabei reduzindo e cortando alguns planos. Porque o filme super 8 doméstico suportava algumas cenas fora de foco. Além disso, já na época dos super 8, remontei algumas coisas. Mas, na “Marca do Terrir”, voltei essas coisas aos seus formatos originais.
Aprendi a fazer cinema em super 8. Então também tinha aquele deslumbre, muita coisa eu acabava não cortando. Coisas que em 35 mm não funcionavam. Mas procurei manter “A Marca do Terrir” o mais próximo do original. A única parte nova, no sentido que fiz uma nova montagem, dando novas relações para antigos materiais, foi para ilustrar o texto definitivo sobre a minha obra feito pelo Décio Pignatari. Mas o resto, fui obrigado a manter fiel ao original, até por questões históricas. Mantive os mesmos letreiros, a mesma trilha sonora e a mesma montagem do original. Segundo o Décio, ele é “filmado num presente e editado num futuro”. O filme tem uma relação louca com o tempo.
“A Marca do Terrir” também realimentou essa legião de fãs que eu tenho. Porque a molecada de hoje tenta fazer muita coisa, que eu fiz muito mais antes. Era uma época realmente transgressora e tenho realmente que agradecer o trabalho, a paciência, o carinho, o talento, a dedicação e a entrega que a Helena Lustosa, a Cristiny Nazareth, o Ricardo Horta, a Ciça Affonso Pena e, principalmente, o Zé Português tiveram.
Em 2005, A Marca do Terrir ganhou o prêmio de melhor trilha sonora do 15º Cine-Ceará. Inexplicavelmente não foi selecionado para o Festival de Brasília, mas brilhou no Festival Internacional do Rio e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. E foi também considerado o melhor filme apresentado no 23º Festival de Turim.
O SARCÓGAFO MACABRO
Cheguei ao final da década de 90 totalmente viciado nas aventuras da Família Soprano, exibidas pela HBO. Também me tornei um espectador voraz das centenas de séries sobre a Segunda Grande Guerra apresentadas, quase diariamente, pelo Geographic Magazine e o Discovery Channel. A indústria milionária dos documentários para TV à cabo praticamente já esgotou suas possibilidades. Acabou se transformando num subgênero trash. Tudo pode acontecer, mas nada acontece. E as dúvidas deixadas no ar servem de tema para novos telefilmes.
Uma noite, embarquei numa viagem alucinante após assistir um programa sobre as falsas expedições arqueológicas organizadas por Heinrich Himmler. Achei que Adolph Hitler poderia ser aquela velha múmia, encarnada pelo Zeca Parente, que vaga enlouquecida pela fronteira paraguaia, nas imagens que rodei na minha primeira tentativa de fazer O Lago Maldito.
Sempre me incomodou o fato de não ter conseguido terminar O Lago Maldito, apesar das quase três horas que filmei. Muito pouco desse material foi aproveitado pelo Segredo da Múmia. Quando assisti o filme do Tim Burton sobre o Ed Wood também percebi que as possibilidades de criar novas histórias a partir de materiais filmados é uma coisa muito excitante. Pensei num argumento que, além de ser uma espécie de continuação para O segredo Múmia, me possibilitaria, finalmente, editar todo o material de O Lago Maldito.
Nessa continuação para a saga do professor Vitus (Wilson Grey), transformei ele em colega de faculdade de Henrich Himmler, que também era arqueólogo. O Felipe Falcão e Júlio Medaglia viraram fugitivos de guerra e o Altair de Oliveira Lima, quem diria, terminou na pele do diabólico Martin Borman. Afinal, o “elixir da vida”, a principal descoberta do professor Vitus, era tudo que Hitler precisava para levar adiante seus planos de dominação. Pela primeira vez em minha vida, em fração de segundos, o argumento completo de um filme se materializou na minha mente. Incluindo o personagem Ed Stone e a idéia de usar o Pentágono como cenário, inspirado por um seriado sobre o FBI. Na mesma hora, também pensei no Toni Tornado para o papel do Comandante Gordon. Foi uma experiência inédita.
Em 2001, a Secretaria de Áudio Visual lançou um concurso para produções de baixo orçamento. Como estava louco para voltar as telas, me inscrevi na categoria menos concorrida, que premiava a produção de telefilmes. Acreditei que teria mais chances de ser contemplado. Mas, infelizmente, na hora de escrever o roteiro, a maldição da múmia voltou a atacar. O que era para ser um telefilme de baixo orçamento acabou virando uma mini-série de mais de 450 sequências. Não consegui terminar o roteiro dentro do prazo para inscrição e tive que esperar um novo concurso, no ano seguinte.
O sarcófago macabro foi o único roteiro original que escrevi. O seu resultado na tela até hoje me deixa perplexo. Escrever um roteiro, apesar de ser fascinante, é o trabalho mais pirante que já enfrentei. Tem aquela história de que o papel aceita tudo. O desenvolvimento do argumento vai ser tornando tão obsessivo que você acaba se desligando do mundo e penetrando numa outra realidade. Os personagens, que são apenas produtos da sua imaginação, começam a ganhar vida e a falar com você. Para escrever os diálogos de cada personagem, antes você tem que descobrir e desenvolver a suas respectivas personalidades.
Quando, finalmente, fui formatar o projeto para tentar me inscrever no concurso de telefilmes, já em 2002, percebi que o roteiro era muito mais caro que os R$ 200 mil oferecidos pelo MinC. Tive que apelar para uma solução radical e tipicamente brasileira. Procurei no roteiro uma parte que serviria de introdução para a trama – e poderia ser produzido dentro do orçamento proposto. O resto do argumento foi engavetado. O sárcofago macabro nada mais é que a primeira parte dessa história imaginada por mim. Se aqui existisse uma indústria de telefilmes, o Sarcófago seria um piloto.
O filme utiliza um terço de material de O Lago Maldito. A atmosfera anos 40 do Lago possibilitou que as cenas se misturassem sem dificuldade com as imagens da Segunda Guerra Mundial que foram conseguidas pelo montador Francisco Moreira. Incluí também planos do Wilson Grey tirados de vários dos meus outros filmes. A parte nova, traz o Carlo Mossy no papel do personagem Ed Stone, uma dupla homenagem, ao Ed Wood e ao Harry Stone. Ele é um agente da CIA que descobre um dossiê sobre um cientista louco brasileiro, membro de uma rede de espiões nazistas, que trouxe para o Brasil vários carrascos do III Reich – entre os quais o próprio Hitler – fantasiados de múmia, à bordo de confortáveis sarcófagos.
Quer dizer, não fui ainda para o hospício, não se sabe por que. Acho que o Sarcófago, em matéria de criatividade, extrapolou. O Carlo Mossy também está estupendo, é a sua volta ao estrelato. E, mais uma vez, trabalhei com engenho e ingenuidade. O Mossy não come ninguém no filme – fato que deve ser inédito tanto na filmografia dele, quanto na minha. O telefilme tem 52 minutos. Foi bacana porque a gente filmou tudo em uma semana – o Jacques Cheuiche foi quem fotografou. Ë o meu primeiro trabalho com o Tony Tornado. Estou renovando o meu casting de ícones. Também foi a primeira vez que trabalhei com o Orlando Drummond, o “seu Peru”, que é o máximo. Ele tem 84 anos, mas está em plena forma. Depois chamei os dois de novo para o Lobisomem. E o filme traz também a Luiza Mariani, uma tremenda atriz, no papel da tenente Lauren.
Boa parte do filme se passa em Washigton. Foi um grande prazer trabalhar mais uma vez com o Óscar Ramos, que recriou o Pentágono no CCBB e na Escola Darcy Ribeiro e ainda fez o diário negro de Himmler. O Steve Solot, representante da Motion Picture na América Latina, também ajudou muito. Graças a ele, conseguimos todas aquelas logomarcas oficiais do governo americano. O Sarcófago é um filme inteiramente de montagem. Outro ponto alto do telefilme, além da envolvente música do Mú Carvalho, é a demencial narração – inspirada num disco que o José Lino Grunewald me emprestou, chamado O inferno de Hitler – feita pelo Roberto Maia e que costura os diferentes materiais utilizados no Sarcófago. Sou um fã do Maia desde a época das pornochanchadas do Khoury e já tinha trabalhado com ele nos Documentos Especiais que eu fiz para Manchete e para o SBT. Sua interpretação segura é o dá credibilidade ao filme. E como o Maia de fato é um apresentador de televisão, ele que dá o tom.
O filme é uma homenagem aos enlatados, uma visão “ivampirante” desses documentários que são exibidos nos canais de TV à cabo. E também tem um pouco de Combate e de As Memórias de Churchill, seriados que assistia quando era garoto. O Sarcófago foi dublado na Delarte. O estúdio onde é feita a dublagem de todos os filmes da Disney. Dublei todos os atores, menos o Roberto Maia, o Tony Tornado e o “Seu Peru” – que é um grande dublador e faz a voz do Scooby Doo. Nesse sentido, o filme também foi um ótimo exercício. Foi na própria Delarte que conheci o Guilherme Bridges, que fez aquela introdução incrível de O sarcófago macabro. Eu adoro filme dublado. Pega até mal falar, né?
Sempre trabalhei com personagens de ficção. Adolph Hitler foi o primeiro monstro de verdade que passou pelas minhas mãos. Confesso que fiquei assustado com a possibilidade de dirigir um ator tão carismático.
A escolha do ator para o papel do Ed Stone foi muito difícil. Originalmente, pretendia trazer um amigo cineasta, chamado Jon Kroll, que é americano e daria bastante credibilidade ao papel. Como ele não sabe falar português, teria que ser dublado mesmo. Igual nos seriados de TV. No Festival de Turim de 2002, convidei o Fernando Eiras. Depois a coisa evoluiu para o Miguel Falabela, que aceitou. Infelizmente, não conseguimos acertar nossas datas. Pensei numa solução caseira, que seria chamar o Nuno Leal Maia, um ator com quem estou acostumado a trabalhar. Mas, às vésperas do início das filmagens, o Nuno raspou o cabelo por causa da Malhação.
Estava tão perdido que cheguei a pensar no Antônio Pedro, numa versão Danny de Vito para o papel, e no próprio Anselmo Vasconcelos, que poderia criar uma confusão por ele já ter interpretado a múmia. Acabei optando pelo Mossy, por quem tenho uma grande identificação. Na verdade, já sabia que o papel seria dele. Durante as leituras de roteiro e os contatos que fiz com o Miguel Falabela, ele me perguntou qual seria a minha opção se ele não pudesse fazer o filme. Na mesma hora, respondi que chamaria o Carlo Mossy.
É difícil de entender porque num país onde a televisão virou a principal indeústria do entretenimento, o cinema brasileiro nunca tenha se empenhado em explorar um filão tão rico e diversificado como a produção de telefilmes e seriados. Estes produtos, pelas suas próprias características (formato e custo reduzido), seriam veículos ideal para dar sustentação a nossa tão sonhada indústria cinematográfica. Incrível que a referência desse gênero no Brasil ainda seja o Vigilante rodoviário, produzido nos anos 60. É por isso que ainda não desisti da idéia de transformar o Sarcófago em um longa metragem. Produção independente de telefilmes no Brasil ainda é um sonho proibido.
No ano passado, em Turim, foi o próprio Marco Muller, diretor geral do Festival de Veneza, quem convidou O Sarcófago Macabro mesmo sem ter visto o filme para participar da próxima edição do festival, distinção que, normalmente, só acontece com os grandes mestres da sétima arte!
UM LOBISOMEM NA AMAZÔNIA
Um Lobisomem na Amazônia é uma paródia aos filmes da Sessão da Tarde. Uma história que mistura lobisomem com mulheres amazonas. Foi o filme finalmente materializou a oportunidade de ter o Diler Trindade como meu produtor. O Wilson Borges que tornou isto possível. Eu tinha ganho, da Petrobrás, um patrocínio no valor de R$ 1 milhão. Mas esse dinheiro só seria liberado mediante a captação de mais R$ 1 milhão. Foi o Wilson quem adiantou ao Diler esses recursos.
Desde a primeira reunião, o Diler deixou claro que só produziria o Lobisomem se trabalhássemos com a sua equipe e o filme fosse rodado em quatro semanas. Ele argumentava que não haveria problema, porque o filme seria todo feito em estúdio. Além disso, o filme contaria com a estrutura já montada pelo Diler para suas outras produções. Acontece que, na prática, acabei sendo obrigado a filmar em três semanas. Isso atrapalhou bastante, porque a maioria dos atores estavam gravando na Globo. A gente começou a produzir o filme antes do carnaval de 2005. Na Páscoa, o filme já estava praticamente todo editado pelo fabuloso montador João Paulo Carvalho. Mas o Lobisomem só veio a ficar realmente pronto em agosto, em virtude do cronograma de trabalho da Diler Associados, que está sempre envolvida em mais de uma produção.
Um Lobisomem na Amazônia é um filme da Diler. Se eu mesmo tivesse produzido, faria de outra maneira. Mas não adianta discutir isso, porque o filme está feito. Procurei fazer o melhor, dentro das condições que tive. Trabalhei dentro das limitações que existiam. Por um lado, foi fantástico. Nunca havia feito um filme todo em estúdio, nem trabalhado com uma equipe tão grande. Tinha filmado sempre em locações. Só em O Escorpião Escarlate que rodamos grande parte num galpão do Óscar Ramos. Mas nunca tinha imaginado que recriaria a floresta amazônica num estúdio. Quer dizer, um fenômeno. Eu aprendi muito com Um lobisomem na Amazônia. E acho que, para quem estava fora do jogo há treze anos, me sai muito bem. Nunca tinha feito um filme tão rápido. Para fazer um longa-metragem em três semanas a única opção que você tem é usar a criatividade: improvisar e experimentar novos métodos que possibilitem cumprir esta verdadeira maratona.
Da equipe técnica, só pude indicar a Luiza Arantes, para ser minha assistente, e o maquiador Antônio Pacheco. Embora a equipe do Diler já tivesse o Guilherme Pereira, que é um dos melhores maquiadores do cinema brasileiro, principalmente para atrizes, não podia deixar de contratar o Pacheco. Ele me acompanha desde As Sete Vampiras. O Pacheco é um cara que daria um livro. Ele é maquiador e pára-quedista. Foi maquiador da casa Dior, na França, durante 10 anos. É o único técnico brasileiro de efeito especiais que ganhou 13 vezes o primeiro lugar no concurso de fantasias do Baile dos Horrores do Clube Democráticos. Ele é um cara que, assim como eu, ama o terror. No Lobisomem voltei a trabalhar com o Pacheco. Se não fosse o Pacheco – e o Paul Naschy – não tinha filme. Coube ao Pacheco criar, confeccionar e aplicar toda a caracterização – cabeça, mãos e pés – de homem lobo que é usada pelo Naschy no filme. O Paul Naschy, que já tinha feito esse personagem quatorze vezes, trouxe até uma dentadura de lobisomem que ele tinha usado numa produção do Coppola para a televisão americana. O cinema brasileiro, mesmo tendo o Diler como produtor, não tem dinheiro nem para fazer uma prótese dentária. Então, modéstia a parte, usei a dentadura do Coppola.
E também, se não fosse a Luiza, não teria feito o Lobisomem. A minha principal motivação para fazer este filme era trabalhar com o Paul Naschy. Mas a nossas negociações vinham se arrastando. Num determinado momento, o Diler me deu carta branca para tentar fechar um acordo. É sempre chato você falar de dinheiro por telefone. A Luiza fala espanhol fluentemente e foi fundamental para fazer a ponte com o Naschy – e, principalmente, com a mulher dele, a Elvira, que estava doida para fazer compras no Brasil. O Naschy aceitou menos pelo dinheiro e mais pela possibilidade de fazer o Dr. Moreau, um personagem clássico que somente o Charles Laughton, o Burt Lancaster e o Marlon Brando tinham interpretado. O livro Amazônia misteriosa, escrito em 1922 por Gastão Cruls, visto sob a minha ótica, era uma paródia da Ilha do doutor Moreau, do H.G. Wells. Foi isso que me deu vontade de trazê-lo para as telas. E também o lance das mulheres amazonas. Eu tinha assistido As Mulheres Amazonas na Lua, do Joe Dante e do John Landis, e me impressionou muito o fato das mulheres amazonas serem loiras. Fiz questão de repetir a dose no meu filme. Quanto a isso, o Diler foi muito liberal. Os meus filmes, como sempre, ainda mais quando roteirizados pelo Lucchetti, são um verdadeiro jardim zoológico de personagens do terror.
Foi o escritor Márcio de Souza que me chamou a atenção para o livro A Amazônia Misteriosa, um romance brasileiro de ficção científica ambientado em plena selva amazônica. Em 1993, o Roger Corman me disse que, caso fosse brasileiro, faria filmes sobre o carnaval e a Amazônia, porque são dois temas que despertam o interesse do mundo inteiro. Eu mesmo tinha feito um primeiro tratamento cinematográfico para o livro. Mas esse roteiro, para um produtor como o Diler, era infilmável. Um script de mais de 250 seqüências. O Diler acabou optando por uma fórmula de roteiro com 40 páginas. A única outra pessoa da minha equipe original que o Diler aceitou contratar – fora o Pacheco e a Luíza – foi o Rubens Francisco Lucchetti. Expliquei para o Diler que não adiantava me comprar desidratado. Tinha que me comprar na minha forma original, porque quem sabia escrever o terrir era o Lucchetti. Marcamos um encontro com o Lucchetti em São Paulo. Ele veio de Ribeirão Preto e nos encontramos num shopping center no Morumbi. E produtor é legal porque resolve tudo na hora. É tudo “para daqui a 15 dias”. O Lucchetti fez um primeiro tratamento e, uma semana depois, entregou o segundo.
No novo roteiro dois personagens entravam em conflito – o zoólogo Scott Corman (interpretado pelo Nuno Leal Maia, que rouba a cena no filme) e o guia Jean Pierre. O Diler percebeu, com seu faro de produtor, que uma das coisas mais bacanas do livro do Gastão Cruls era que as mulheres amazonas usavam ayhuasca. Ele enxergou no Santo Daime um filão comercial para atrair o público jovem. Por uma incrível coincidência, o personagem do JP acabou sendo interpretado pelo Evandro Mesquita. O Diler já tinha feito outros filmes com o Evandro e gosta muito de trabalhar com ele. Eu, também, já tinha trabalhado com Evandro em O Segredo da Múmia. Então acabou rolando um revival. No início, o ele fez uma certa resistência em fazer o filme, porque o roteiro do Lucchetti privilegiava mais os personagens do Lobisomem, do doutor Moreau e do Nuno. Ele disse só participava do filme se pudesse colaborar no roteiro. O Evandro reescreveu o roteiro, melhorando bastante o personagem dele e colocando umas piadas novas – porque as piadas do Lucchetti são do tempo do onça.
Paul Naschy chegou ao Rio de Janeiro numa quinta-feira. As filmagens começariam na terça. Fui com a Luíza buscá-lo no aeroporto. Hospedamos o Naschy e sua esposa no Sheraton da Barra da Tijuca. No mesmo dia, o Telmo Maia, que é o produtor executivo da Diler Associados, pagou ao Naschy os 50% do contrato, conforme o combinado. À noite, estou em casa, me liga a Luiza: “Ivan, estamos com problemas... O espanhol disse que com esse roteiro ele não filma, que vai embora. Ele diz que não é pelo dinheiro, que só está aqui por sua causa”. Quase fiquei doido. O cara tinha lido o roteiro na Espanha, tinha que ter feito essa observação antes de vir. O Paul Naschy, além de diretor e roteirista, é um ator excepcional. Já fez 130 filmes. Ele é cultuado pelo Tarantino, pelo Spielberg, pelo Coppola, pelo Landis, pelo Joe Dante, por vários outros grandes diretores. O Naschy também fez vários filmes no Japão. Foi contratado para ensinar os japoneses a fazer filme de terror. É um homem de cinema. Foi mole, para ele, lidar comigo: “Com o produtor não quero nem falar. Na Europa, o produtor só cuida do dinheiro. O filme é do diretor. Quero falar com você Ivan. Esse roteiro, não me interessa saber quem fez, só serve pra uma coisa – jogar no lixo”. Aí, ele argumentou que tinha todo um detalhamento, uma simbologia, uma dramaturgia do filme de lobisomem que estavam ausente do roteiro. O Naschy tinha razão. O nosso ponto de partida era o Amazônia Misteriosa, do Gastão Cruls, mas já tinha até um lobisomem espanhol na jogada. Chegou uma hora que falei para o Diler mudar o título do filme porque já não tinha nada a ver com o livro.
Faltando menos de uma semana para o filme começar, o Naschy estava com a armada espanhola posicionada, dizendo que zarpava no dia seguinte. Por pouco não virou a terceira guerra mundial. O Telmo Maia, o Hsu (um assistente chinês que me arrumaram) e toda a equipe tentou segurar a notícia. Mas claro que o Diler deve ter sabido. Porque a principal questão para o Diler é amarrar um roteiro e fazer com que ele seja cumprido. Nesse sentido, ele é igual a qualquer outro produtor.
Cheguei num acordo com o Paul Naschy. Ele podia refazer todo o seu personagem, mas não poderia cortar, nem mexer nos outros – porque seriam interpretados por atores brasileiros famosos. Se deixasse, o Naschy fazia outro roteiro completamente diferente. Se tivesse havido um diálogo, ele poderia ter feito isso na Espanha. Um lobisomem na Amazônia teria sido um clássico, um filme até muito melhor. Mas, infelizmente, era quinta-feira, onze horas da noite – e as filmagens começavam na terça. No dia seguinte, o Naschy visitou os cenários do Paulo Flaksman e ficou mais calmo. Os cenários do Lobisomem – principalmente o laboratório – ficaram muito bonitos. Mesmo assim, ele não desistiu da idéia de refazer o roteiro, que foi reescrito todo a mão – guardei esse tesouro no meu baú. O Paul Naschy escreveu quinta, sexta, sábado... No domingo, o espanhol já devia estar morto e deu por concluído o novo roteiro, que jogava o filme todo para o lado do lobisomem.
Na segunda semana de filmagem o Diler veio me perguntar se era verdade que o Paul tinha mexido no roteiro. Respondi que sim, mas que as mudanças do espanhol, além de melhorarem o script, não haviam modificado o plano de filmagem.
O Paul Naschy ocupou no meu coração um lugar que estava vazio desde a morte do Wilson Grey. Ele fez a diferença no filme. Não teria forças para fazer Um Lobisomem na Amazônia em três semanas, se não fosse a excitação de filmar com o Naschy e com estrelas tão bonitas como as mulheres amazonas.
Agradeço ao Diler a liberdade que ele me deu para escalar e contratar um elenco tão sensacional. A começar pela a espetacular Daniele Winnits, uma atriz muito bonita e profissional. A Daniele não me criou nenhum problema, nem quando pedi que revelasse seus volumosos seios em mais uma antológica cena de chuveiro que tive o prazer de filmar. A apetitosa Karina Bacchi é outra loirinha para Hitchcock nenhum botar defeito, com quem pretendo voltar a trabalhar brevemente. A contratação da Djin Sganzerla, filha do Rogério, foi uma coisa que me deu muita felicidade, porque fui lançado no cinema pelo Sganzerla e acabei lançando a filha dele no cinema comercial. Foi um ciclo que se fechou. Isso logo depois da morte do Rogério, que foi uma coisa difícil para todos nós. A participação da Djin – que é tão bonita quanto a sua mãe, a Helena Ignez – é uma maneira de continuar minha parceria com os Sganzerla. Outro excelente ator do Lobisomem com quem tenho uma relação afetiva, por causa daquela história toda que eu contei, da época de As Sete Vampiras, é o Pedro Neschling, filho da Lucélia Santos. Entre as participações especiais, não posso esquecer a hilariantes performances de Tony Tornado e do maestro Julio Medaglia, além da presença ilustre de Guará Rodrigues no papel Zoltan. Esse personagem – inclusive sua caracterização – foi inspirada num monstro interpretado por Bela Lugosi na versão original da Ilha do Dr. Moreau. Infelizmente, foi a primeira e última oportunidade que tive de filmar o saudoso Guará.
A minha única dificuldade ao fechar o elenco do filme foi encontrar a atriz que interpretaria a Rainha Pentesiléia. Na primeira entrevista que fizemos com a Joana Medeiros, percebi que o papel era dela. A Joana é um mulherão e ficou muito empolgada com a possibilidade de trabalhar comigo. Só não a contratei na hora, porque ela havia acabado de ter um filho. Fiquei com medo que isso atrapalhasse a produção. Continuamos a maratona de testes. Tentamos da endiabrada Ellen Roche a insaciável Mary Alexandre. Mas não esqueci o impacto do meu primeiro encontro com a Medeiros. Ela incorporou o personagem de tal forma que, na mesma hora que vestiu o figurino de Pentesiléia, criou até uma maneira de falar para a malvada Rainha. Evidente que o papel era dela. Joana Medeiros e as mulheres amazonas – destacando a ex-paquita Daiane Amêndola – são “guerreiras” que todos os homens gostariam de enfrentar.
Por causa dessa minha mente voltada para os anos 50, queria filmar com o grande Cauby Peixoto. O roteiro tinha a história de um sacerdote inca, um papel que seria uma luva para o Cauby. Só que ele não quer mais ser filmado, por causa da idade. O Diler tinha um canal direto com o Cauby Peixoto, porque o pai dele era fotógrafo do pessoal da Rádio Nacional. Mas o Cauby cozinhou a gente e acabou nos deixando na mão, às vésperas da filmagem. O Diler me perguntou: “Quem você pensa para substituir o Cauby Peixoto?”. Falei que pensava no Agnaldo Timóteo ou no Sidney Magal. Quando eu falei Sidney Magal, o Diler deu um pulo: “genial!”.
De fato, foi uma escolha acertada, porque o Magal parece um inca mesmo. Mas, como eu tinha que filmar o Lobisomem em três semanas era pau na máquina. Então veio o dia da filmagem do Magal. Eu tinha muitos problemas para resolver e quem acabou produzindo o número do Magal foi o Diler, em parceria com o Mu Carvalho. Foi o próprio Diler que escreveu a letra que o Sidney Magal canta. No dia da filmagem, aquilo foi um choque para mim. Porque se materializou o Sidney Magal no estúdio, um cara gigantesco, vestido de inca e cantando uma música que eu nunca tinha ouvido. Quase desmaiei, mas tinha que filmar. Falei: “Vamos nessa”. É a cena preferida do público. Foi a aplaudida no Rio, em São Paulo, Brasília, na Itália e em Portugal. Onde o filme passa, a coisa que mais gostam é o Magal.
No Festival de Turim, o filme foi projetado em HD. Mas, aconteceu alguma coisa e o som estava péssimo. Esse problema me deixou arrasado, não sabia onde me enfiar. Mas a platéia nem percebeu que havia algo errado e começou a rir desde o início do filme ¬– é A Marca do Terrir. Quando apareceu o Magal, o cinema veio abaixo. Depois da projeção, eu me desculpei pelo problema do som. Na platéia, estavam o John Landis e o Joe Dante. O Landis falou que não havia necessidade de desculpas, porque até na América o som dos cinemas era uma porcaria. O único lugar onde eu ouviria o som do filme sem reclamar era na cabine do George Lucas, em Los Angeles. O Dante falou que o filme era uma obra-prima do primeiro ao ultimo fotograma. Aproveitei também para perguntar ao Landis qual a cena que ele tinha mais gostado. Ele falou: “É aquela do número musical com o sacerdote”. Quase caí duro. É a maldição do inca.
Em Turim exibi não só o Lobisomem, mas também A Marca do Terrir e o Heliorama. As sessões dos filmes ficaram lotadas. Não esperava que a minha obra tivesse uma repercussão tão grande. Foi uma verdadeira consagração. Ganhei até um beijo na boca do Claude Chabrol. Vendi todos os exemplares que levei dos meus dois livros – Ivampirismo, o cinema em pânico e De Godard à Zé do Caixão. Os italianos me paravam na rua para pedir autógrafo. O Roberto Turigliato ficou tão impressionado com o sucesso dos meus filmes em Turim que falou que enquanto ele for diretor do Festival sempre serei convidado.
A primeira sessão de Um lobisomem na Amazônia aconteceu numa Sexta-feira, meia-noite, no Cinema Odeon, durante o Festival Internacional do Rio. Foi um tremendo sucesso porque os organizadores do festival tiveram o cuidado de programar o filme no lugar certo e na hora certa. Colocamos duas mulheres amazonas devidamente caracterizadas, ou melhor semi-nuas, para receberem os espectadores na porta do cinema. Além disso, um dublê vestido de lobisomem ficou escondido, para assustar a platéia durante as cenas mais eletrizantes do filme. Foi uma noite realmente inesquecível para mim, porque o cinema estava cheio e com muitos amigos e colaboradores presentes. Quando subimos ao palco com os atores e técnicos, para apresentar o filme, já passava da meia-noite. O Diller Trindade revelou ao público que aquele era uma ocasião muito especial, porque além da estréia tão aguardada do filme, eu estava completando 53 anos. Nunca imaginei que tanta gente fosse cantar “parabéns para você” para mim. Como, todo botafoguense, sou supersticioso, e achei que esta feliz coincidência era mais um sinal de que tudo ia dar certo. Foi emocionante porque além da equipe e elenco, o meu querido irmão Fernando Augusto também estava no palco. Um pouco antes, tinha convidado o cineasta espanhol Alex de Iglesias, que também estava presente, para subir ao palco e ele foi muito gentil nas suas rápidas palavras falando que eu sou um dos cineastas brasileiros mais reconhecidos no exterior.
O filme vai ser distribuído pela Columbia e tem sua estréia comercial marcada para o Halloween em 2006. Gostei muito de trabalhar com o Diler Trindade. Aliás, o seu pai que, também, se chamava Diler era o fotógrafo predileto da Éster de Abreu e, por isso mesmo, tornou-se grande amigo do meu avô.
Com o filme Um Lobisomem na Amazônia entrei definitivamente para a história do cinema de terror. Já fiz quatro filmes de múmia e dois de vampiro. Agora fiz um filme de lobisomem. Quer dizer, só está faltando o velho Frankenstein.
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Roteiros
A FILHA DE DRÁCULA
ROTEIRO
DE
R.F. LUCCHETTI
IVAN CARDOSO
SEQUÊNCIA 1 - DRIVE- IN - EXTERIOR – NOITE
PLANO GERAL de um velho drive-in. Carros estacionados. Alguns casais namoram.
Outros assistem eletrizados ao trailler-clip de "A FILHA DE DRÁCULA - O NOVO FILME DE IVAN CARDOSO!!!
Tema musical do filme.
Num espaçoso automóvel Naiara e Bruno não desgrudam os olhos da tela, enquanto devoram um saco de pipocas.
Lucy parece entendiada.
SEQUÊNCIA 2 - LANCHONETE DRIVE THRU – EXTERIOR
Automóvel de Bruno chega a uma grande lanchonete tipo "drive thru" e estacionam em frente ao local onde os pedidos são feitos.
SEQUÊNCIA 3 - AUTOMÓVEL DE BRUNO- INTERIOR – NOITE
Enquanto Bruno termina de fazer os pedidos a uma simpática garçonete, Lucy resmunga.
LUCY - " A Filha de DRÁCULA"... Quanta bagagem! Só você mesmo, Naiara!!
BRUNO - Chega de implicar com Naiara, Lucy. Cada um sabe do que gosta. E além do mais, você veio porquê quis. Ninguém chamou!
Lucy fica ofendida com as palavras de Bruno e ameaça começar um bateboca. Naiara interrompe.
NAIARA - Não liga não, Lucy. E você não precisa brigar com a sua irmã!
BRUNO (para Naiara)- Mas ela lá cansada de saber que você só vê filme de vampiro. só lê livro de vampiro...Tudo que você faz tem vampiro no meio! Por que diabos ela veio então?
LUCY - (chorosa) - Eu só estava querendo ser simpática!!'
NAIARA - (conciliadora) - Eu sei Lucy. Você é um amor.
Pela janela do carro, Bruno recebe da garçonete o que havia pedido.
NAIARA - O meu é o que tem bastante ketchup!!!
Desfazendo o clima, Lucy comenta em tom de brincadeira.
LUCY - Já vi tudo: meu irmão vai se casar com uma vampira! (risos)
SEQUÊNCIA 4 - MANSÃO DE NAIARA - EXTERIOR- NOITE
PLÀNO GERAL da assustadora mansão onde Naiara mora. É noite de lua cheia...
SEQUÊNCIA 5 - QUARTO DA MANSÃO DE NAIARA - INTERIOR – NOITE
Usando uma longa camisola, Naiara deita sobre a coberta vermelha da cama. Apenas a claridade da lua entra pela janela do quarto.
CORTE
Plano da lua cheia sendo coberta pelas nuvens...
CORTE
Naiara dorme. Seu quarto é invadido por uma misteriosa neblina que se espalha pelo chão, e sobe até a altura da cama. A impressão é de que Naiara flutua sobre a névoa. Somente a neblina tem vida e se movimenta em torno de Naiara.
A IMAGEM VAI SE DESFOCANDO PARA FUNDIR COM A...
SEQUÊNCIA 6 - CASTELO DE DRÁCULA - EXTERIOR – NOITE
PLANO MÉDIO de Naiara (com a mesma camisola da seqüêcia anterior indo, em direção ao velho e imponente castelo que toma conta de praticamente todo o fundo do QUADRO.
SEQUÊNCIA 7 - CORREDORES DO CASTELO - INTERIOR - NOITE
Naiara envereda por um verdadeiro labirinto de corredores escuros. Desce uma interminável escadaria sob os rasantes de morcegos.
DRÁCULA ( off) - NAIARA! NAIARA! NAIARA!!
Naiara alcança uma antiga e enferrujada porta. Faz um grande esforço para empurrá-la. A porta abre fazendo um rangido de arrepiar os nervos...Naiara entra.
SEQUÊNCIA 8 - CRIPTA DO CONDE DRÁCULA - INTERIOR – NOITE
CÂMERA SUBJETIVA DO PONTO DE VISTA DE NAIARA penetra numa sala escura e cheia de
fumaça. Em meio a espessa neblina, de costas para Naiara, está um homem alto, vestindo uma elegante casaca e com uma capa negra de forro encarnado sobre os ombros. Naiara (CÂMERA SUBJETIVA) se aproxima. O homem vira-se para ela.
CORTE
CLOSE de Naiara assustada...
CORTE
PLANO MÉDIO do Conde DRÁCULA
DRÁCULA - Finalmente atendeste meu chamado!
SEQUÊNCIA 9 - QUARTO DA MANSÃO DE NAIARA - INTERIOR - NOITE
Naiara acorda molhada de suor. Acende a luz da mesinha de cabeceira e senta na cama.
CORTE
PLANO da lua cheia saindo das nuvens.
SEQUÊNCIA 10 - TRAVESSA DA CORUJA - EXTERIOR - DIA
CÂMERA NA GRUA abre em CLOSE sobre a placa "Travessa da Coruja" faz um MOVIMENTO
OBLÍQUO até focalizar a calçada molhada da pequena rua. composta por casas comerciais sem nenhum Iuxo. A agência "Imperial Turismo" é a única exceção. Vitrine multicolorida e iluminada e uma pequena coroa piscando na marquisa...
Urna senhora gorda passeando com seu minúsculo cachorro, e Bruno são os únicos transeuntes da triste viela. Ao passar diante da agência de turismo, alguma coisa chama a atenção de Bruno. Ele pára e fica olhando a vitrine.
CÂMERA APROXIMA, atravessa a vitrine até focalizar um poster, em meio a um velho escafandro, miniaturas de aviões, navios, castelos e um trenzinho elétrico correndo em círculos.
Debaixo do poster, dizeres em neon vermelho:
VISITE O CASTELO DE DRÁCULA
TRANSILVÂNIA TOURS
CORTE
CLOSE Bruno. Ele coça a cabeça e entra na agência.
CORTE
A CÂMERA faz uma TRAVELLING através da própria vitrine por onde se vê Bruno dirigindo-se
à mesa de uma simpática recepcionista, com quem troca algumas palavras. Sorrindo a jovem levanta C conduz o cliente até a porta. Os dois entram e ela se fecha.
SEQUÊNCIA 11 - MANSÃO DE NAIARA - EXTERIOR - NOITE
PLANO GERAL da fantástica mansão de Naiara iluminada pela luz fantasmagórica dos relâmpagos.
SEQUÊNCIA 12 - BIBLIOTECA DA MANSÃO - INTERIOR - NOITE
Bruno prepara um "BLOODY MARY" AO SOM ENSURDECEDOR DOS TROVÕES. Naiara examina maravilhada alguns prospectos da viagem. Sentada numa poltrona, Lucy lê urna revista de moda. Ao seu lado, sobre urna mesinha, uma lata de refrigerante.
Naiara deixa os folhetos sobre o sofá e vai até Bruno sem conter o entusiasmo, abraça-o,
atrapalhando o preparo das bebidas.
NAIARA - (eufórica) - Demais. meu anjo! Só você mesmo pra ter essa idéia! Bruno beija Naiara com ternura.
BRUNO - O presente de casamento para minha “doce vampira”...
Lucy ergue os olhos da revista. Olhando em direção ao casal. Resmunga.
LUCY – Hummm...
Bruno e Naiara, apaixonados, sentam-se no sofá e brindam.
NAIARA - Transilvânia... É a viagem dos meus sonhos... Não vejo a hora de partir!
Implicante, Lucy atrapalha o namoro dos pombinhos".
LUCY – Cruz credo... Imagine passar a lua-de-mel no Castelo do DRÁCULA!
Um forte raio ilumina todo o jardim de inverno, Naiara, assustada, se aproxima mais de Bruno, que mostra a língua para a irmã.
Lucy volta a se concentrar em sua leitura, fazendo uma careta. Bruno abraça Naiara para curtirem juntos os folhetos.
BRUNO – Amanhã, tô cheio de coisa pra fazer. Você pode levar os passaportes para o Ramon Gonzalez, na agência?
Novamente Lucy faz uma careta numa atitude cômica. Outro relâmpago ilumina o jardim de inverno.
BARULHO DE TROVÃO EM SEGUIDA A IMAGEM ESCURECE.
SEQUENCIA 13 – TRAVESSA DA CORUJA – EXTERIOR – DIA
CÂMERA NA GRUA abre em CLOSE sobre a placa ‘Travessa da Coruja”. Faz um MOVIMENTO OBLÍQUO até enquadrar o pequeno carro esporte de Lucy que estaciona quase em frente a agência “Imperial” Lucy e Naiara saltam do automóvel e entram na loja.
SEQUENCIA 14 – ESCRITÓRIO DE RAMON GONZALEZ – INTERIOR – DIA
No interior da agência, Lucy caminha encantada pelo escritório e admira os cartazes, posters de viagens exóticas: Muralha da China, Ilha de Páscoa, Floresta Negra, Vale dos Reis, Tibete, etc. Quando ela senta ao lado de Naiara, Ramon Gonzalez, do outro lado da mesa, ergue as vistas dos passaportes para elas.
RAMON – Tudo em ordem. Amanhã mesmo teremos os vistos.
LUCY – Vocês são especialistas em viagens esquisitas?
Ramon volta-se para Lucy, com um sorriso de velho conquistador.
RAMON – É verdade... só para você ter uma idéia, nossa última excursão foi ao Nepal pelos subúrbios de Katmandu!
NAIARA – Não sabia que as pessoas tinham pirado tanto assim...
Ramon faz um gesto explicativo com as mãos, olhando para Lucy.
RAMON – Hoje em dia, nem todo mundo está interessado em passear com o Mickey na Disneylândia.
LUCY - Como a minha cunhadinha aí... Que tem uma fixação mórbida em “vampiros”! Ela sabe tudo a respeito do Conde DRÁCULA!
Esfregando as mãos, Ramon volta a sua atenção para Naiara.
RAMON – Ótimo. Então Naiara, você vai gostar de saber que na sua viagem haverá um guia especializado em “vampiros”! O famoso professor Astrakhan!
Lucy olha com interesse para Naiara.
NAIARA – (pensativa) – O professor Astrakhan... Esse nome não me é estranho...
Lucy volta sua atenção para Ramon.
RAMON - Claro que já deve ter ouvido falar dele. O professor Astrakhan é um astrólogo, que tem o “dom”de prever o futuro das pessoas. Aliás, foi ele que nos sugeriu este tour!
LUCY - pergunta empolgada) – Adoro essas coisas místicas! Será que e;e podia ler a minha mão!?
Naiara dá um olhar fulminante, censurando a amiga. Rindo, Ramon prossegue.
RAMON - Pode ser Lucy... O professos é uma pessoa bastante especial.
Lucy fica quieta e volta sua atenção para Naiara, que pergunta irritada.
NAIARA - E por que esse professor Astrakhan estaria interessado neste tipo de excursão?
Lucy encara Ramon, como se fosse autora da pergunta.
RAMON - (evasivo) – Também lhe fiz esta pergunta...ele respondeu qualquer coisa sobre a necessidade de “combater as forças do mal”...
Lucy não agüenta e cai na gargalhada.
LUCY – Não acredito! Quer dizer que ele leva a sério essa fantasia?
RAMON – (piscando o olho para Lucy) – Cada louco com a sua mania... Mas, cá entre nós, tem até um grupo de alunos mas não creio que Astrakhan seja um “caçador de vampiros”!
Naiara se levanta. O assunto a incomoda.
NAIARA – Vamos embora, Lucy. Estou morrendo de fome.
Ramon e Lucy também se levantam.
RAMON – Também vou almoçar. Se permitirem, teria enorme prazer em convidá-las...
Antes que Naiara possa dizer qualquer coisa, Lucy responde.
LUCY – Ficaríamos encantadas, não é Naiara?
Ramon percebe a hesitação de Naiara e abre a porta para as duas mulheres passarem. Depois, ele
próprio sai e a porta fecha-se contra a CÂMERA.
Preso a porta, um poster do Castelo de DRÁCULA enche toda a tela.
SEQUÊNCIA 15 - AUTOMÓVEL DE LUCY - EXTERIOR – DIA
Lucy dirige seu carro esporte por uma avenida movimentada, tendo Naiara ao seu lado.
NAIARA - Que almoço que você me arranjou... Quando disse que estava morrendo
de fome era para irmos embora... de fisgar esse Ramon???
LUCY - E pensa que não sei? Mas você acha que eu iria perder a oportunidade.
NAIARA - E pelo jeito você fisgou mesmo...
SEQUÊNCIA 16 - IGREJA - EXTERIOR - DIA
MARCHA NUPCIAL COM ARRANJO FÚNEBRE.
A partir da cruz no alto da igreja, PANORÂMICA desce até enquadrar um grupo de pessoas. Elas estão paradas diante da porta principal, por onde Naiara - vestida de noiva - e Bruno saem. Os noivos se beijam em meio a tradicional chuva de arroz e entram num velho Cadilac preto, acenando em CÂMERA LENTA para os amigos. Ramon e Lucy também fazem parte do alegre grupo.
SEQUÊNCIA 17 - AEROPORTO INTERNACIONAL - EXTERIOR - DIA
PLANO GERAL da pista. PANORÂMICA de um avião que se prepara para aterrissar.
SEQUÊNCIA 18 - AEROPORTO INTERNACIONAL - INTERIOR - DIA
Os participantes da excursão reúnem-se diante do portão de desembarque.
Nele encontram-se os mais variados tipos. O professor Astrakhan veste smoking e um legítimo turbante indiano. Está acompanhado por seu estranho assistente e, observa Naiara à distância. Ela se encontra um pouco mais à frente, ao lado de Bruno, e conversa animadamente com Ramon e Lucy.
LUCY - Esse professor Astrakhan é realmente uma peça.Nunca pensei que pudesse existir um tipo assim...
Naiara sorri, concordando. Volta a ficar séria. ao perceber que Astrakhan parece escutar Lucy. olha fixo em sua direção.
CORTE
CLOSE do alto falante do aeroporto.
VOZ - (através do alto falante) - Passageiros do Vôo 666 da Moldávia Air Lines,
com destino à Transilvânia, embarque imediato no Portão 13. Boa viagem.
OBSERVAÇÃO.: A chamada deve ser feita pela locutora oficial do aeroporto e repetida nos idiomas: espanhol, francês e inglês.
Ramon olha para Lucy. Lucy olha para Ramon. Por um momento ficam indecisos. A iniciativa parte de Lucy. que se pendura no pescoço de Ramon e beija-lhe a boca.
Ramon despede-se carinhosamente de Lucy e toma a liderança do grupo.
NAIARA - Tchau, Lucy. Assim que chegar eu ligo.
As duas amigas se abraçam. Bruno também beija Lucy.
BRUNO - Se cuida, “Moranguinho”!
LUCY - Você também Bruno, e olho nos “vampiros”...
A CÂMERA faz correção para um dos lados, até enquadrar em CLOSE o professor Astrakhan que continua encarando Naiara com a fisionomia fechada.
SEQUÊNCIA 19 - VÔO 666 - EXTERIOR – DIA
Sobre o Mapa Mundi, uma linha pontilhada indica o trajeto da viagem rumo à Transilvânia.
SEQUÊNCIA 20 - SERRA DOS CÁRPATOS - EXTERIOR – DIA
Um velho rnicro-ônibus afasta-se da CÂMERA, sacolejando por uma perigosa estrada, ladeada por árvores desfolhadas, que serpenteiam ao longo de um desfiladeiro.
SEQUÊNCIA 21 - MICRO-ÔNIBUS - INTERIOR - DIA
RAMON - Como é , estão gostando da viagem?
NAIARA - Muito...Parece um sonho. É a "terra do Conde DRÁCULA"!
Neste momento, Bruno percebe que Astrakhan - sentado num peque no banco ao lado do motorista ¬não tira os olhos de Naiara. Ela também sente o estranho olhar do professor, Fica arrepiada e se aconchega mais no corpo do marido.
NAIARA - Tá começando a esfriar...
CORTE
CLOSE de Astrakhan com os olhos faiscando de raiva.
CORTE
Algumas tomadas do micro-ônibus através da estrada dos Cárpatos. MÚSICA DE SUSPENSE.
SEQUÊNCIA 22 - PORTA DO CASTELO DO DRÁCULA - EXTERIOR - DIA
O enorme castelo também se encontra envolto pela forte neblina. O professor Astrakhan, parado diante da grande e pesada porta do castelo faz uma reverência convidando os turistas a entrarem.
ASTRAKHAN - Bem vindos ao Castelo do Conde DRÁCULA! Entrem livremente
e por sua própria vontade...
O professor observa, um a um, os excursionistas entrarem. Mostram-se curiosos, falando entre si e tirando fotografias. Quando Naiara passa de mãos dadas com Bruno, Astrakhan só falta explodir de raiva.
Um pouco mais afastado. Ramon observa a cena.
SEQUÊNCIA 23 - ÁTRIO DO CASTELO DRÁCULA - INTERIOR - DIA
Os excursionistas entram no átrio: uma grande sala abobadada, em cujas paredes pendem armas e brasões. Ramon filma tudo com a sua câmera de vídeo, focalizando Naiara e Bruno, que percorrem o grande salão, observando os objetos de arte.O professor começa a sua explanação, enquanto os demais participantes da excursão se aproximam. Ramon concentra sua filmadora sobre Astrakhan.
ASTRAKHAN - Dracul era conhecido como VIad., " O Empalador", pois torturava suas vítimas pela empalação...
Enquanto todos os presentes mostram-se entretidos pela terrível história que o professor lhes conta, Naiara afasta-se...
ASTRAKHAN - A "lenda dos vampiros" ganhou uma força extraordinária por se misturar com a história cruel da Transilvânia e VIad Dracu1, Príncipe de Valáquía...
Bruno volta sua atenção para Astrakhan, aproximando-se do grupo. Naiara prossegue andando sozinha...mostra-se mais interessada pelos objetos e quadros que nas palavras do astrólogo. Enquanto todos os presentes mostram-se entretidos pela terrível história que o professor lhes conta, Naiara afasta-se...
PANORÂMICA dos velhos quadros do castelo que retratam as atrocidades cometidas por Vlad Dracu1.
CORTE
Naiara afasta-se cada vez mais do grupo, até transpor o arco que dá acesso a um escuro corredor.
SEQUÊNCIA 24 - CORREDORES DO CASTELO - INTERIOR - DIA
Naiara caminha por um corredor mal iluminado por alguns archotes. Naiara envereda por um verdadeiro labirinto de corredores escuros, descendo urna interminável escadaria até alcançar uma antiga porta de ferro toda enferrujada.
Fazendo um grande esforço, Naiara consegue empurrar a pesada porta que abre com um rangido de arrepiar os nervos.
SEQUÊNCIA 25 - CRIPTA DO CONDE DRÁCULA - INTERIOR - DIA
Naiara chega a uma incrível sala toda de pedra. onde se encontra um misterioso túmulo coberto de teias de aranha! Emocionada. Naiara aproxima-se da sepultura. Fica algum tempo parada.estática.admirando-a num gesto de quase veneração. Limpa parte da superficie empoeirada de sua lápide, onde aparece uma gravação em baixo relevo:
VLAD DRACUL
"CONDE DRÁCULA "
CORTE
GRANDE PLANO do rosto de Naiara. Olhos estáticos, muito abertos refletindo uma grande emoção. Seus lindos lábios movem-se, num murmúrio quase inaudível.
NAIARA - O túmulo do DRÁCULA!!!
CORTE
Naiara permanece imóvel ao lado do túmulo, passando a mão carinhosamente ao longo da sua tampa.
Depois de algum tempo, pega uma grande pedra num canto da sala e com toda a sua força joga-a sobre a velha lápide, rachando-a e ferindo a mão.
CORTE
CLOSE de Naiara reagindo a dor.
CORTE
GRANDE PLANO do dedo ferido de Naiara, do qual escorre o sangue que pinga, pinga...
CORTE
GRANDE PLANO da lápide. onde as gotas de sangue caem sobre o nome de DRÁCULA, escorrendo pela fechadura, até o seu interior...
CORTE Um fantástico raio corta o céu.
CORTE
CLOSE de Naiara concentrada. Inicia uma estranha oração.
NAIARA - Ó, Senhor dos Mortos Vivos, responde ao meu apelo...
CORTE
DETALHE de sangue escorrendo para dentro da sepultura.
CORTE
PRIMEIRÍSSIMO PLANO da boca sensual de Naiara.
NAIARA - O meu sangue escorra...
CORTE
DETALHE do sangue escorrendo para dentro da sepultura.
NAIARA - (em off) ...para junto de vós...
CORTE
Vários raios cruzam o céu sob o ronco ensurdecedor dos trovões.
CORTE
A cripta se enche de fumaça, a terra treme...
CORTE
Naiara cai desmaiada. Permanece imóvel ao lado do túmulo. Uma espessa neblina toma conta da pequena sala.
VOZ (com câmara de eco) – Naiara! Naiara!
A CÂMERA APROXIMA-SE LENTAMENTE de Naiara.
Um homem alto, pálido,caminha em sua direção. Vestindo uma elegante casaca, com uma capa negra de forro encarnado sobre os ombros. Sua imagem é sedutora...
Seus olhos injetados de sangue, encaram Naiara. Seus lábios rasgados movem-se, enquanto estende as mãos e pronuncia, bastante emocionado.
DRÁCULA - Naiara! Minha querida Naiara!
Ao longe, ouve-se o uivo ameaçador dos lobos famintos nos Cárpatos.
DRÁCULA - Finalmente atendeste meu chamado! És a última encarnação da filha que perdi.
CORTE
GRANDE CLOSE de Naiara desmaiada.
SEQUÊNCIA 26 - HOSPITAL - EXTERIOR - DIA
PLANO GERAL de um moderno hospital. Ambulâncias estacionadas na porta. Médicos, enfermeiras, pacientes e visitantes movimentam-se em sua luxuosa entrada. Ruído de trânsito ao fundo.
SEQUÊNCIA 27 - QUARTO DE HOSPITAL -INTERIOR - DIA
CÂMERA SUBJETIVA A TRAVÉS DO PONTO DE VISTA DE NAIARA - DEITADA. A princípio, apenas uma grande mancha "vermelha . que aos poucos vai se transformando numa imagem desfocada. Ouvem-se vozes.
Palavras incompreensíveis. Aos poucos. as imagens vão se tornando nítidas. Visivelmente abatido e com uma expressão de sofrimento. Bruno olha. Ao seu lado estão Lucy e o médico. os três inclinados sobre a CÂMERA. Bruno e Lucy sorriem para Naiara.
CORTE
O quarto em meia penumbra. Naiara, mais pálida e mais bonita, com uma sensualidade bastante acentuada, está deitada na cama do hospital.Olha com espanto para os presentes. concentrando-se em Bruno.
Ramon, um pouco mais afastado da cama, aproxima-se e saúda Naiara com um largo sorriso, enquanto pega familiarmente na mão de Lucy.
NAIARA -(assustada) O que aconteceu Bruno?
Bruno debruça-se na cama e abraça Naiara, beijando-a com carinho.
BRUNO - Foi apenas um susto, querida. Já está tudo bem.
O médico adianta-se com um sorriso tranqüilizador.
DOUTOR - A senhora sofreu um desmaio na Transilvânia e trouxeram-na ainda inconsciente para cá...
Perplexa, Naiara senta-se na cama.
NAIARA - E há quanto tempo estou aqui?
DOUTOR - Há exatamente um mês... Mas você não tem que se preocupar...
O médico aperta o botão da campainha ao lado da cabeceira da cama.
DOUTOR - Seu estado geral é ótimo e não tenho motivo para retê-la aqui nem mais um minuto!
Lucy abraça Naiara emocionada. Bruno e Ramon também sorriem.
LUCY - Oh, Naiara. Não imagina como estou feliz! Sabendo que você vai deixar o hospital. Tenho tanta coisa para lhe contar...
Ramon pega na mão de Naiara, que olha-o com simpatia.
NAIARA - Desculpe, Ramon...Devo ter estragado a sua excursão...
RAMON - O importante agora é que você fique boa, Naiara. Um dia voltaremos lá. Prometo. Mas só nós quatro...
Com a sua habitual espontaneidade, Lucy apressasse em contar.
LUCY - ...É que...Eu e o Ramon estamos pensando em casar!
SEQUÊNCIA 28- CORREDOR DO HOSPITAL - INTERIOR – DIA
Bruno. Ramon c o médico saem do quarto. Ao sair. o doutor puxa a porta. fechando-a. TRAVELLING EM RECUO acompanha os três homens. Eles caminham pelo movimentado corredor, onde transitam enfermei¬ras e pacientes.
DOUTOR - Sua esposa está bem, Bruno.
BRUNO - Mas não consigo entender, doutor. Ninguém dorme trinta dias sem um motivo.
DOUTOR - É estranho, concordo. Mas pode acontecer...
ALTO FALANTE (voz feminina em 011) - Doutor Hugo Lemos, queira comparecer à enfermaria.
O médico continua sua explicação sem interromper.
DOUTOR - Na minha profissão vejo coisas que até Deus duvida! Há casos que a Medicina não consegue explicar. Naiara é um desses mistérios...
Fazem uma parada na confluência de outro corredor para dar passagem a maca, transportando um doente todo arrebentado reiniciam a marcha.
DOUTOR - O nosso diagnóstico coincide com o realizado no hospital em Bucareste: Naiara sofreu um ataque de catalepsia...
ALTO FALANTE (voz feminina) Doutor Pedro Henrique, por favor atenda o telefone.
Enquanto conclui suas explicações, o médico olha com pena para Bruno e completa.
DOUTOR - Agora é você que tem que se cuidar, Bruno. Olha só pra você, meu filho...Está um caco!
Bruno fica sem jeito, Ramon interrompe.
RAMON - O senhor tem razão doutor. Mas essa história toda deixou Bruno muito abalado. Imagine!
Uma confusão dessas em plena lua-de-mel!
DOUTOR - (respondendo a Ramon) Eu sei...Eu sei. Mas o pior passou(voltando-se novamente para Bruno).Prometa-me, rapaz, que de hoje em diante quem irá se cuidar é você.
BRUNO - Pode deixar, doutor. Vou fazer o possível...
Eles chegam ao hall dos elevadores e se despedem.
SEQUÊNCIA 29 - MANSÃO DE NAIARA - EXTERIOR - NOITE
PLANO GERAL da mansão. Lua cheia.
SEQUÊNCIA 30 - QUARTO DA MANSÃO - INTERIOR - NOITE
Naiara está deitada, vestida sensualmente. Lê um livro sobre Drácula. Ao fundo ouve-se alegria de Bruno e o som da torneira da pia. Naiara abaixa o livro, seu olhar tem uma expressão enigmática e suspeita.
SEQUÊNCIA 31 - BANHEIRO DA MANSÃO - INTERIOR - NOITE
Bruno, em frente ao espelho, toalha enrolada na cintura, rosto com espuma, começa a barbear-se. GRANDE CLOSE da navalha. SUSPENSE.
TCHAN! Bruno corta-se e, instantâneamente, flui o sangue.
CORTA PARA NAIARA que surge na porta, num susto. Seu rosto parece transfigurado. Seu olhar concentra-se no corte de Bruno. O espectador percebe que, pelo ângulo,sua imagem deveria refletir no espelho. Mas não reflete. Bruno vira-se, assustado. Naiara muda para uma expressão doce.
BRUNO (desfazendo o susto): - Oi, amor não vi você chegar.
NAIARA (provocante):- Como é você não vem?
Naiara dá dois passos na direção de Bruno, enlaça seu pescoço com os braços e beija sua boca. No reflexo do espelho apenas a imagem de Bruno aparece.
SEQUÊNCIA 32 - QUARTO DA MANSÃO - INTERIOR - NOITE
Bruno e Naiara na cama. Música romântica. Beijos sensuais. Os corpos jovens de Naiara e Bruno cintilam sua nudez contra o brilho do lençol de seda. Naiara murmura o nome de Bruno. Bruno geme de prazer.
SEQUÊNCIA 33 - JARDIM DE INVERNO DA MANSÃO - INTERIOR - DIA
CORTA PARA A MESA DO CAFÉ DA MANHÃ. Naiara está feliz e jovial, encantadora em seu robe de seda, servindo a xícara de Bruno. Ele olha para Naiara com uma expressão cansada. Pega o jornal dobrado sobre a mesa mas, logo, desiste. Falta ânimo para dobrá-lo.
Naiara mexe seu café. GRANDE CLOSE da xícara com o café girando.
SEQUÊNCIA 34 - QUARTO DA MANSÃO -INTERIOR - NOITE
A MÚSICA NÃO É MAIS ROMÂNTICA. É TENSA
Bruno, deitado de costas na cama, inteiramente entregue aos carinhos de Naiara. CLOSE de seu rosto pálido. CLOSE da boca de Naiara beijando frenética, o pescoço de Bruno.
CÂMERA CORRIGE para a mesa de cabeceira onde está o livro de DRÁCULA. CORRIGE até a parede onde é projetada a sombra de um felino sobre Bruno.Ouvem-se gemidos e gritos de Bruno, mistos de prazer e dor. Grunhidos animalescos. ESCURECIMENTO.
SEQUÊNCIA 35 - JARDIM DE INVERNO DA MANSÃO - INTERIOR - DIA
GRANDE CLOSE do café girando na xícara. PLANO GERAL da mesa do café da manhã. Naiara. deslumbrante toma seu café sozinha, com um sorriso enigmático estampado no rosto.
Elisa, a empregada, aparece na porta envidraçada trazendo uma bandeja com bules de café e leite, açucareiro, etc.
ELISA - Bom dia, dona Naiara. A senhora acordou cedo.
NAIARA - Bom dia, Elisa. Não consegui ficar na cama. (muda de tom e expressão cínica) – Elisa, sirva o café do senhor Bruno lá no quarto!
A empregada afasta-se.
Absorta em seus pensamentos, Naiara toma um gole de café.
SEQUÊNCIA 36 - QUARTO DA MANSÃO DE NAIARA - INTERIOR – DIA
PRIMEIRÍSSIMO PLANO da boca de Elisa. gritando desesperada.CÂMERA abre e Elisa larga a bandeja
de café que explode no chão.
SEQUÊNCIA 37 - CEMITÉRIO - EXTERIOR - DIA
Naiara e Lucy chorando muito, ambas de luto, Ramon e um pequeno grupo de amigos (os mesmos que estavam presentes ao casamento ), portando guarda-chuvase sombrinhas.
CORTE
A uma mortuária desce para o túmulo. Ao fundo, Lucy é amparada por Ramon.
CORTE
Naiara apanha uma rosa vermelha e a joga sobre o caixão.
CORTE
CLOSE da rosa caindo sobre o caixão.
CORTE
A CÂMERA faz uma PANORÂMICA, deslocando-se do grupo até focalizar em PLANO MÉDIO o prof. Astrakhan. Ele e seu assistente acompanham o enterro a uma certa distância, em meio a outras sepulturas.
CORTE
CLOSE de Naiara, que levanta o rosto e percebe a presença do professor.
CÂMERA SUBJETIVA ATRAVÉS DO VÉU NEGRO DE NAIARA.
Olhando diretamente para a CÂMERA Astrakhan murmura...
ASTRAKHAN - Piranha do inferno...
CORTE
PLANO GERAL. Naiara volta-se e começa a caminhar, tendo ao lado Lucy amparada. O enterro acabou.
Ao passar junto a um túmulo com uma grande cruz, Naiara ergue a pala do vestido, procurando ocultá-la de sua visão. O gesto não passa desapercebido de Ramon.
O grupo se dirige para a saída do cemitério.
Astrakhan aproxima-se do túmulo de Bruno, onde alguns coveiros terminam de fechá-lo.
O prof. Astrakhan coça o cavanhaque e cospe na sepultura, enquanto a imagem ESCURECE.
SEQUÊNCIA 38 - SALA DA MANSÃO DE NAIARA - INTERIOR – NOITE
Naiara termina de tirar o chapéu preto com véu e coloca-o sobre a cauda do piano. No meio da sala, Lucy e Ramon a observam.
Ramon sai de quadro, enquanto Lucy vai até Naiara e abraça-a carinhosamente. Ambas choram baixinho, olhando para um porta-retrato de prata, em cima do piano.
CORTE
GRANDE CLOSE da fotografia do casamento de Naiara com Bruno.
LUCY - (em off) - Eu não compreendo, por Deus, juro que não compreendo...
NAIARA - (em off) - Ninguém compreende a morte.
Enquanto fala, as mãos de Naiara entram em quadro e seguram o porta-retrato. trazendo-o contra a CÂMERA.
CORTE
Ramon aproxima-se com um calmante. Entrega o copo' para Lucy. O ambiente é de consternação e de tristeza, embora a beleza de Naiara seja fulgurante.
RAMON - Como você está, Naiara? Você pode ficar lá em casa...
NAIARA - Não se preocupem comigo, Ramon. Eu estou bem.
Lucy segura a mão de Naiara, que dá um sorriso forçado
NAIARA - Vocês podem ir...Estou bem.
RAMON - Mas você não vai ficar sozinha neste casarão?
NAIARA - São por alguns dias..
LUCY (chorosa)- Você tem certeza que é isso mesmo o que você quer?
NAIARA (categórica) - É Lucy, preciso ficar só.
Lucy olha indecisa para Ramon. Ramon faz um gesto de aquiescência.
RAMON - Está bem, Naiara. Mas se precisar de alguma coisa, é só telefonar,
tá?
Ainda indecisa, Lucy beija a face de Naiara. Ramon pega Lucy pela mão e afastam-se. Naiara fica parada alguns segundos. Depois volta ao piano, apanha o porta-retrato e o vira de cabeça para baixo.
CORTE
CLOSE de Naiara. Seus lábios vermelhos movem-se misteriosamente, no que pode ser um arremedo de sorriso...
SEQUÊNCIA 39 - TRAVESSA DA CORUJA - EXTERIOR – DIA
CÂMERA NA GRUA abre em CLOSE sobre a placa "TRAVESSA DA CORUJA". Faz um
MOVIMENTO OBLÍQUO até focalizar a calçada da pequena rua , por onde o prof. Astrakhan (com o seu turbante indiano) e um de seus alunos avançam em direção à agência.
SEQUÊNCIA 40 - AGENCIA "IMPERIAL TURISMO" - INTERIOR – DIA
Astrakhan, com seu fiel discispulo um pouco mais atrás, dirige-se até a mesa da jovem recepcionista.
ASTRAKHAN - Bom dia, Valquiria. O senhor Gonzalez me aguarda...
VALQUÍRIA - Um minutinho só, por favor.
Sempre simpática, a secretária sorri para o professor, enquanto interfona para seu chefe.
VALQUÍRIA - Ramon, o professor já chegou
RAMON - (em off) Mande-o entrar imediatamente.
Valquiria desliga o telefone.
ASTRAKHAN - Obrigado, senhorita.
Astrakhan faz um movimento com as mãos e hipnotiza seu aluno.
VALQUÍRIA - (assustada) - Pode entrar. professor Astrakhan.
Quando a porta fecha. a moça volta para a mesa, ficando intrigada com a postura do estranho escudeiro do professor. Ele permanece parado, de braços cruzados, como uma estátua.
CORTE
CLOSE de Valquiria que sorri, tentando chamar atenção do rapaz.
CORTE
CLOSE do estranho elemento, com os olhos parados.
SEQUÊNCIA 41 - ENTRADA DO SHOW - EXTERIOR – NOITE
PLANO GERAL de uma movimentada casa noturna. Letreiros luminosos anunciam o show de RITA LEE. Adolescentes se aglomeram na entrada. Carros não param de chegar. Um deles é a limusine negra de Naiara.
SEQUÊNCIA 42 - SHOW - INTERIOR – NOITE
PLANO GERAL do palco RITA LEE e banda cantam a música tema do filme. O público vibra. Na platéia, alguns dançam, outros apenas se movimentam de um lado para o outro. No meio da Confusão está Naiara. Mais sedutora do que nunca, ela veste roupas provocantes e tem um ar misterioso. Naiara parece estar a procura de alguma coisa.
CÂMERA SUBJETIVA DO PONTO DE VISTA DE NAIARA observa os presentes, pára num rapaz, desacompanhado. Ele percebe o olhar de Naiara. Os dois começam a flertar.
SEQUÊNCIA 43 - PRÉDIO DE RAMON - EXTERIOR - NOITE
PLANO GERAL do prédio de Ramon Gonzalez.
SEQUÊNCIA 44 - SALA DO APARTAMENTO DE RAMON - INTERIOR - NOITE
Ramon, sentado num sofá, folheia uma revista de viagens. Lucy, de pé, aguarda uma ligação telefônica. Permanece assim por algum tempo. Finalmente desliga o aparelho.
LUCY - Estranho, ninguém atende.
RAMON - Ela deve ter saído, Lucy. Depois disso tudo, Naiara precisa se distrair.
LUCY - Sei, querido...Mas...Estranho...
SEQUÊNCIA 45 - MIRANTE - EXTERIOR – NOITE
PLANO GERAL de um automóvel importado estacionado no mirante.
SEQUÊNCIA 46 - AUTOMÓVEL IMPORTADO - INTERIOR – NOITE
O rapaz "fisgado" por Naiara durante o show apaga os faróis do carro. Ele está agitado.
NAIARA - (fazendo-se de ingênua) - Não é perigoso parar aqui?
RAPAZ - (cafajeste) - Você não está com medo de mim, está?
NAIARA - (marota) - Nunca se sabe...
SEQUÊNCIA 47 - SALA DO APARTAMENTO DE RAMON -INTERIOR – NOITE
Lucy caminha de um lado pra o outro. Ramon ergue os olhos da revista de viagens. Começa a acompanhar os movimentos de Lucy com a cabeça.
RAMON - "Moranguinho"...
Lucy pára e olha para Ramon.
LUCY - Sim?
RAMON - Senta aqui
Lucy obedece. Ramon respira fundo.
RAMON - Sabe quem teve lá no escritório hoje de manhã?
LUCY - Quem?
RAMON - O prof. Astrakhan. Mas falou tanta bobagem que acabei perdendo a paciência...
LUCY - O que é que ele disse?
SOM DE HARPA INDICANDO FLASHBACK
SEQUÊNCIA 48 - ESCRITÓRIO DE RAMON - INTERIOR – DIA
FLASHBACK de um trecho da conversa que Ramon e Astrakhan tiveram na sequência 40 (ainda inédito para nós).
CLOSE do professor que discursa inflamado. Seus olhos brilham de raiva, como se estivesse fazendo uma advertência.
ASTRAKHAN - ...lembre-se que o círculo se fecha com a volta do"Príncipe das Trevas!" Naiara, não é uma mulher comum...É a maldade personificada...É a própria filha de Drácula!
SEQUÊNCIA 49 - MIRANTE - EXTERIOR – NOITE
CÂMERA NA GRUA se afasta do automóvel.
RAPAZ -(ofl) - Humm...Você é mesmo incrível...Mas... pera aí! Que é isso!! Não, pára! Pára! Não...!
SEQUÊNCIA 50 - MANSÃO DE NAIARA - EXTERIOR – DIA
PLANO GERAL da mansão. O dia está nublado. Uma viatura policial estaciona diante do portão.
SEQIIÊNCIA 51 - SALA DA MANSÃO DE NAIARA - INTERIOR – DIA
PLANO GERAL da sala mergulhada na penumbra.
Naiara caminha até a porta no fundo da sala, enquanto soa insistentemente a campainha . Elia abre a pesada porta.
CORTE
Diante da porta, o delegado Pacheco fica por um momento ex1asiado pela beleza exuberante de Naiara, O policial tem uma maneira característica de gesticular com as mãos.
NAIARA - O que o senhor deseja, por favor?
CORTE
Como que voltando à realidade, Pacheco se desculpa enquanto, atrapalhado, tenta mostrar o distintivo.
PACHECO - Queira me perdoar. Sei que a hora é impr6pria...Mas sou o delegado Pacheco, da Homicídios!
NAIARA - Compreendo. Sim, delegado...
PACHECO - Licença, madame - às vezes, minha profissão me deixa embaraçado...
Naiara fecha a porta e conduz o delegado pela ampla sala da mansão. Pacheco olha admirado para tudo, começando a caminhar em círculos, como se estivesse procurando alguma coisa.
Naiara força um sorriso, tentando ser simpática. O delegado aproxima-se em sua direção.
Naiara indica uma poltrona para Pacheco, sentando-se em outra,diante dele. Naiara cruza as suas pernas escu1turais, deixando o homem ainda mais perturbado e divertindo-se com o seu nervosismo. Num gesto característico o delegado passa a ponta do dedo pelo colarinho. como se quisesse afrouxá-lo.
PACHECO - Gostaria de não incomodá-la. mas tenho que fazer algumas perguntas. . .
SEQUÊNCIA 52 - CEMITÉRIO - EXTERIOR – NOITE
PLANO GERAL do cemitério. CÂMERA NA GRUA se aproxima lentamente da sepultura onde Bruno está enterrado. MÚSICA DE SUSPENSE.
CORTE
CLOSE da lápide.
CORTE
GRANDE CLOSE da sepultura. Ruído de tremor de terra. Mão de Bruno saí de dentro da cova...
CORTE
PLANO GERAL da sepultura. Com bastante dificuldade, Bruno começa a se levantar. Braços primeiro, depois o resto do corpo. Está transfigurado. Suas roupas estão sujas e esfarrapadas. Sua expressão é vaga. Bruno é a própria imagem do "morto-vivo"!
CORTE
PLANO MÉDIO de Bruno. Ele tenta se deslocar para fora da sepultura. Sua perna está presa. Atrapalhado,
Bruno força para que ela solte.
CORTE
GRANDE CLOSE da perna de Bruno presa.
CORTE
CLOSE do rosto sem vida de Bruno olhando para baixo.
CORTE
PLANO GERAL de Bruno deixando o cemitério...
SEQUÊNCIA 53 - LETREIRO DO CINEMA ESTAÇÃO BOTAFOGO - EXTERIOR – NOITE
Letreiro do cinema anuncia: "HOJE - SESSÃO MEIA-NOITE - A VOLTA DOS MORTOS-VIVOS".
SEQUÊNCIA 54 - SAÍDA DO CINEMA ESTAÇÃO BOTAFOGO - EXTERIOR – NOITE
PLANO GERAL de uma pequena multidão saindo após o fim da sessão. Naiara também acaba de assistir ao filme. O público começa a se dispersar. Naiara vê um rapaz muito parecido com Bruno ela leva um susto. Tenta alcançá-lo, mas ele desaparece. Naiara. se esquece do rapaz por alguns instantes, saindo de cena. Nesse momento Naiara sente que está sendo observada por alguém e descobre que o professor e seu fiel assistente também estavam na sessão.
SEQUÊNCIA 55 - AUTOMÓVEL DE NAIARA - INTERIOR – NOITE
Naiara pensativa entra no carro. Ela continua intrigada. Resolve procurar o rapaz.
SEQUÊNCIA 56 - PONTO DE ÔNIBUS - EXTERIOR – NOITE
O sósia" de Bruno está parado,tranquilamente. Come pipocas enquanto espera seu ônibus.
SEQUÊNCIA 57 - AUTMÓVEL DE NAIARA - INTERIOR – NOITE
CAMERA SUBJETIVA DO PONTO DE VISTA DE NAIARA AO VOLANTE se aproxima lentamente do rapaz. CÂMERA SUBJETIVA CORRIGE à medida que o automóvel de Naiara se aproxima do rapaz. até enquadrá-la pela janela do carona. Rapaz abaixa a cabeça para falar com Naiara, colocando-a em quadro.
RAPAZ - Oi...Você também tava saindo do cinema?
ESCURECIMENTO.
SEQUÊNCIA 58 - MANSÃO DE NAIARA - EXTERIOR – NOITE
PLANO GERAL da mansão envolta por uma sinistra névoa.
SEQUÊNCIA 59 - BIBLIOTECA DA MANSÃO - INTERIOR – NOITE
PLANO GERAL da sala da mansão. CÂMERA se aproxima lentamente de Naiara e do "sósia" de Bruno, que estão sentados no sofá. Naiara é envolvente e arruma o rapaz para que ele fique mais parecido ainda com Bruno. O rapaz, completamente seduzido por Naiara, não oferece resistência.
CÂMERA enquadra os dois em PLANO MÉDIO.
RAPAZ - Você é linda...
Naiara sorri para ele maliciosamente, mas não responde.
RAPAZ (já meio sem jeito) - Vamos logo com isso, meu amor... Eu não tô aguentando mais...
Naiara termina de arrumá-lo. A semelhança entre ele e Bruno é realmente espantosa. Naiara contempla sua -obra".
BRUNO - Bruno...
RAPAZ – Quem?
NAIARA – Bruno...Bruno...
RAPAZ – Que Bruno é esse minha filha! Ta louca!
NAIARA – BRUNO!
CORTE
A janela da mansão explode. espalhando cacos de vidro por toda a parte.
CORTE
PLANO MÉDIO de Naiara e do rapaz sentados no sofá. Os dois olham em direção da janela. Naiara está
perplexa. O rapaz começa a gritar.
CORTE
CLOSE DE NAIARA
NAIARA – Bruno
CORTE
PLANO GERAL da janela da sala da mansão sem a vidraça. Bruno está em pé, no parapeito da janela.
BRUNO - O que é que você fez comigo, sua...Sua... Piranha do inferno!!
CORTE
PLANO MÉDIO do rapaz. Sua expressão é de pavor. Ele grita, aterrorizado, e foge...Pela mesma janela que Bruno entrou...
CORTE
PLANO GERAL de Naiara correndo para abraçar Bruno.
CORTE
PLANO MÉDIO de Naiara abraçando as pernas de Bruno (que continua em pé sobre a janela).Vê-se que Bruno só está com um pé de sapato...
ESCURECIMENTO
SEQUÊNCIA 60 - DELEGACIA DE HOMICÍDIOS - INTERIOR – DIA
CLOSE do pé de sapato que Bruno deixou na sepultura, sobre a mesa de Pacheco. CÂMERA CORRIGE até enquadrar em PLANO MÉDIO. Lucy e Ramon estão sentados diante da mesa do delegado Pacheco, que, mais urna vez, tenta afrouxar o colarinho antes de começar a falar.
PACHECO - (enquanto apanha o sapato) - Como vocês já devem saber dona Naiara nos autorizou a exumar o corpo do marido...
LUCY - Ela nos falou sobre a sua visita. Só não entendemos o porquê da exumação.
RAMON - O atestado de óbito foi claro: Bruno morreu de ataque cardíaco.
Pacheco passa a marcar suas palavras com "sapatadas" na mesa.
PACHECO - O problema é que, quando chegamos ao cemitério para completar nossa operação, a sepultura estava vazia...
LUCY - Ora, delegado, que absurdo.
PACHECO - A senhora não está me entendendo. O cadáver do seu irmão de-sa-pa-re-ceu! Só sobrou isso (mostrando o sapato).
Ramon também coça a sua cabeça, imitando o delegado.
RAMON – Mas quem estaria interessado em roubar o corpo de Bruno?
Pacheco pensa um pouco antes de responder, dedilhando sua gravata.
PACHECO – Isso, não sei... Mas acontece que duas pessoas, ou melhor, três se beneficiaram diretamente com esta morte.
Lucy olha intrigada para Ramon, e depois volta-se para o delegado.
LUCY – Como assim , o sr. disse “se beneficiaram” ?
PACHECO – Desculpe madame, mas não sou nenhum idiota: dona Naiara herdou toda a fortuna do seu irmão e a senhorita vai colocar a mão em um milhão de dólares do seguro!!!
Ramon se agita na cadeira, perguntando a Lucy.
RAMON – Como??? Você nunca me falou nisso, “Moranguinho”?
PACHECO – (sorrindo) – Por tabela, o distinto cavalheiro também vai ver a cor dessa grana!
O delegado fica sério e conclui o assunto.
PACHECO – Resumindo os fatos, a Companhia de Seguros suspeita que o sr. Bruno tenha sido assassinado!
MÚSICA SUBLINHA. Ramon e Lucy se entreolham...
SEQUENCIA 61 – BOATE – EXTERIOR – NOITE
PLANO GERAL de uma exótica boate. Várias figuras estranhas fazem fila na porta esperando a vez de entrar no show de JORGE MAUTNER.
SEQUENCIA 62 – BOATE – INTERIOR – NOITE
PLANO GERAL da pista de dança. Música “Estrlada Noire”. Sob a luz estroboscópica, as pessoas parecem se movimentar quadro a quadro. Tipos bizarros dançam como se estivessem em transe. Naiara demonstra interesse por uma jovem tão linda quanto ela. A jovem percebe o olhar de Naiara, e sorri para ela. Entre um piscar e outro da luz estroboscópica, Bruno aparece, como do nada, atrás da jovem...
SEQUENCIA 63 – PRÉDIO DE RAMON – EXTERIOR – NOITE
PLANO GERAL do prédio de Ramon.
SEQUENCIA 64 – SALA DO APARTAMENTO DE RAMON – INTERIOR – NOITE
Lucy está nos braços de Ramon. Os dois namoram no sofá. Lá fora, relâmpagos. Lucy parece dispersa.
RAMON – Que foi, “Moranguinho”?
LUCY – Telefonei para Naiara o dia inteiro... Ninguém atendeu...
RAMON – Não se preocupe, querida. Naiara está bem... O delegado ainda não contou pra ela que o corpo de Bruno desapareceu.
Lucy se afasta de Ramon.
LUCY – (chorosa) – Não fale assim, Ramon! Essa história não tem pé nem cabeça...
RAMON – Também acho, “Moranguinho”!
Ramon levanta as sobrancelhas...
RAMON – Por causa disto, agora viramos suspeitos de sua morte...
LUCY – (revoltada) – Não posso acreditar no que está acontecendo!
SEQUENCIA 65 – DA BOATE – EXTERIOR – NOITE
PLANO GERAL dos fundos da boate, que dão para uma viela escura e suja. CÂMERA NA GRUA se aproxima de Bruno, que a todo custo tenta manter quieta a mesma jovem da seqüência 60. A moça esperneia nos braços dele.
Seus gritos são abafados pelas mãos de Bruno... Naiara abre a porta do carro para o marido. Ele entra e arrasta a jovem para dentro à força. CÂMERA GRUA recua até mostrar o carro de Naiara partindo em PLANO GERAL.
CORTE
ROTATIVA DE JORNAL. MANCHETE: “SANGUE E TERROR NA NOITE DO RIO”.
SEQUENCIA 66 – DELEGACIA DE HOMCÍDIOS – INTERIOR – DIA
CÂMERA SUBJETIVA caminha pelo corredor da delegacia em direção a sala de Pacheco. O delegado está de costas para a porta.a câmera ENTRA. MÚSICA SE SUSPENSE.
CORTE
O delegado examina algumas fotografias de Naiara que está sobre a mesa. Inclusive as mais recentes, tiradas na Transilvânia.
CORTE
GRANDE PLANO das fotos.
CORTE
CÂMERA se aproxima de Pacheco por trás. O delegado comenta em voz alta consigo mesmo.
PACHECO - Tem vampiro na jogada!
CORTE
CÂMERA avança sobre Pacheco. Repentinamente. uma mão peluda entra em quadro e toca o ombro de Pacheco. O delegado pula.
CORTE
CLOSE de Pacheco.
PACHECO - Ah!!!
CORTE
CLOSE do delegado Servas.
SERVAS - Tá nervoso Pacheco!?
Pacheco estava tão distraído em seus pensamentos que assusta-se com a chegada de Servas. Coça a cabeça antes de responder todo atrapalhado.
PACHECO - Sim..Quer dizer..Não..Estava apenas conjecturando!
SERVAS - Ainda às voltas com a tal história do cadáver desaparecido?
Pacheco concorda com a cabeça. Servas apanha uma foto de Naiara sobre a mesa olhando-a com admiração.
SERVAS - Uma mulher e tanto... Diga-se de passagem. Agora entendo toda essa dedicação, Pacheco. Também quero entrar neste caso...
CORTE
GRANDE PLANO de uma fotografia do rosto de Naiara. ZOOM FECHA até seus misteriosos olhos ocuparem toda tela.
SEQUÊNCIA 67 - MANSÃO DE NAIARA - EXTERIOR – DIA
PLANO GERAL da casa de Naiara. Seu aspecto é sombrio como se jamais fosse banhada pelo sol. Embora dia, conserva-se soturna.
SEQUÊNCIA 68 - JARDIM DE INVERNO DA MANSÃO -INTERIOR – DIA
Naiara e Lucy tomam chá.
LUCY - Você está bem. Naiara?
Naiara não responde. Seu olhar continua enigmático...
NAIARA - Bruno não morreu...
LUCY - Do que você está falando?
NAIARA - Ele voltou...
Naiara aproxima-se de Lucy. passando a mão em seu braço.
LUCY’ (assustada) - Como assim?
CORTE
CÂMERA SUBJETIVA em direção à Lucy.
NAIARA (em off com voz sensual) - Venha Lucy...
SOM DE CAMPAINHA.
CORTE
A empregada interrompe Naiara.
ELISA - D. Naiara, O delegado Pacheco.
CORTE
Pacheco adentra o recinto.
NAIARA (em off) - Ah, o senhor novamente, delegado! Entre...
CORTE
Lucy passa as mãos pela cabeça, voltando a si.
NAIARA - O senhor já conhece Lucy, minha cunhada?
O delegado faz um gesto afirmativo com a mão.
PACHECO - Sim. claro. Como está, "Moranguinho"?
Naiara sorri...Lucy, se desculpando, aproveita a chegada providencial de Pacheco para ir embora.
LUCY(ainda meio tonta) - Não estou me sentindo bem...Preciso ir embora.
Naiara acompanha Lucy com os olhos. Lucy sai apressada. Pacheco reage intrigado.
SEQUÊNCIA 69 - MANSÃO DE NAIARA - EXTERIOR – DIA
Lucy sai apressadamente da casa de Naiara esbarra na horripilante figura do velho jardineiro. Ele mantém os olhos fixos sobre Lucy. Ela entra em seu pequeno carro esporte e arranca em seguida.
SEQUÊNCIA 70 - ESCRITÓRIO DE RAMON GONZALEZ - INTERIOR – DIA
Sentada no colo do patrão, Valquíria beija demorada mente Ramon...
SEQUÊNCIA 71 - JARDIM DE INVERNO DA MANSÃO DE NAIARA -INTERIOR – DIA
O delegado não fica nem um pouco à vontade diante de Naiara. que irradia sensualidade.
PACHECO - Espero que não tenha interrompido nada.
NAIARA - Imagine, delegado. O senhor está sempre se desculpando.
Naiara conclui a frase com um acento intencional de malícia.
NAIARA - Aliás, o que poderia estar interrompendo?
Após um breve silêncio, onde Naiara aproveita para estudar melhor Pacheco, ela pergunta com ironia.
NAIARA - Bem delegado, estamos aqui novamente. Da primeira vez, o senhor queria a minha autorização para exumar o corpo do meu marido. E agora, o que deseja?
Todo atrapalhado, o delegado passa o lenço na testa para ganhar tempo, sem saber como lhe dar a triste notícia. Naiara observa-o.
PACHECO - Perfeitamente madame. Como a senhora sabe, as investigações ainda não terminaram.. .Porquê. .. O falecido desapareceu!!!
Naiara sorri com malícia.
NAIARA - Não é fantástico? Bruno renasceu dos braços da morte para a vida eterna!
Desta vez é Pacheco quem arregala os olhos com as misteriosas palavras da viúva.
PACHECO - De maneira que a senhora poderia me ajudar a esclarecer alguns pontos que ainda estão obscuros em minha mente...E que talvez nos levem ao "morto-vivo"...Melhor, a encontrar o corpo do Sr. Bruno!
Naiara sorri sedutoramente, cruzando as pernas para provocar Pacheco. Ele fica ainda mais atrapalhado e sem saber o que fazer.
NAIARA - Então delegado, que tal um "Bloody Mary" antes de começarmos a conversar...Ou você não bebe em serviço, Pacheco?
Sempre maliciosa. Naiara observa as reações de Pacheco que suando muito, não tira os olhos de suas pernas.
PACHECO - Já que insiste, vou aceitar!
Naiara levanta-se mais sensual do que nunca, e se aproxima da CÂMERA até a imagem ESCURECER.
SEQUÊNCIA 72 - AUTOMÓVEL DELUCY - EXTERIOR – DIA
Com a fisionomia transtornada, Lucy dirige em disparada o seu carro esporte, alheia aos outros veículos que circulam na rua.
SEQUÊNCIA 73 - ESCRITÓRIO DE RAMON GONZALEZ - INTERIOR – DIA
Ramon limpa com um lenço branco o seu rosto sujo de batom. enquanto, sentada sobre a mesa, Valquíria ajeita o cabelo.
VALQUÍRIA - Quer dizer que você vai dar mesmo o "golpe do baú"?
RAMON - Não fale assim "kiki". Só porquê vou me casar com Lucy, você não precisa ficar com ciúmes!
VALQUÍRIA - Eu sei ...Afinal de contas, secretária só mata a fome na hora do lanche...E depois, não sou tão rica quanto a "Moranguinho"...
RAMON - Pare com isso Valquíria. você sabe muito bem que nada poderá nos separar.
Ramon termina de se limpar. Põe um pouco de spray para perfumar o hálito e puxa a jovem secretária para mais uma sessão de beijos.
SEQUÊNCIA 74 - BIBLIOTECA DA MANSÃO DE NAIARA - INTERIOR – DIA
Naiara volta trazendo as bebidas. Ela veste o mesmo robe de seda. Mais aberto, permitindo que o delegado veja também parte de seus seios... Pacheco levanta-se extasiado, olhando fixo para o ousado decote.
CORTE
CÂMERA FIXA do ponto de vista do delegado.
Naiara avança lentamente, encarando Pacheco e lhe oferece um dos cálices.
NAIAR - A que vamos brindar, delegado?
CORTE
CLOSE de Pacheco magnetizado pela linda mulher.
PACHECO - À sua "saúde", dona Naiara! Que "saúde"...
CORTE
Fazem o brinde e bebem. Sempre vigiada por Pacheco, Naiara chega até ele e passa suavemente a mão pela sua nuca.
NAIARA - Não fique nervoso, Pacheco. Se solte comigo...Pode me chamar de você! Eu vou lhe contar tudo o quer saber...
Com movimentos lentos e sensuais, Naiara afrouxa a gravata do delegado e depois ajuda-o a tirar o palitó.
NAIARA (aliciante) - Assim você vai se sentir muito melhor, bobinho...
CORTE
Os olhos de Naiara faiscam...
CORTE
PLANO DE LUA CHEIA. MÚSICA DE TERROR.
CORTE
Os lábios vermelhos e úmidos de Naiara aproximam-se do pescoço do delegado. Pacheco se mantém estático, enfeitiçado pela beleza demoníaca de Naiara. Ela abre lentamente a boca. pela primeira vez revelando os afiados caninos sedentos de sangue...
SEQUÊNCIA 75 - TRAVESSA DA CORUJA - EXTERIOR – DIA
CÂMERA NA GRUA focaliza do alto a pequena rua, ABAIXANDO à medida que o carro de Lucy avança e freia em frente a "Imperial Turismo", Lucy salta do carro, entrando rapidamente na agência.
SEQUÊNCIA 76 - ESCRITÓRIO DE RAMON GONZALEZ - INTERIOR – DIA
Ramon sentado à mesa olha com malícia para Valquíria, enquanto a secretária termina de passar seu baton. Valquíria tenta ser sensual, o barulho da porta sendo aberta desvia a atenção de Ramon para ver quem entra.
RAMON -(surpreso) - Lucy!
Ramon se levanta e contorna a mesa. Atrapalhada, Valquíria procura disfarçar.
CORTE
Lucy está transtornada. Ramon vem ao seu encontro.
RAMON - (apreensivo) - Lucy! Que aconteceu?
Ramon ajuda Lucy a sentar numa cadeira. Valquíria também procura ajudar.
RAMON - Você está bem?
LUCY - Agora, estou...
Lucy tenta disfarçar seu nervosismo na presença da secretária.
LUCY - Foi apenas um ligeiro mal-estar, querido.
VALQUÍRIA - Se precisar de alguma coisa é só chamar, "seu" Ramon...
Valquíria sai de quadro e. demonstrando estar com ciúmes do seu patrão, bate a porta com força (em off).
Ramon abaixa-se junto à cadeira em que Lucy está sentada. A CÂMERA avança até fazer um PLANO MÉDIO FECHADO do casal. Ramon acaricia as faces de Lucy segurando o seu rosto.
SEQUÊNCIA 77 - PORTA DO ESCRITÓRIO DE RAMON GONZALEZ - INTERIOR – DIA
CLOSE de Valquíria com a cabeça na porta do escritório. Ela escuta atentamente a conversa de Lucy e Ramon.
RAMON - (em ofl) - Por favor, “Moranguinho". Responde: o que foi que aconteceu?
LUCY - (em off, chorando) - Que loucura, Ramon...Não sei direito...Estou confusa. Naiara quis me agarrar...Foi horrível!
RAMON - (em off) - Do que você está falando?
LUCY - (em off se recompondo) - Nada, Ramon. Não sei...Acho que não aconteceu nada...
SEQUÊNCIA 78 - ESCRITÓRIO DE RAMON GONZALEZ - INTERIOR – DIA
CLOSE de Lucy, concluindo a frase anterior.
LUCY - ...Mas não sei o que teria acontecido se o delegado não chegasse a tempo...
CORTE
CLOSE de Ramon, intrigado.
RAMON - DELEGADO! Chegado aonde?
SEQUÊNCIA 79 - MANSÃO DE NAIARA - EXTERIOR – NOITE
O delegado Pacheco entra meio trôpego em seu velho carro, estacionado diante da casa de Naiara e arranca em seguida.
SEQUÊNCIA 80 - AUTOMÓVEL DE PACHECO - INTERIOR – DIA
Pacheco dirige em zigue-zague, dando sinais evidentes de que se encontra bastante perturbado. A todo momento passa as mãos pelo rosto, esfregando os olhos como se não enxergasse direito.
Em off a voz sedutora de Naiara.
NAIARA - (em off) - Eu vou lhe contar...
CORTE
FLAT SHOT de Naiara, que termina a frase.
NAIARA - Tudo o que deseja saber...
CORTE
Pacheco arregala os olhos como se Naiara estivesse realmente diante de si e solta a direção para passar novamente as mãos nos olhos.
PACHECO - Maldita!
CORTE
A visão de Naiara volta a persegui-lo em outro FLASH SHOT.
NAIARA - Você será meu para sempre!
CORTE
Pacheco faz uma curva fechada, passando em seguida. a mão pelo pescoço suado (do lado contrário à CÂMERA). CLOSE da mão suja de sangue...O que o deixa ainda mais assustado...
NAIARA - (em off COM CÂMARA DE ECO) - Para sempre...Sempre...Sempre...
SEQUÊNCIA 81 - SALA DA MANSÃO DE BRUNO - INTERIOR – DIA
FLASHBACK da sequência.
Naiara crava seus caninos no pescoço de Pacheco.
IMAGEM ESCURECE. GRITOS.
SEQUÊNCIA 82 - AUTOMÓVEL DE PACHECO - INTERIOR – DIA
Totalmente alucinado, o delegado começa a gritar e dar golpes no volante.
PACHECO -Não!
SEQUÊNCIA 83 - ESTRADA SINUOSA - EXTERIOR – DIA
Em alta velocidade, o carro de Pacheco sai desgovernado da estrada, caindo num precipício até explodir e incendiar-se.
SEQUÊNCIA 84 - PRÉDIO DERAMON GONZALEZ - EXTERIOR – NOITE
PLANO GERAL do prédio de Ramon.
SEQUÊNCIA 85 - BANHEIRO DO APARTAMENTO DE RAMON - INTERIOR – NOITE
Lucy ensaboa demoradamente o corpo durante o banho. Demonstra estar mais tranquila. A água tira a espuma de seus seios. Termina o banho, levanta-se e pega a toalha.
SEQUÊNCIA 86 - QUARTO DO APARTAMENTO DE RAMON – INTERIOR – NOITE
CÂMERA BAIXA mostrando em PRIMEIRO PLANO a parte de trás de um aparelho de tevê. Ao fundo, Ramon assiste ao telejomal "AQUI E AGORA" recostado na cama.
LOCUTORA - (em off) - E no início da noite. o delegado Wilson Pacheco morreu num acidente de carro...
Lucy entra no quarto se enxugando, a tempo de ouvir a notícia. Fica horrorizada.
LUCY - O DELEGADO PACHECO!?
Lucy desata a chorar. Ramon se levanta da cama com um pulo. Abraça Lucy na tentativa de confortá-la.
CÂMERA CORRIGE para a tela do televisor até enquadrá-la em GRANDE CLOSE. O repórter policial Gil Gomes comenta uma nova onda de crimes.
GIL GOMES - Sobe o número de vítimas que...
SEQUÊNCIA 87 - PRÉDIO DO PROFESSOR ASTRAKHAN - EXTERIOR – NOITE
PLANO GERAL do prédio do professor Astrakhan.
GIL GOMES - (em off) - ...Encontraram a morte...
SEQUÊNCIA 88 - SALA.DO APARTAMENTO DO PROF. ASTRAKBAN -INTERIOR- NOITE
GRANDE CLOSE da tela do aparelho de tevê.
GIL GOMES - ... Nos lábios da misteriosa vampira que espalha um rastro de sangue e terror pela cidade...
CÂMERA CORRIGE até enquadrar o professor Astrakhan e seu fiel discípulo em PLANO MÉDIO. Eles se preparam para enfrentar a vampira. Astrakhan coloca na valise várias estacas, crucifixo, alguns dentes de alho...Distraído, também tenta colocar seu gato preto, mas este grita e consegue se soltar a tempo!
SEQUÊNCIA 89 - MANSÃO DE NAIARA -INTERIOR – NOITE
PLANO MÉDIO de Naiara. Ela termina de arrumar-se diante do espelho (que não a reflete!).
BRUNO - (em off) - Vai sair outra vez, amor?
A pergunta deixa Naiara irritada.
CÂMERA CORRIGE para enquadrar Bruno, recostado num confortável caixão "de casal". Ele abaixa
a revista que tem diante do rosto e olha para Naiara.
BRUNO - Posso saber onde a senhora vai, dona Naiara?
CORTE
PLANO MÉDIO de Naiara, que vira em direção a Bruno.
NAIARA - (de saco cheio) - Iiihh, Bruno...Me deixar Hoje é sexta...Vou chupar sangue por ai! Você não vem?
CLOSE de Bruno.
BRUNO - (desdenhando) - Hoje não...Tô morto...
CÂMERA RECUA até enquadrar Bruno em PLANO MÉDIO. Naiara entra em quadro. Antes que Bruno tenha tempo para reagir, ela o empurra para dentro do caixão "de casal" e fecha a tampa.
NAIARA - Então boa noite, querido!
ESCURECIMENTO
SEQUÊNCIA 90 - AUTOMÓVEL DE ASTRAKHAN - INTERIOR – NOITE
CÂMERA DO PONTO DE VISTA DE ASTRAKHAN E SEU ASSISTENTE. A limusine negra de Naiara deixa a mansão.
ASTRAKHAN - (em off) – Não a perca de vista !
SEQUENCIA 91 – RUA DA MANSÃO DE NAIARA – EXTERIOR - NOITE
Astrakban salta do carro e bate à porta. CÂMERA NA GRUA SOBE até enquadrar o carro arrancando atrás de Naiara em PLANO GERAL. O professor, valise na mão, se dirige à entrada da mansão e a CÂMERA o acompanha.
SEQUÊNCIA 92 - ENTRADA DA MANSÃO - EXTERIOR – NOITE
Astrakhan se aproxima da porta da sinistra mansão. Ela se abre para ele misteriosamente. Mesmo assustado, o professor entra. A porta se fecha contra a CÂMERA.
SEQUÊNCIA 93 - ESTRADA DESERTA - EXTERIOR – NOITE
PLANO GERAL da limusine negra de Naiara cruzando velozmente uma rua deserta. O assistente do professor vem logo atrás.
SEQUÊNCIA 94 - SALA DA MANSÃO - INTERIOR – NOITE
O professor entra sorrateiramente na sala, certificando-se de que não há ninguém. Investiga cada objeto da casa. Parece procurar alguma coisa.
SEQUÊNCIA 95 - QUARTO DE RAMON - INTERIOR – NOITE
CLOSE dos pés de Astrakhan subindo a escada. O silêncio é quebrado pelo ranger dos degraus.
PLANO MÉDIO de Astrakhan. Ele está agarrado a sua valise, e olha continuamente para os lados.
SEQUÊNCIA 96 - CORREDOR DA MANSÃO - INTERIOR – NOITE
PLANO GERAL da porta do quarto de Naiara. O professor entra em quadro. Continua agarrado a sua valise. Se aproxima da porta lentamente.
CORTE
CLOSE da maçaneta da porta do quarto de Naiara. Mão de Astrakhan começa a girá-la. A porta abre...
SEQUÊNCIA 97 - QUARTO DA MANSÃO -INTERIOR – NOITE
PLANO MÉDIO de Astrakhan, de frente para a CÂMERA. Ele abre a porta do quarto e entra. O professor vê alguma coisa que o deixa horrorizado.
CLOSE de Astrakhan. O pânico toma conta de seu rosto.
CORTE
PLANO GERAL do caixão "de casal" fechado.
CORTE
CÂMERA DO PONTO DE VISTA DO TETO. Astrakhan se aproxima do caixão. Toma coragem e remove a tampa. Vê Bruno dormindo, com o jornal sobre o rosto.
CORTE
CLOSE de Astrakhan, assustado.
CORTE
PLANO MÉDIO de Astrakhan. O professor coloca sua valise sobre a mesa de cabeceira. remove, cuidadosamente, o jornal de cima de Bruno.
CORTE
GRANDE CLOSE de Bruno dormindo.
SEQUÊNCIA 98 - RUA DO TROTTOIR - EXTERIOR – NOITE
CÂMERA NA GRUA se aproxima do carro de Astrakhan. que está estacionado, até enquadrar o assistente do professor. em seu interior em PLANO MÉDIO. O discípulo de Astrakhan observa atento. Barulho da rua. Confusão. gritos. sirene de polícia. quebra-quebra.
CORTE
PLANO GERAL de uma esquina, do outro lado da rua. Naiara, ao dobrá-la, entra em quadro. A CÂMERA PASSA A ACOMPANHÁ-LA, NUM MOVIMENTO CONTÍNUO E LATERAL. Naiara caminha por uma caçada repleta de tipos mal-encarados, traficantes, gigolôs, prostitutas, travestis...Cruza por todos eles.
Na mesma rua, um grupo de "rappers" faz a trilha sonora para a SEQUÊNCIA e as que intercalam com ela. Um bêbado é atirado para fora de uma boate por um truculento segurança. Naiara se mistura com as prostitutas, e parece fazer ponto.
SEQUÊNCIA 99 - QUARTO DA MANSÃO -INTERIOR – NOITE
CONTINUA MÚSICA DA SEQUÊNCIA ANTERIOR. Astrakhan coloca a estaca no peito de Bruno.
CORTE
CLOSE dos olhos de Astrakhan
CORTE
CLOSE do martelo suspenso no ar.
CORTE
PLANO MÉDIO de Bruno dormindo no caixão. Astrakhan segura a estaca sobre o seu peito. O professor respira fundo e começa a descer o martelo.
CORTE
CLOSE de Bruno abrindo os olhos. MÚSICA ATINGE O CLÍMAX.
CORTE
PLANO MÉDIO de Bruno tentando ainda segurar a estaca. Astrkhan é mais rápido. Firma a estaca e desce o martelo, mas não consegue enterrá-la totalmente.
SEQUÊNCIA 100 - RUA DO TROTTOIR - EXTERIOR – NOITE
PLANO MÉDIO de Naiara. Naiara sofre um choque. Ela pára abruptamente. Parece sentir no próprio peito a estaca levada por Bruno. Naiara se contrai, abaixando a cabeça...
SEQUÊNCIA 101 - QUARTO DA MANSÃO - INTERIOR – NOITE
CLOSE de Bruno urrando.
CORTE
Astrakhan segura sua valise e recua, assustado.
CORTE
PLANO GERAL de Bruno com a estaca enfiada no peito. Contorcendo-se de dor, ele levanta e sai do caixão.
CORTE
Astrakhan continua recuando assustado.
CORTE
PLANO MÉDIO de Bruno, irado. Ele ergue as mãos em direção a Astrakhan, na intenção de agarrá-lo. Caminha de encontro à CÂMERA. Começa a fraquejar.
CORTE
PLANO GERAL de Bruno, à dois passos de Astrakhan. Bruno não resiste e cai de cara no chão. A estaca termina de atravessá-lo.
CÂMERA DO PONTO DE VISTA DO TETO. O corpo de Bruno se decompõe. Astrakhan observa.
CORTE
CLOSE de Astrakhan secando o suor do rosto com um lenço.
SEQUÊNCIA 102 - RUA DO TROTTOIR - EXTERIOR – NOITE
PLANO MÉDIO de Naiara contraída. Ela levanta a cabeça e olha para a CÂMERA transfigurada. Marcha furiosa em direção à CÂMERA.
CORTE
GRANDE CLOSE dos olhos de Naiara, duas bolas de fogo.
CORTE
PLANO GERAL de Naiara se dirigindo para o carro de Astrakhan , onde está o assistente do professor.
CORTE
CÂMERA SUBJETIVA DO PONTO DE VISTA DE NAIARA. Aproxima-se rapidamente do carro.
CORTE
CLOSE do assistente apavorado.
CORTE
PLANO GERAL de Naiara invadindo o carro pelo lado do carona.
SEQUÊNClA 103 - AUTOMÓVEL DE ASTRAKHAN - INTERIOR – NOITE
CLOSE do assistente tentando recuar, horrorizado.
CORTE
CÂMERA SUBJETIVA DO PONTO DE VISTA DO ASSISTENTE. Mostra Naiara entrando no carro.
CORTE
CLOSE de Naiara revelando os caninos.
SEQUÊNClA 104 - QUARTO DE RAMON - INTERIOR – NOITE
Ramon acorda assustado. Passa a mão no rosto suado. Trêmulo, acende a luzinha de cabeceira e se recosta na cama para fumar um cigarro. Lucy dorme ao seu lado.
APROXIMAÇÃO LENTA até GRANDE CLOSE de Ramon. Sua fisionomia é de profunda preocupação.
FLASHBACKS
SEQUÊNClA 48
O prof. Astrakhan encara a CÂMERA com uma expressão enigmática nos olhos.
ASTRAKBAN - Já lhe avisei que Naiara não é uma mulher comum...
SEQUÊNClA 37
Ao passar junto a um túmulo com uma grande cruz. Naiara ergue a pala do vestido, procurando ocultá-la de sua visão.
SEQUÊNClA 38
NAIARA - Vocês podem ir...Estou bem.
RAMON - Mas você não vai ficar sozinha neste casarão?
SEQCÊNCIA 73
LUCY - Nada, Ramon. Não sei... Acho que não aconteceu nada...Mas não sei o que teria acontecido se o delegado não chegasse a tempo...
CORTE
CLOSE de Ramon, que termina de fumar o cigarro.
GIL GOMES (em off com CÂMARA DE ECO) - Sobe o número de vítimas que encontram a morte nos lábios da misteriosa vampira que espalha um rastro de sangue e terror pela cidade...
SEQUÊNCIA 48
ASTRAKHAN - Ela é a própria filha de DRÁCULA.
CORTE
CÂMERA RECUA LENTAMENTE até enquadrar Lucy, que continua dormindo. Ramon apaga o cigarro. ESCURECE.
OBSERVAÇÃO: Os flashbacks de Ramon muitas vezes estão modificados em relação às sequências a que pertencem, pois ele recorda somente o que levanta suspeita em relação à Naiara.
SEQUÊNCIA 105 - RUA DO PRÉDIO DE ASTRAKHAN - EXTERIOR - NOITE
PLANO GERAL de Astrakhan chegando de taxi. O professor salta do veículo e vê, surpreso, seu carro parado em frente ao prédio onde mora. Astrakhan entra no prédio.
SEQUÊNCIA 106 - SALA DO APARTAMENTO DE ASTRAKHAN - INTERIOR – NOITE
Valise na mão, o professor entra em casa chamando pelo assistente. Não tem resposta. Astrakhan fica desconfiado. Olha para o sofá e vê seu gato. O animal, estranhamente, ruge para ele! O professor agarrado a sua valise, recua e observa que suas paredes estão cobertas por estranhos sinais e seus quadros: tortos, foram retalhados por garras. Volta a olhar para o sofá e vê Naiara.
CORTE
PLANO MÉDIO de Naiara sentada no sofá. A CÂMERA se aproxima até enquadrar. seu rosto em CLOSE.
NAIARA - Você vai se arrepender de ter cruzado meu caminho, professor!
CORTE
Astrakhan reage, tentando abrir a valise.
CORTE
CLOSE das mãos de Astrakhan tentando em vão, abrir a valise.
CORTE
CLOSE de Astrakhan. Sua expressão é de completo pavor. Ele recua até a CÂMERA enquadrá-lo em PLANO MÉDIO. Naiara entra em quadro, de costas para a CÂMERA e avança sobre Astrakhan.
ASTRAKHAN - Afaste-se, maldita! Afaste-se!! Ah!!!
CORTE
Sobre a parede estão projetadas as sombras do professor sendo atacado por uma enorme fera. Sons animalescos.
SEQUÊNCIA 107 - QUARTO DE RAMON - INTERIOR – NOITE
Ramon recostado na cama, liga para Astrakhan. Lucy ainda dorme. O telefone toca, mas ninguém atende.
SEQUÊNCIA 108 - CORREDOR DO PRÉDIO DO PROFESSOR - INTERIOR – DIA
Uma velha passa diante da porta do apartamento de Astrakhan. O telefone não pára de tocar em seu interior.
A mulher aproxima-se da porta e descobre que ela está apenas encostada. O telefone continua chamando e a velha empurra aporta.
VELHA - "Seu" Astrakhan!
Ninguém responde e o telefone pára de tocar. A mulher dá outra empurradinha na porta.
VELHA - Professor! O senhor está aí?
Estranhando o silêncio, a velha entra cautelosamente no apartamento. A CÂMERA permanece fixa, focalizando a porta. Após alguns instantes, escuta-se um grito de mulher... Enquanto a imagem ESCURECE.
SEQUÊNCIA 109 - RUA DO PRÉDIO DO PROFESSOR - INTERIOR - DIA
Do interior do carro, Ramon vê uma ambulância e várias viaturas policiais estacionadas em frente ao prédio de Astrakhan.
SEQUÊNCIA 110 - APARTAMENTO DO PROF.ASTRAKHAN - INTERIOR - DIA
Na porta, um aglomerado de jornalistas, fotógrafos, vizinhos curiosos, barrados por um forte guarda.
CORTE
No interior do apartamento, vários policiais transitam de um lado para outro. Há sangue pelas paredes e marcas de garras por todos os lados. O delegado Servas comanda as investigações.
CORTE
O detetive Tarzã chega trazendo o porteiro. Este olha para o professor estirado no assoalho.
PORTEIRO - Morreu?
SERVAS - Conversa com ele para ver se ele te responde...
PORTEIRO - Hãaa?
O delegado impaciente, se dirige ao velho porteiro.
TARZA - Fala alto, que ele é meio surdo...
SERVAS - Tem idéia de quem possa ter feito isso?
CORTE
Ramon interrompe esbaforido, enquanto força sua entrada através da pequena multidão que se forma na porta do apartamento.
RAMON - Foi a filha do DRÁCULA!
CORTE
CLOSE de Servas
SERVAS - Como é que é o negócio?
CORTE
Ramon se ajeita, já totalmente desvencilhado da confusão da porta e dentro do apartamento.
RAMON -Foi aquela Naiara...Aquela Vampira! Claro que foi ela, tenho certeza... (toma fôlego)matou o delegado e agora o professor.
CORTE
Servas e Tarzã se entreolham, atordoados.
CORTE
Ramon acena com a cabeça num sinal característico de que tem certeza do que está falando.
ESCURECIMENTO
SEQUÊNCIA 111 - QUARTO DE RAMON - INTERIOR - NOITE
A CÂMERA APROXIMA-SE LENTAMENTE de Lucy, que dorme tranqüilamente, até GRANDE CLOSE de seu rosto. Em off, a voz de Naiara.
NAIARA (em off fala baixinho) - Lucy...Lucy...
Os olhos azuis de Lucy abrem-se atendendo ao "chamado" de Naiara. Enquanto a imagem ESCURECE.
SEQUÊNCIA 112 - DELEGACIA DE HOMICÍDIOS - INTERIOR - DIA
CÂMERA desce sobre Ramon prestando depoimento a Servas e a outro investigador.
RAMON (transtornado):- Na Transilvânia já foi assim. Ela vampirizou o marido... Tentou vampirizar minha mulher...O professor me alertou, mas eu não acreditei. Ela gosta de sangue, delegado!
SERVAS (intrigado) - O senhor acha que estou aqui para brincadeiras!? Sr.Gonzalez, ou o senhor pára de dizer asneiras ou vai passar noite em cana!
Tarzã chega e faz um sinal para Servas. O delegado levanta e vai conversar com o detetive num canto da sala.
TARZÃ - O legista falou que a arcada coincide mesmo com a do professor.
SERVAS - E a ficha desse elemento, aí?
TARZÃ - Esse é louco mesmo. Tem psicose de vampiro, doutor. Até excursão pra Transilvânia esse cara já fez!
Tanto o delegado quanto o detetive olham para Ramon. no fundo da sala. Ele continua falando e gesticulando sem parar.
CORTE
PLANO MÉDIO de Ramon levando "uma prensa" do outro investigador.
INVESTIGADOR - Malandro, agora que o doutor não está ouvindo; conta pra mim como é que você metralhou o velhinho.
RAMON - Mas eu já não disse que foi a Filha do Drácula.
INVESTIGADOR - Tá certo, bonitão...
SEQUÊNCIA 113 - TAXI - EXTERIOR – DIA
No banco de trás de um taxi, Lucy, com um estranho sorriso nos lábios e olhos hipnotizados, é observada pelo motorista através do espelho retrovisor. EM OFF, mais uma vez a voz de Naiara canta junto ao vento.
NAIARA (em off com voz sensual) - Lucy...Lucy! Nuvens carregadas prenunciam um forte temporal.
SEQUÊNCIA 114 - DELEGACIA DE HOMICÍDIOS - INTERIOR – NOITE
Servas e Ramon caminham pelo corredor da delegacia. Tarzã, mais atrás os acompanha.
SERVAS - Em memória do falecido Pacheco, dessa vez eu vou te liberar. Ele também achava que tinha vampiro na jogada!
Servas e Ramon param no meio do corredor. Tarzã também. O delegado põe a mão no ombro de Ramon.
SERVAS - Irmãozinho, faz o que eu tô te dizendo: compra um alho e vai para casa...
SEQUÊNCIA 115 - DELEGACIA DE HOMICÍDIOS - EXTERIOR – DIA
PLANO GERAL de Ramon saindo da delegacia.
SEQUÊNCIA 116 - DELEGACIA DE HOMICÍDIOS - INTERIOR – DIA
Servas e Tarzã continuam parados no corredor. O delegado faz um sinal para Tarzã. O detetive se aproxima.
SERVAS - Olho vivo nesse aí!
SEQUÊNCIA 117 - RUA DA MANSÃO DE NAIARA - EXTERIOR – DIA
o taxi pára em frente à mansão de Naiara. Lucy paga a corrida. O motorista, é na verdade, o antigo assistente de Atrakhan vampirizado (ele tem dois "Band-Aids" no pescoço, sobre a mordida). Lucy salta, fecha a porta do carro e se dirige para a entrada da Mansão. O tempo fechado faz com que o dia pareça noite...
SEQUÊNCIA 118 - QUARTO DA MANSÃO - INTERIOR – DIA
Naiara parece dormir em seu caixão, MÚSICA DE SUSPENSE.
SEQUÊNCIA 119 - PORTA DA MANSÃO - EXTERIOR – DIA
Lucy se aproxima da porta e toca a campainha. Ninguém responde, depois de algum tempo a pesada porta da mansão se abre sozinha para ela. Lucy entra.
SEQUÊNCIA 120 - AGÊNCIA "IMPERIAL TURISMO” - INTERIOR – DIA
Ramon entra esbaforido em sua agência. Valquíria leva um susto.
VALQUÍRIA - Que houve, Ramon?
RAMON - Nada, nada...Ligue já para Lucy, Valquíria!
Valquíria torce o nariz e começa a fazer a ligação. Ramon entra no escritório e bate a porta.
SEQUÊNCIA 121 - SALA DA MANSÃO DE NAIARA - INTERIOR - DIA
O clima de suspense é acentuado pela MÚSICA. Lucy parece não estar mais em transe. Ela entra na casa sombria chamando por Naiara. Não há resposta.
CORTE
CLOSE de Lucy, ligeiramente assustada, caminhando pela sala da mansão em direção à escada. Uma mão sai do canto da tela e puxa Lucy para fora do quadro. O grito de Lucy é abafado.
SEQUÊNCIA 122 - QUARTO DA MANSÃO - INTERIOR - DIA
CLOSE dos olhos de Naiara se abrindo de repente. CÂMERA RECUA e mostra Naiara se levantando do caixão.
SEQUÊNCIA 123 - ESCRITÓRIO DE RAMON -INTERIOR - DIA
Ramon está uma pilha de nervos. Fala com Valquíria pelo telefone.
RAMON (ao telefone) - Como é que é, Valquíria ? Já conseguiu ligar para Lucy?
SEQUÊNCIA 124 - AGÊNCIA "IMPERIAL TURISMO” - INTERIOR - NOITE
Sentada em sua mesa, Valquíria lixa as unhas enquanto responde a Ramon.
VALQUÍRIA (ao telefone) - Ninguém responde...Ela deve ter ido para casa da Naiara. Quer que ligue pra lá?
SEQUÊNCIA 125 - ESCRITÓRIO DE RAMON - INTERIOR - DIA
Ramon parece ter levado um choque. Afasta o telefone do ouvido.
RAMON (apavorado) - Naiara...
VALQUÍRIA (pelo telefone, em off) - Alô, alô...
SEQUÊNCIA 126 - BIBLIOTECA DA MANSÃO DE NAIARA - INTERIOR - NOITE
Lucy está em prantos. Naiara dá um castigo exemplar em seu jardineiro.
LUCY (chorando) - Ele tentou me agarrar...
Naiara chicoteia o velho jardineiro, impiedosa. O empregado geme e suplica o perdão da patroa. A violência de Naiara assusta mais Lucy. O jardineiro sai rastejando. Naiara lança o chicote e abraça Lucy.
NAIARA - Tudo bem, querida. Já passou, já passou...
CORTE
CLOSE de Naiara abraçada a Lucy. Lucy está de costas para a CÂMERA. Naiara não resiste a proximidade do pescoço de Lucy e arreganha os dentes.
CORTE
CLOSE de Lucy abrindo os olhos. Ela vê alguma coisa que a apavora. Grita e se afasta de Naiara.
CORTE
CLOSE de Naiara tentando cravar os dentes em Lucy sem sucesso.
CORTE
PLANO GERAL de um grande espelho na parede. A imagem de Lucy é refletida nele, mas não a de Naiara.
LUCY (olhando para o espelho, apavorada) - Você não reflete no espelho?!
NAIARA (em off. debochado) - Agora que você notou. "Moranguinho"?
CORTE
CLOSE de Naiara. Ela parece possuída. Ri para Lucy, mostrando os afiados caninos. Caminha em direção à CÂMERA.
CORTE
CÂMERA SUBJETIVA DO PONTO DE VISTA DE NAIARA se aproxima de Lucy. Lucy recua apavorada. Naiara chega mais perto. Lucy continua recuando, de frente para a CAMERA. Pensa estar encurralada, mas atrás dela há uma porta. Sem nunca dar as costas para andar, Lucy abre a porta, entra rapidamente e a bate contra a CÂMERA. Ouve-se Naiara gargalhar em off'.
SEQUÊNClA 127 - AUTOMÓVEL DE RAMON - INTERIOR – NOITE
Transtornado, Ramon dirige feito um louco em direção à mansão de Naiara.
SEQUÊNClA 128 - VIATURA POLICIAL - INTERIOR - NOITE
O detetive Tarzã fala no rádio do carro, enquanto dirige.
TARZÃ - Delegado, tô na cola do nosso "vampiro". Ele parece que destrambelhou de vez!
SEQUÊNClA 129 - RUA DA MANSÃO - EXTERIOR - NOITE
Automóvel de Ramon estaciona em frente à mansão.
SEQUÊNCIA 130 - VIATURA POLICIAL -INTERIOR - NOITE
Tarzã vê, intrigado, Ramon saindo do carro e entrando na mansão de Naiara. Fala pelo rádio.
TARZÃ - O elemento acaba de entrar na casa da tal de Naiara, delegado. A atitude dele é meio suspeita; não sei não! Acho melhor o senhor vir pra cá.
SEQUÊNCIA 131 - SALA DA MANSÃO - INTERIOR - NOITE
Ramon não consegue disfarçar o medo em seu rosto. Ele entra na sala com cautela chama por Lucy baixinho. Ramon passa por ela e nem a percebe. Lucy está estranhamente calma e pálida. Ao notar sua presença, Ramon se assusta.
RAMON (recuperando-se do susto) - Graças a Deus que você está bem "Moranguinho"!
Ramon abraça Lucy, que não esboça nenhuma reação, e continua falando.
RAMON (preocupado) - Onde está Naiara? Precisamos sair daqui logo, Lucy! (sussurrando) Naiara é uma vampira!
Enquanto fala, Ramon tenta arrastar Lucy para fora da mansão. Ela não se mexe. Ramon se volta, intrigado, para Lucy.
RAMON - Você está bem, "Moranguinho"?
CORTE
CLOSE de Lucy, que sorri para Ramon mostrando os dentes de vampira!
CORTE
CLOSE de Ramon horrorizado.
RAMON - MEU DEUS!!!
SEQUENCIA 132 - PORTÃO DA MANSÃO - EXTERIOR – NOITE
O detetive Tarzã e o delegado Servas estão parados em frente à entrada da mansão. Os dois entram preocupados.
TARZÃ - Doutor, precisava ver como ele entrou. Parecia um louco!
SERVAS - Imagino...A filha do DRÁCULA, era só o que me faltava!
TARZÃ - Doutor. acho melhor a gente entrar. O clima lá meio sinistro.
SERVAS- - É, também tô achando (EM TOM DE BRINCADEIRA) trouxe o crucifixo?
TARZÃ - Ô doutor, não brinca com essas coisas.
SEQUÊNCIA 133 - BIBLIOTECA DA MANSÃO - INTERIOR – NOITE
Ramon recua apavorado. Lucy avança sobre ele, mostrando os dentes. Ramon caminha para trás e acaba esbarrando em Naiara. Ele se vira, assustado.
NAIARA - Que surpresa, Ramon...Você por aqui?
RAMON (revoltado) - Maldita, o que é que você fez com "Moranguinho"?
Ramon está cercado pelas duas vampiras. Ramon recua na direção do jardim de inverno. Lucy se aproxima dele. Ela não parece mais uma vampira e deixa Ramon confuso.
LUCY - Que foi, Ramon...Não reconhece mais o seu "Moranguinho"?
Atordoado. Ramon continua andando para trás até esbarrar numa cômoda.
LUCY - Junte-se a nós, amor. Vem pro caixão você também!
RAMON - NUNCA!
CORTE
CLOSE de uma das mãos de Ramon tateando sobre a cômoda. Próxima a ela está uma tesoura.
CORTE
CLOSE de Lucy transfigurada. Ela avança sobre Ramon com os dentes à mostra.
CORTE
CLOSE da mão de Ramon pegando a tesoura.
CORTE
PLANO MÉDIO de Ramon cravando a tesoura no peito de Lucy.
CORTE
CLOSE de Lucy sentindo o golpe.
CORTE
Naiara se prepara para atacar Ramon.
SEQUÊNCIA 134 - JARDIM DA MANSÃO - EXTERIOR – NOITE
Pela janela da biblioteca. Servas e Tarzã vêem Ramon enfiar várias vezes a tesoura no peito de Lucy. Tarzã atira em Ramon, quebrando a vidraça.
SEQUÊNCIA 135 - BIBLIOTECA - INTERIOR – NOITE
Ramon cai morto. Sobre ele, Lucy.
CORTE
Naiara leva as mão dramaticamente á cabeça - representando - e desmaia enquanto a imagem ESCURECE.
SEQUÊNCIA 136 - QUARTO DE NAIARA - EXTERIOR – DIA
Várias viaturas da policiais, ambulâncias e carros da imprensa estão parados diante da casa de Naiara. que mantém a sua aparência sombria, apesar do tempo ter melhorado. Investigadores, repórteres e curiosos se movimentam por todo lado. Bombeiros levam os corpos cobertos por plástico negro.
SEQUÊNCIA 137 - SALA DA MANSÃO - INTERIOR – DIA
Sentada no sofá, Naiara recebe os cuidados do médico que lhe entrega um copo d'água. Naiara toma o comprimido e segura o copo apoiado na coxa, com as pernas cruzadas.
Alguns policiais ainda transitam pela casa. O delegado Servas aproxima-se e puxa uma cadeira perto de Naiara. Fica perturbado com a sua irresistível beleza...O médico afasta-se e Servas fala num tom delicado.
SERVAS - Fico feliz de poder conhecê-la pessoalmente...Agora entendo porquê o delegado Pacheco se empenhava tanto neste caso...
NAIARA - Quanto mais depressa terminarmos isso tudo, melhor.
SERVAS - Tudo bem, dona Naiara. Podemos colher o seu depoimento outro dia: ..Em linhas gerais. o caso já está resolvido. Só falta apenas esclarecermos alguns detalhes.. .
Naiara bebe um gole d'água encarando o delegado.
NAIARA (sempre maliciosa) - Pode me perguntar tudo o que o senhor desejar saber...
Servas mostra-se um pouco incomodado com a atitude de Naiara e procura afrouxar o colarinho (imitando o falecido colega).
SERVAS - Não há necessidade de formalizarmos o seu testemunho hoje... Ramon Gonzalez era na verdade um perigoso psicopata!
Nem Naiara parece acreditar no que está ouvindo.
NAIARA - Ah, é!?
SERVAS - Sim, Já estávamos atrás dele há muito tempo!
Naiara cobre o rosto para disfarçar o riso e finge estar chorando. Servas tenta acalmá-la.
SERVAS - Tudo vai ficar bem agora d.Naiara...
Naiara - sempre representando - se recompõe.
NAIARA - Eu sei...Eu sei, delegado.
Naiara levanta-se, seguida pelo delegado. Apenas Tarzã aguarda Servas. Eles caminham para a porta.
NAIARA - Adeus, delegado. Espero que suas teorias estejam certas, e esse terrível pesadelo tenha realmente acabado...
O aperto de mão e olhar de Naiara perturbam o delegado.
SERVAS - Se a senhora lembrar de mais alguma coisa, pode me telefonar...
NAIARA (dócil) - Claro, doutor.
SERVAS - Amanhã, à tardinha, passarei por aqui para concluirmos as investigações...Até logo dona Naiara...
Naiara fecha a porta, enquanto a imagem ESCURECE.
SEQUÊNCIA 138 - NECROTÉRIO - INTERIOR – NOITE
PLANO GERAL de uma sala onde vários cadáveres cobertos por plásticos estão deitados sobre mesas.
CÂMERA NA GRUA se aproxima de um deles até enquadrá-lo em PLANO MÉDIO subitamente um corpo levanta...É Lucy!!!
SEQUÊNCIA 139 - MANSÃO DE NAIARA - EXTERIOR – NOITE
Um violento raio rasga o céu.
CORTE
PLANO GERAL da casa de Naiara - mais fantasmagórica do que nunca - envolta por uma misteriosa neblina e iluminada por relâmpagos. Em off, alguns cachorros começam a uivar como lobos famintos.
SEQUÊNCIA 140 - SALA DA MANSÃO DE NAIARA - INTERIOR – NOITE
O interior da mansão também foi invadido pela espessa neblina Naiara, com os cabelos soltos, lábios extremamente vermelhos e um elegante "soirée" negro, desce a escada fantasticamente iluminada pela luz dos relâmpagos.
A CAMPAINHA SOA.
Naiara parece flutuar sobre a névoa, atravessando a sala em direção a sala, em direção à porta sob o ronco dos trovões e uivos dos cães.
SEQUÊNCIA 141 - PORTA DA MANSÃO DE NAIRA - EXTERIOR – NOITE
CLOSE da estranha mão de um homem - com dedos longos e um grande anel oval de pedra vermelha, contrastando com sua cor bastante pálida - toca novamente a campainha.
CORTE
CÂMERA DO PONTO DE VISTA DO ESTRANHO VISITANTE.
PLANO MÉDIO da porta, que abre com uma lufada de vento frio. Naiara, exuberante com sempre, aparece na porta e sorri emocionadamente para o visitante. . .
NAIARA - Fez boa viagem. papai?
CORTE
Sorrindo, o Conde DRÁCULA avança em direção à CÂMERA.
SEQUÊNCIA 142 - CEMITÉRIO - EXTERIOR – NOITE
Os créditos finais de "Naiara, a Filha de Drácula "sobem sobre imagens que mostram as vítimas da vampira levantando de suas sepulturas como mortos-vivos espalhando o horror pela cidade...Entre eles o Delegado Pacheco todo carbonizado.
FIM
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"A MULHER INSETO"
argumento
Prólogo
Quando o mordomo chegou pela manhã, encontrou a biblioteca aberta, mas não de uma forma normal. Parecia que a porta havia sofrido um terrível impacto à altura da fechadura.
No interior reinava uma desordem incrível e o corpo do hóspede jazia junto a uma pequena poça de sangue. Sangue que havia escorrido de um ferimento na garganta do homem.
Sem perda de tempo o mordomo correu para o pavimento superior. Seu patrão também estava morto. No mesmo instante foi para um segundo quarto, o de dona Rachel. O quarto estava vazio, embora a cama estivesse desfeita...
Primeira Parte: A Carta
O início dos espantosos acontecimentos... Quando, oh meu Deus ? Que força imperiosa lança-nos contra o imponderável ? O destino, ou seja lá o que for, vai tecendo em torno de nós uma série de acontecimentos e somos demasiadamente impotentes para repelir isto ou aquilo. E, foi o que me sucedeu. Mesmo sabendo que deveria fugir daquela casa, abandonar estas paragens, uma força oculta prendia-me qual uma profunda raiz fincada nas entranhas da terra. Sim, era isso, a casa prendera-me em suas entranhas...
O início dos espantosos acontecimentos, dizia. Quando ? A semana passada ? O mês passado ? Para mim pouco significado tem o tempo. Quando estamos na iminência do fim, o tempo passado deixa de nos preocupar. Talvez tenha sido há dez dias, ou quem sabe, há vinte...
Naquele dia levantei-me sem disposição de ir ao escritório. Pedira a Laura que, me preparasse uma refeição ligeira e passaria o resto do dia em meu apartamento. Laura era a velha que, todas as manhãs limpava a casa e fazia o meu café.
Na copa encontrei o café e, como sempre, os jornais do dia.
"Doutor Marcos, chegou esta carta. Estava na caixa do correio com os jornais".
Laura mostrava-me um envelope. Estranhei. Geralmente, minha correspondência era endereçada ao escritório; poucos conheciam o meu endereço residencial. De início não reconheci a letra. Sem dúvida, quem escrevera aquelas palavras deveria estar numa tremenda tensão nervosa...
"Meu caro amigo,
Há muito que estou para escrever-lhe, mas os multiplos afazeres diários tem-me tomado o tempo e, mesmo agora, escrevo-lhe da agencia do correio. Tenho muitas coisas para contar, sei que, também é muito ocupado, mas, por favor, venha... Preciso de você”...
Devo ter ficado muito tempo imóvel, segurando aquela folha de papel de forma irregular, entre meus dedos trêmulos. Digo trêmulos, porque uma estranha emoção invadira-me. Ricardo Bragança era quase como um irmão... Estava assim, num emaranhado de pensamentos, sem saber exatamente como interpretar aquele apelo, quando ouvi a voz de Laura:
"Dr.Marcos, o senhor esqueceu do seu café" ?
Voltei a realidade. Tomei, apenas, um gole de café, acendi um cigarro e comecei a me encaminhar para a sala de estar.
Aquela carta, em papel irregular e escrita numa agencia de correios, aquela caligrafia trêmula, indecisa, tudo revelava um apelo desesperado de quem está em grande perigo, ou, o que é mais terrível, invadido de apreensão nervosa, certamente as portas da loucura. Não sei por que, tudo isso passou pela minha mente ? Ricardo era um homem organizado e numa situação normal, jamais, agiria daquela maneira... Ele sempre primou pela etiqueta e cada ato seu, era executado de forma irrepreensível. Como interpretar aquela carta, em que sua letra não ia além de simples rabiscos, escritos com pavor... Escritos às ocultas, numa agencia de correios ?
Ricardo e eu fizemos o curso de Direito juntos. Embora fosse dotado de grande inteligência, não posso afirmar que, ele tivesse feito um curso brilhante. Pelo contrario, em muitas ocasiões encontrei-o embaraçado. O Direito nunca fora o seu ideal. "Faço-o, apenas, para ter um diploma", costumava dizer. Ricardo era vítima das circunstâncias.Tinha grande paixão pela entomologia e gostava de estudar insetos, fato que, chegava a ser, quase, uma obsessão.
Mesmo depois de formados, passamos a nos encontrar regularmente; era tradicional o nosso jantas às sextas feiras. Acontecesse o acontecesse, nenhum de nós faltava ao encontro. Ali, conversavamos, e as vezes, sobre casos profissionais.
Até que, certa noite, ele mostrou-me uma carta da Universidade de Paris, que estava interessada em seus estudos entomológicos ! Ricardo havia escrito uma pequena monografia sobre insetos tropicais desconhecidos e ele mesmo fez a versão para o frances. Aquele convite o entusiasmara. Finalmente, alguém se interessava pelo seu trabalho, trabalho obscuro, embora o seu nome figurasse, quase, semanalmente nos suplementos científicos e culturais, assinando artigos especializados.
Alguns meses mais tarde, ele embarcou para Europa, e, de lá, enviava-me assiduamente cartas e postais, narrado todos os seus passos:
"Imagine que, arrumei, até, uma namorada"..., revelou-me certa vez. "Uma mistura de francesa com inglesa" !
Ricardo casou-se e nossos encontros, depois do seu regresso, foram se tornando esporádicos. Ele, já não era o mesmo. Não seria capaz de dizer o que havia mudado, mas, sentia que não era mais o mesmo. Aquele bom amigo de outrora estava diferente. Falava raramente da esposa e quando o fazia, era para afirmar que era uma pessoa dotada de grande inteligência e rara beleza. Parecia feliz. Mas, ao mesmo tempo, seus olhos tinham um brilho estranho e uma inquetação parecia invadir todo o seu ser...
E agora, depois de mais de um ano, eis a carta... Na qual, ele suplica a minha presença em sua casa. Convite que, nunca me fizera. Por que...
Lembro-me que, apenas uma única vez, mencionara a sua casa: disse-me que, havia herdado uma mansão, no litoral, que, fora adquirida por um de seus antepassados e que, era conhecida pelo curioso nome de "A casa do Promontório"!
Esta foi a única vez que, fez alguma alusão à sua residência... Jamais, me convidou para visitá-lo, não só para conhecer a casa, como também a sua esposa... Certa ocasião, em um dos nossos últimos encontros, ao apanhar os óculos, no bolso interno do paletó, ele deixou cair a carteira e, na queda se espalharam alguns documentos, entre eles, uma fotografia... Ao recolhe-los, não pude deixar de ver a foto. Foi, somente, assim que travei conhecimento de sua linda e jovem esposa...
"Minha esposa", disse-me, mais como justificativa do que outra coisa. Foi só.
Todas essas recordações assaltaram-me após a leitura daquela estranha carta, ou melhor, bilhete. Algo grave, muito grave deveria estar ocorrendo com ele. Talvez, alguma moléstia. De modo algum, eu deveria desampará-lo, fosse o que fosse...
Imediatamente, telefonei para o escritório e transmiti um breve recado à minha secretária, instruindo-a para que não assumisse nenhum compromisso, até, a minha volta.
As treze horas embarcava rumo ao litoral. Desde a chegada da carta, até, aquele momento, não conseguia pensar em outra coisa que, não fossem as recordações do meu grande amigo Ricardo Bragança...
Fui despertado das minhas divagações pelo inspetor do trem que, passou anunciando a próxima parada e que, era, também, a minha. Peguei a mala e me preparei para saltar...
Segunda Parte: "A Casa do Promontório"
A estaçãozinha estava, quase deserta. Deduzi que, aquela hora, talvez, não fosse natural a chegada de visitantes, pois não consegui contar mais que, tres carregadores, e, um deles dirigiu-se a mim solicito:
"Permita-me levar a bagagem, senhor" ?
Perguntei se conhecia bem a região. Pela sua resposta afirmativa, pedi-lhe informações sobre "A Casa do Promontório"...
"Quem não a conhece, senhor ? Qualquer cocheiro que, esta lá fora, poderá leva-lo" !
Dizendo isso, apanhou a mala de minha mão e conduziu-me, até, um dos coches estacionados, em frente da estação
O pequeno coche corria pela estrada. A principio por uma estrada pavimentada, depois entramos por um atalho de terra. À medida que o coche avançava pela estrada, começei a ouvir o ruído do mar e, lá adiante, percebi a linha da costa. Andamos cerca de meia hora, depois o coche começou a se afastar do mar subindo por um caminho que, serpenteava, entre rochas. De repente o cocheiro fez alto:
"Só posso traze-lo, até aqui, senhor"...
"Até aqui ? Mas, nem sequer sei , onde fica a casa"...
"Ao chegar, naquela curva" - apontou uma curva a uns duzentos metros adiante -, "o senhor, poderá vê-la" !
Resignado, paguei a corrida, apanhei a mala e comecei a andar na direção indicada pelo cocheiro. Não havia caminhado uns vinte passos, quando, o ouvi chamar... Voltei-me e reparei que, ele me fitava com ar de compaixão, ao dizer:
"Se, eu fosse o senhor, não iria para aquela casa"...
Antes que, eu pudesse dizer alguma coisa, ele se afastava em alta velocidade, fazendo estalar o chicote. Permaneci, alguns instantes observando o carro negro que, se afastava levantando um nuvem de poeira. Fiquei um tanto intrigado... O que, ele tencionara dizer com aquela misteriosa observação: " Se, eu fosse o senhor, não iria para aquela casa" ?
Dei de ombros e reiniciei minha caminhada. Atravessei uma estreita ponte sobre um riacho. Ao atravessá-la, foi como se toda a temperatura mudasse de uma só vez. Sentia muito frio, a tal ponto que, tive de vestir a capa de chuva e, para proteger-me do vento, levantei sua gola. Entardecia rapidamente e apressei o passo. Não seria interessante que, a noite me surpreendesse naquele lugar ermo e desconhecido...
Alcancei a encruzilhada e parei, assombrado: a alguns metros erguia-se magestosamente a grande mansão. Estava situada sobre o promontório e dominava toda a crista. Lá embaixo, o mar lutava para entrar terra a dentro, com investidas que, eram detidas pela negra parede de rochas da costa.
Era uma solida construção de pedra, mas, naquele instante, quando as primeiras sombras da noite se avizinhavam, tinha um aspecto desolador... Fiquei alguns momentos parado, observando todo o cenário. Do mar começava a elevar-se um denso nevoeiro que, em breve estaria dominando todo o promontório...
Foi então que, ouvi um ruído, quase imperceptível que, talvez tivesse me acompanhado, até ali, mas, só naquele momento perceberá. Era como o atrito de asas gigantescas... Olhei ao redor: nada. Apenas, nuvens baixas e carregadas corriam sobre a minha cabeça.
Apressei meus passos e pouco depois, alcançava a pesada porta. Quando dispunha-me a bater com a grande aldrava de bronze de encontro à porta, esta foi aberta, surgindo a figura de um homem velho, alto, de fisionomia agradável, embora bastante austera.
"Espero que, tenha feito boa viagem. O prof.Ricardo ordenou-me que, o recebesse"...
O mordomo, depois de ajudar-me a despir a capa, apanhou a mala e conduziu-me pelo amplo vestíbulo, até, uma enorme sala. Aconcheguei-me perto da lareira, onde crepitava um fogo vivo e convidativo.
Terceira Parte: Ricardo Bragança
Estava, aconchegado ao calor do fogo, quando ouvi um ruído vindo de trás. voltei-me...
Ricardo estava parado ali, diante de mim, porém, custou-me a reconhecer naquele homem, magro, de estatura mediana e rosto macilento, o amigo de outrora, cheio de vida e entusiasmo. Forcei um sorriso e estendi-lhe a mão:
"Como esta, Ricardo ? Recebi sua carta e não"...
"Psss, fale baixo" ! - ordenou-me, pegando-me pelo braço.
Ricardo olhou para os lados, como temesse que, alguém estivesse nos espionando:
"Desculpe-me Marcos, por tira-lo de seus afazeres, fazendo-o vir aqui, para aborrece-lo. Sinto muito, mas voce é a única pessoa em quem posso confiar"...
Tinha um ar de culpa e parecia estar terrivelmente abatido:
"Não se preocupe, meu amigo... Foi um prazer esta viagem. Somente, assim podemos nos encontrar novamente, como naqueles bons tempos, lembra-se" ?
Ricardo sorriu, mas era um sorriso forçado, amargo, sem aquela espontaniedade de outrora:
"Chamei-o, Marcos, porque voce é a única pessoa a quem ousaria chamar... A quem ousaria pedir socorro"...
"Socorro ! Que, quer dizer com isso ? Que se passa com voce" ?
"Nem pode imaginar, meu caro amigo, o que tem sido para mim estes meses, ou, anos... Nem sei"...
Ricardo estava muito abalado, esfregava constantemente as mãos nervosas pela face, ou, pelos cabelos. Seu olhar inquieto, sem aquela serenidade que, eu conhecera tão bem. Parecia, mais o olhar de um demente..., de um ser atormentado... Chegando, até, a duvidar da sua sanidade mental. Algo muito grave deveria estar acontecendo com Ricardo... e, eu tinha o dever de descobrir o que, era para ajuda-lo...
"Voce esta muito nervoso, Ricardo... Acalma-se ! Diga-me tudo o que se passa e pode contar com a minha ajuda".
"Ajuda ? Duvido, não sei se voce poderá ajudar-me... Creio mesmo que, ninguem poderá faze-lo"...
"Somos como irmãos, Ricardo. Entre nós, nunca houve segredo algum e não será, agora, quando voce necessita de mim que iria desampara-lo... Seja lá, o que for... Fale-me, com franqueza, e tudo farei para ajuda-lo... Mas, antes, procure se acalmar" !
"Pois bem, Marcos, tentarei me acalmar"...
Ricardo fez uma pausa e olhou para a porta que, estava fechada:
"Voce sabe que, foi aquele meu trabalho sobre a vida dos insetos tropicais que, proporcionou aquela viagem à França... Lá participei de um Congresso Mundial e a minha tese sobre a libélula foi alvo de acaloradas discussões e, depois de muitas controvérsias... Consegui provar que, a
libélula femea devora o macho, no ato do amor"...
"Lembro-me de voce, já ter me falado sobre isso"...
"Mas, voce não compartilhava do meu entusiasmo e sempre desviava a conversa"...
"Voce tem de convir, Ricardo, que, além dos insetos caseiros, nada mais sei sobre eles"...
Ricardo sorriu, e parecia estar mais calmo... Continuando a falar:
"Os jornais abriram manchetes com o meu nome ! Sentia que, o mundo estava aos meus pés... E, todos os dias recebia os mais variados convites: festas, reuniões, aulas, palestras, homenagens, operas, concertos, enfim... Foi, numa reunião dessas que, fiquei conhecendo Rachel"...
Quarta Parte: Rachel...
De repente, ouvi um ruído, quase imperceptível, mas, imediatamente Ricardo retesou-se..., olhando fixamente a maçaneta da porta. Esta girou lentamente. Tive a impressão que, Ricardo iria sofrer um colapso. Estava transfigurado, aquela expressão de terror voltava e seus olhos estavam a ponto de saltar das órbitas, tal era o espanto que, refletiam... Assustado com tudo isso, acompanhei o seu olhar...
No umbral da porta surgiu a figura de uma mulher... Alta, esbelta, corpo bem feito realçado por um elegante vestido. Cabelos negros e longos caiam-lhe pelos ombros desnudos, que, à luz da lareira tinham reflexos azulados. Os olhos deveriam ser negros, muito grandes, separados e oblíquos. Mas, o que mais me chamou atenção foi sua boca. Lábios carnudos e sensuais. Fiquei momentaneamente encantado. Estava diante de uma visão fascinante, bela demais para ser real...
"E então, Ricardo... Não me apresenta o seu amigo" ?
Saí do meu transe e, sem saber como, apertei-lhe a mão, pronunciando as palavras formais para essas ocasiões...
Nesse mesmo instante, o velho mordomo entrou, trazendo numa bandeja de prata, tres cálices e uma pequena garrafa de cristal. Despejou a bebida de cor esverdeada em cada cálice e serviu-nos.
Sempre tive um certo embaraço em manter conversações com pessoas recém apresentadas. E, como na atual circunstancia tudo me parecia confuso, sem que, eu atinasse direito o que se passava dentro dos muros daquela estranha casa, embaracei-me, ainda, mais, com a imagem perturbadora daquela poderosa mulher...
"Sabe, Marcos..., o Ricardo sempre fala em voce... Refere-se como sendo o seu melhor amigo ! Contou-me muita coisa a seu respeito e"...
O que estava se passando comigo ? Que estava acontecendo ? Repentinamente a voz de Rachel foi se distanciando, até, converter-se num murmúrio. Depois, apenas, percebia o mover dos seus lindos lábios...
Uma espécie de nevoeiro principiava, inexplicavelmente, a tomar conta da biblioteca. Já não distinguia muito bem as coisas... Tudo se tornava difuso, sem forma definida. Vi que, Rachel se debruçava sobre Ricardo...
A mulher, agora, já não sorria... Eu não conseguia compreender o que, estava acontecendo... Aquelas formas..., seus cabelos, seus olhos, seus lábios sensuais...
Fui caindo num torpor que, mais parecia a morte.
Quinta Parte: "A coisa"...
Meu quarto não destoava, em nada, do resto da mansão: enorme e cheio de sombras, a despeito dos tres catiçais de prata acesos e dispostos, em vários angulos do aposento.
O ribombar ensurdecedor de um trovão parecia sacudir toda a casa... Acordei sobre saltado com o temporal que desabava, parecendo querer levar tudo de roldão. Depois dos primeiros minutos, refiz-me e resolvi arrumar minhas coisas. Havia tido um dia muito agitado e um bom sono restauraria minhas forças...
O aguaceiro continuava castigando as velhas vidraças e a luz dos relâmpagos iluminavam a escuridão da noite, fantásticamente... Detive-me, por um momento, diante da janela e olhei para o jardim. O clarão dos relâmpagos, as sombras das folhagens e, a agua que caia, criavam estranhas visões e ilusões ópticas... De repente vi algo que, corria, tentando fugir à chuva... Aproximei-me mais e a luz de um forte relâmpago fez-me reconhecer a figura esbelta de Rachel...
Sem perda de tempo, quase por instinto, sem raciocinar, apanhei minha capa e precipitei-me, descendo aos trambolhões os degraus da escada. Toda a casa estava mergulhada na mais completa escuridão, somente iluminada pelos sucessivos relâmpagos...
Quando alcancei o vestíbulo, ouvi uma porta ranger... Parei, com os nervos tensos. Vi refletida, na parede da biblioteca, pelas chamas da lareira, uma enorme e desforme cabeça... Não poderia afirmar se seria humana ou animal... Destacou-se da parede, oscilou e veio ao meu encontro. Recuei apavorado sem saber se aquilo fazia parte de um pesadelo, ou, se realmente estava acontecendo ???
Procurei ancioso, à minha volta, alguma coisa com que, pudesse me defender, sentindo que, "aquilo", já se aproximava de mim... e, mais... Vi suas órbitas enormes que, me "enxergavam" e por certo iriam me destruir... Apanhei o atiçador da lareira e, com golpes às cegas, investi contra o meu misterioso e inesperado algoz... Atingi a "coisa" que, recuou, abrindo e fechando suas mandíbulas horríveis, ao mesmo tempo que, emitia uma espécie de gemido...
Fiquei estarrecido e sem forças para me mover do lugar, onde me encontrava. Vendo um vulto enorme que, esvoaçava e saía pela janela, desaparecendo na escuridão...
Durante, um longo tempo permaneci no centro da sala, empunhando o atiçador. Sentia-me incapaz de dar um passo sequer. Afinal, num esforço que, me pareceu o maior de toda a minha vida, atirei longe o atiçador e saí correndo porta a fora... Tive esta reação, ao me lembrar que, Rachel estava no jardim, à merce daquela "coisa" horrível e abominável...
Desnorterado pela chuva e pelos incessantes raios e relâmpagos, comecei a vagar pelo jardim, em busca de Rachel... Dirigindo-me a um pequeno chalé que, ficava nos fundos da casa. Tinha, quase certeza que, Rachel havia tomado aquele rumo...
Com a visão prejudicada pela chuva que, batia de encontro ao meu rosto, percebi um corpo deitado sobre a relva... Era Rachel ! Cuja a camisola colara-se ao lindo corpo. Sem cogitar de esclarecer o que acontecera, meu primeiro pernsamento foi socorre-la, levando-a dali... Tomei-a no colo e segui pelo mesmo caminho. Seria mais próximo atingir o chalé, do que o solar que, ficara a uns cento e cinquenta metros para trás.
Momentos depois, acomodava-a num divã. Um relâmpago mostrou-me um castiçal sobre a mesa. Acendi a vela que, ilumuinou satisfatoriamente o ambiente. Era um ambiente ao qual não faltava a rica decoração. Fechei a porta, por onde entrara e voltei-me para a mulher que, estava estirada no divã...
Ajoelhei-me, ao seu lado, procurando alivia-la do seu vestido encharcado, cobrindo seu corpo molhado com um roupão que, encontrará no chalé...
Retirei-lhe os sapatos e friccionei os seus pés gelados. Ela estava, apenas, desmaiada, mas, ao enxugar um dos seus ombros, esculturais, descobri marcas de violência... Rachel, também tinha sido atacada pela apavorante "coisa"...
Rachel estava estranhamente linda. Dir-se-ia uma princesa adormecida, cuja beleza era tal que, chegava a atormentar quem a visse... Seus longos cabelos negros derramavam-se pelo divã, quase, até o chão. Os lábios, vermelhos e carnudos como polpa de um fruto maduro exitavam diabolicamente meus desejos, entreabrindo-se, lentamente, em suspiros doloridos, enquanto seu corpo coleante estremecia, denunciando que, estava prestes a se reanimar.
Percebi que, ela ia voltando a si, e por isso mesmo, não deveria me preocupar. Levantei-me, dei umas voltas pelo aposento e depois, fui até a janela. O temporal, já havia terminado e agora, apenas uma chuva fina pontilhava a escuridão. De onde me encontrava, vislumbrava toda uma ala da mansão. Minha atenção foi atraida para uma janela iluminada dubiamente. Observando a sombra de alguém que, passeava de um lado para outro, como que, muito preocupado... Era Ricardo, não restava dúvida...
Sexta Parte: O beijo...
Rachel estava sentada, já refeita do golpe, e fumava calmamente um cigarro, enquanto que, eu continuava parado diante da janela observando a sua deslumbrante imagem, refletida no vidro e, ao fundo, a sinistra mansão... Embora tentasse manter uma aparencia despreocupada diante daquela formosa mulher, isso me custava um esforço sobre humano..., pois sempre fui muito reservado e tremendamente timido com o sexo oposto... Ainda mais, nesta estranha circunstancia: Rachel era esposa de Ricardo... Mas, mesmo assim, sentia que a minha nuca ardia como fogo diante do olhar penetrante de Rachel...
"Marcos"... - Seu chamado foi como um choque que me fez voltar à realidade:
"Marcos"... - Chamou, novamente Rachel, com sua voz rouca, terna e sensual, quase um canto musical.
Voltei-me. Rachel estava ainda na mesma posição: sentada com as pernas dobradas sobre o corpo. O roupão entreaberto deixava ver parte do seu delicado busto que, arfava com a respiração: seus apetitosos seios, de uma alvura de enlouquecer, pareciam querer saltar pela abertura.
"Escute, Rachel, conte-me tudo desde o início: quero sabero que esta se passando aqui e se, realmente, posso ajudar em alguma coisa" ?
"Duvido, meu amigo. E, também, se lhe contasse tudo..., iria magoá-lo profundamente"...
"Não, Rachel. Preciso saber e voce tem de me contar tudo"...
Aproximei-me de Rachel... Meus joelhos encontraram-se com os dela e minhas mãos apertaram as suas... Rachel, por alguns instantes, fitou o assoalho. Depois, ergueu os olhos límpidos...
Relutei muito, mas era uma boa hora para descobrir o que, realmente, se passava ali e averiguar, qual era a maldição que pesava sobre aquela velha casa...
Olhei Rachel, profundamente nos olhos e não poderia dizer se neles havia uma expressão de horror, ou, de sofrimento: apenas, percebia uma certa inquietação, um leve brilho de ternura a aflorar como fogo fátuo...
"Foi um erro, Ricardo chama-lo, Marcos... Quem tem que resolver "isto" (?), somos nós e mais ninguém"...
"Por que, voce se refere a "isto" ? Afinal, o que há por aqui, Rachel" ?
Não me controlando, agarrei as mãos da mulher. Segurei-as com força, a ponto de, quase, machuca-las:
"Voce não entenderia, Marcos... Como ninguém entenderá"...
"Mas, escute Rachel... Porque não se mudam daqui..., enquanto, é tempo"?
"Mas, o mal não esta no local... Não pense que, foi sempre assim... Quando, chegamos aqui, era um verdadeiro paraíso ! Tinhamos a criadagem completa, dávamos passeios de barco, festas, reuniões alegres. Depois... Aconteceu, algo estranho, inverossímil e tudo foi se modificando: os criados fugiram apavorados, até que, ficamos reduzidos aquele mordomo e uma preta velha que, cuida da cozinha. Mas, ambos vão embora, antes do anoitecer... Com muito custo, conseguimos segurar George, em casa, esta noite"...
"Logo que, casamos, voltamos para o Brasil. Esta casa pertencia aos antepassados da familia Bragança, mas, estava abandonada há muitos anos... Fizemos uma reforma completa, antes da mudança. Nossa vida era tranquila, Ricardo passou a dedicar-se com mais afinco aos seus estudos entomologicos. Para isso, montou um verdadeiro laboratório no subsolo da mansão, aproveitando um parte da adega. Ali criou seu santuário, passava horas e até mesmo dias, lendo, estudando, pesquisando, tudo que diz respeito a vida e ao desenvolvimento de espécies raras de insetos tropicais... Constantemente, recebia livros e correspondência de todas as partes do mundo" !
Rachel fez uma ligeira pausa, para acender outro cigarro. Aproveitei para arriscar uma pergunta:
"E, isso começou a magoá-la" ?
"Sim, realmente, Marcos... Os dias, para mim, foram se tornando insípidos. As noites eram longas e, raramente tinha Ricardo, ao meu lado... Os amigos, há muito tempo haviam desaparecido. Foi, quando surgiu a primeira fatalidade"...
"Fatalidade" ?
"Aconteceu, certa noite. Eu estava lendo, na biblioteca, quando ouvi um grito pavoroso que, vinha do jardim... Corri pra lá, mas, já era tarde... Encontrei o corpo sem vida de Alice, uma bela jovem que, trabalhava como copeira"...
"Morta, mas, como" ?
"A policia não conseguiu apurar nada além, do que eu sabia... Mas, não foi, apenas, este incidente. Houve outros assassinatos horríveis, incluindo um jovem que, estava hospedado no hotel de veraneio, aqui, nas proximidades. Depois, começaram a dizer que, o local estava assombrado... e, toda a criadagem desertou"...
Ficamos parados. Rachel olhava-me com uma expressão que, me desconcertava, seus olhos negros pareciam me hipnotizar e senti suas mãos inquietas, entre as minhas...
"Diga-me, Rachel: voce, já viu"...
"Refere-se, ao que, nos atacou" ?
"Não sei, talvez sim... Voce tem idéia do que, seria" ?
"Talvez, alguma ave noturna"...
"Voce se esqueceu do temporal ? Que, ave voaria sobre o aguaceiro que, caia, com forças para dominar uma pessoa e ainda, ataca-la"...
Ousei afastar o roupão, deixando o ombro de Rachel inteiramente nú para poder examinar, novamente, os ferimentos... Alguns arranhões que, subiam pelo pescoço... Impulsivamente, ela segurou minha mão, conduzindo-a pelo seu pescoço, num gesto de carícia...
"E Ricardo, o que diz ele de tudo isto ? - perguntei, como que, ignorando o seu gesto.
"Foi se tornando, cada vez mais estranho..., até chegar no ponto que, o encontrou: quase, um demente... Entregue a experiencias inconfessáveis"...
"Então, voce acha que"...
Não pude continuar minha observação... Rachel enlaçava-me com seus braços macios. O roupão abriu-se e escorregou, deixando surgir em todo o esplendor, aquele belo corpo de mulher, duma alvura estonteante... E, seus lábios carnudos, quentes, inebriantes, foram se aproximando e se juntando aos meus, sedentos de beijos e amor ! Minhas forças foram sumindo, minha cabeça girava, girava..., girava num torvelinho. Sentia que, os sentidos se distanciavam e,embora como olhos semi cerrados, percebia os grandes olhos de Rachel, fixos nos meus... Cada vez mais, seus lábios iam-se colando aos meus, numa sensação voluptosa. Sentia que, ia desfalecer num delírio de prazer indescritível, como nunca havia experimentado, até, então... E, tudo foi se turvando, sumindo, até, desaparecer...
Setima Parte: No dia seguinte...
Acordei, na manhã seguinte, com uma réstia de sol que, entrava por uma fresta da janela, iluminando todo o meu rosto.
Uma sensação estranha invadia todo o meu corpo... Onde, estava ? Aos poucos, fui remenorando tudo que, havia acontecido... E, Rachel ? Onde, ela estaria ? Levantei-me, fui, até, o espelho..., minhas pernas mal podiam sustentar- me, mas, não me recordava de haver bebido, algo que, pudesse justificar esse tamanho mal estar... Estava com olheiras profundas e o rosto, um tanto empalidecido...
Apanhei a capa de chuva e quando, abri a porta, vi, Rachel caminhando por uma das alamedas do jardim. Ela trazia uma bandeja, com um bule de café e duas xícaras:
"Muito bom dia, como vai" ? - saudou-me alegremente, colocando a bandeja sobre a mesinha.
"Prefere, com leite, ou, puro" ?
"Puro" - respondi, olhando aquela mulher que, cada vez me confundia mais e me prendia pelos seus encantos divinos...
"Então, tome e coma um pedaço de bolo" !
Sentou-se, ao meu lado, enquanto, comia e bebia café. Ficou, o tempo todo, me olhando... Aqueles lábios ! Eu estava perdidamente preso a eles...
"E, Ricardo" ? - perguntei, numa tentativa de início de conversa que, me distraisse dos meus maliciosos pensamentos e, por que não dizer, também, dos dela... Pois, tinha certeza que, os seus pensamentos eram identicos aos meus...
"Saiu, bem cedo. Deve estar por aí"...
De repente, não me contive. Larguei a xícara e, segurando-a pelos ombros, exclamei:
"Fujamos, Rachel ! Fujamos para um lugar bem afastado, onde ninguém nos conheça e possamos viver em paz"...
"Não, Marcos. Não seria justo abandonarmos Ricardo, logo agora, no momento em que, ele mais precisa de nós"...
"Rachel"... - tomei-a nos braços. E, não sei por quanto tempo permanecemos, ali abraçados. Aquela mulher parecia uma deusa do fogo e qualquer homem se escravizaria pelo seu amor !
Agora, não poderia mais voltar atrás, estava irremediavelmente preso aquela linda mulher, esposa do meu melhor amigo... E, se me sentia confuso era porque buscava uma resposta para o estranho co´portamento de Ricardo..., com respeito à Rachel. Trocava-a por suas malditas experiencias com insetos... Deixando-a, quando ela necessitava dos seus carinhos, anciosa por ter em volda do seu corpo sensual, os braços vigorosos de um homem... Não sentia remorsos, ou, culpa pelo meu procedimento, pelo contrario, achava, até, natural... Rachel, aquele verdadeirio vulcão, jovem e bela, com seu lindo corpo sedento por sexo..., pelos prazeres que, só contato de um outro corpo poderia lhe proporcionar:
"Não convém que, Ricardo, me encontre aqui"...
Beijamo-nos, longamente e, Rachel saiu.
O dia estava esplendido. Um sol claro dardejava seus raios sobre o mar, com revérberos dourados, as ondas combatiam os rochedos negros da costa, tentando escalar o promontório, deixando um rendado de espuma na encosta.
Lá embaixo, à beira do penhasco, percebi alguém... Era Ricardo ! Estava sentado, aproveitando o sol. Então, uma série de perguntas passou pelo meu cérebro: ele saberia dos nossos encontros ? Porque, não dormia ? Porque, não saíra em socorro de Rachel..., deixando-a só, em meio aquele temporal ? Afinal, porque me chamara ? Quais seriam as suas "experiencias inconfessáveis" ?
Pela primeira vez, passei a suspeitar do meu amigo, movido pelo seu estranho procedimento...
Momentos depois, eu descia a encosta, chegando ao lugar, em que, estava sentado. Logo que, me viu, Ricardo veio ao meu encontro:
"Até que enfim, o desaparecido, apareceu ! Por onde tem andado que, o George não o encontrou em seu quarto, hoje de manhã" ?
"É uma estranha história, Ricardo. E, sobre isso que, gostaria de falar com voce"...
"Então, senta aqui, Marcos. A manhã esta esplendida e não convém
disperdiçarmos este sol".
Ricardo estava com uma aparencia muito boa e, me pareceu, bastante animado... Fato que, embora me alegrasse, também, me deixava um tanto confuso:
"Voce se refere ao incidente, de ontem à noite" ? - ele me perguntou, antes, que pudesse fazer qualquer observação.
"Rachel deve ter-lhe contado tudo... Mas, porque, se refere com essa frieza ao que, aconteceu, assim com fosse um fato corriqueiro" ?
"Dificilmente compreenderá, meu amigo. Já evitei falar nesse assunto, embora, o meu chamado se referisse, exatamente, a ele"...
"Se, voce me procurou, é porque, deve confiar em mim, e agora, se recusa a falar, ou melhor, explicar o assunto... O que há por aqui ? Porque, voce e Rachel não fogem, deste maldito lugar ? Porque, Ricardo ? Vamos, responda" ?
Ricardo estava de cabeça baixa, feições sombrias. Pareceu-me, por um momento, que sofria... Depois, olhou-me com um sorriso acanhado:
"Foi, exatamente, por isso que, o chamei, Marcos. Pode crer que, agora, estou arrependido"...
"Porque" ?
"Sinto que, voce, já está se enredando. Isso, é como uma teia de aranha, em que, a gente vai se emaranhando e quando, menos se espera, se está de tal maneira envolvido que, não se pode escapar"...
"Não tema por mim, Ricardo. Conte-me todo o segredo e, seremos tres contra o mal"...
"Tres contra o mal"... - repetiu, apenas, numa confirmação irônica das minhas palavras.
"Falarei sobre o mistério, prometo. Talvez, hoje à noite, ou, amanhã, quem sabe ? Quando, sentir que, chegou o momento... Antes disso, Marcos, não gostaria de ouvi-lo mais tocar nesse assunto" !
"E, a sua esposa ? Rachel, quase, foi morta e eu, também, fui atacado por algo que, nem sei, o que é... E, voce acha que, não chegou o momento de falar sobre essa estranha "coisa" que, afinal das contas, foi o motivo de eu estar, aqui, atendendo sua suplica" ?
"Marcos, me perdoe, se estou agindo desta forma, tão estranha... Mas, ainda não chegou o momento. Por favor, não faça mais perguntas"...
Oitava Parte: A praia & o Laboratório...
O passeio aguçara o meu apetite. Devorei, vorazmente, a refeição. E, logo após, o almoço, fui para o meu quarto e descançei, seguramente, umas duas horas: novamente, as imagens fantástica daquela estranha noite, confundiram a minha mente, sem que, eu conseguisse distinguir, direito, se estava sonhando, ou, acordado...
O som forte do carrilhão, da mansão, ressoou soturnamente. Despertei, logo, na primeira pancada. Eram tres horas.
Levantei-me e saí. Toda a casa estava mergulhada no mais profundo silencio. Como a tarde, ainda, estava esplendida, resolvi voltar para praia, onde pretendia dar um passeio, tentando organizar, um pouco, os meus
pensamentos... Estava ancioso, por uma resposta, às inumeras perguntas que, há cada momento, se avolumavam mais, em meu cérebro...
Já havia caminhado, cerca de vinte minutos, quando, vi a uns duzentos metros, a silueta de alguém que, brincava com as ondas do mar... Parecia mais uma "nereida", de corpo branco. Aproximei-me, alguns metros e distingui Rachel,
completamente nua..., banhando-se nas águas verdes do remanso. Que, pouco depois, tendo me avistado, começou a gritar o meu nome, acenando para que, eu fosse ao seu encontro... Mesmo, sem saber, se estava sonhando...Não hesitei um segundo: rapidamente, me livrei da roupa e corri ao seu encontro...
Saindo do mar, de braços abertos, ela veio para junto de mim. seu corpo maravilhoso, de linhas ricas de escultura grega, todo molhado, reluzia ao sol, como uma aparição divina dos tempos helênicos ! Aquela magnífica mulher revelou-se, inteirinha, diante dos meus olhos atônitos... Apertei-a, num forte abraço e dei-lhe, um longo beijo, antes das primeiras palavras:
"E..., o Ricardo ? Voce ficou louca, Rachel" ?
"Foi, até, a cidade... E, só voltará tarde da noite"...
Fortemente agarrados pelo desejo, com os corpos unidos,
em busca do prazer total, rolamos pela areia e ali, permanecemos fora do tempo e do espaço, mergulhados num delírio maravilhoso do amor...
"Tem certeza que, Ricardo voltará tarde" ?
"Mas que, hora impropria para este tipo de pergunta..., meu bem ! Esqueçamos que, ele existe e vamos viver o momento presente"...
Ela rolou seu lindo corpo nú, na areia, que, voluptosamente uniu-se ao meu...
Mais uma vez, nossas bocas se juntaram num beijo interminável e... Então, a minha estranha obsessão voltou: não estaria apaixonado por Rachel ? Eu não desejava o seu corpo. O que, realmente, desejava naquela criatura eram seu lábios... Aqueles lábios carnudos e sensuais... Senti os colados aos meus, como verdadeiras sanguessugas... E, novamente, o gozo, a letargia !
Fui afundando..., afundando...
Despertei, com as primeiras sombras do crepúsculo. Rachel dormia, serenamente, ao meu lado. Não tinha mais, aquela expressão de inqueta e parecia estar, plenamente, feliz !
Sacudi-a, delicadamente. Ela acordou:
"Ai, como está frio"...
Cobri a jovem moça, com o meu casaco.
Momentos depois, regressavamos à mansão:
"Tem certeza que, Ricardo, só voltará tarde" ? - insisti, na pergunta e antes que, ela pudesse dizer qualquer coisa, me justifiquei: "Tenho um plano, Rachel... Mas, não gostaria de forma alguma, ser surpreendido por Ricardo".
"O que, voce imagina fazer, Marcos" ?
"Gostaria de fazer uma vistoria, nas coisas de Ricardo"...
Rachel não manifestou o menor sinal de contrariedade.
"Se pretende, realmente, fazer isso..., pode fazê-lo sem nenhum receio. Quando, Ricardo vai à cidade, ele nunca retorna, antes, das onze horas".
"O que, ele vai fazer, na cidade" ?
"Comprar livros, apanhar correspondencia na posta restante e comprar drogas para as suas experiencias"...
"Ele fala, com voce, das suas misteriosas experiências ? O
que esta fazendo, agora ? Onde, pretende chegar" ?
"Raramente, Ricardo fala comigo sobre tais assuntos".
Segurei Rachel pelos ombros e, coloquei-a bem de frente para mim. Esse gesto foi tão brusco que, pude ver uma expressão, de espanto e surpresa, nos seus belos e grandes olhos escuros...
"Escute, Rachel. Preste bem atenção à pergunta que, irei fazer e, responda-me, com toda a sinceridade"...
Ela continuava a olhar-me, sem proferir uma só palavra:
"Voce, nunca, suspeitou do tipo de experiência que, seu marido faz" ?
"Está bem. Cheguei a pensar que, tudo isso que, tem ocorrido aqui, não seria o resultado dessas experiências... algo, deve ter acontecido... Qualquer coisa terrível que, ele não conseguiu dominar... Quem sabe, talvez alguma criatura monstruosa, diabólica"...
"Exatamente, o que eu pensava ! Vamos querida, temos muito que fazer... Se der resultado o que, tenho, em mente, esta noite, vamos por um ponto final, nesse mistério ?
Munidos de lanternas elétricas, descemos os degraus de pedra que, levavam aos subterrâneos da mansão e, em poucos instantes, penetramos num recinto úmido.
Embora tivesse sido construído para ser utilizado como adega, o local estava abandonado há muito tempo, pois as prateleiras estavam vazias, cobertas de teias de aranha e uma poeira escura dominava tudo. Percebia-se marcas de sapatos, na poeira do piso de pedra, denunciando que, constantemente alguém transitava por ali. Paramos diante de uma parede, até, onde levam as pegadas que, seguimos...
Rachel meteu a chave que, trouxera, num orifício, quase, imperceptível e logo, se escancarava uma passagem secreta, na parede... Dirigi o facho de luz da lanterna através da abertura e, entramos. O misterioso laboratório de Ricardo era uma sala enorme. Na entrada, do lado esquerdo, via-se uma mesa repleta de livros, cadernos e papéis amarelecidos pelo tempo. Tudo na maior desordem. Experimentei abrir as gavetas, mas, estavam todas trancadas... Espalhadas por estantes, via-se uma grande quantidade de retortas contendo líquidos coloridos espumantes e estojos de vidro, contendo insetos das mais variadas espécies e tamanhos. Todos devidamente catalogados. Na outra extremidade, encontrei alguns espécimes desconhecidos de insetos, de formas estranhas e aparência assustadora.... Porém, o que era singular: todos eram insetos carnívoros ! Havia, também, um coleção inteiramente composta de libélulas...
“Acredito que, voce não achará qualquer relação, entre o que, se encontra
neste laboratório com o que vem acontecendo”...
“Mas, tenho certeza que, a resposta está mesmo aqui: talvez, num destes insetos, ou, naquelas gavetas trancadas”.
“Você esta mesmo convicto que, a maldição,ou, não sei lá o que, é provocado pelas experiências de Ricardo” ?
Delicadamente, segurei Rachel pelo braço. Naquele momento, ela estava mais bela do que nunca, seus olhos brilhavam na penumbra, enormes, fascinantes e magnéticos !
“Só pode ser isso, ou, você crê em algum ente sobrenatural ? Diga-me, Rachel: os estranhos acontecimentos começaram, depois que, Ricardo iniciou as suas malditas experiências” ?
“Julgo que, sim”... – percebi uma certa relutância, na voz rouca de Rachel.
Aquele ambiente sinistro, não poderia deixar de mexer com os nervos de qualquer visitante. Sentia-se uma atmosfera estranha e uma sensação de insegurança, como se algo medonho estivesse oculto naqueles sombrios subterrâneos...
Nona Parte:
Quando subimos, o jantar, já estava servido. Jantamos em silencio. Sentia-me demasiadamente pequeno, dentro, daquela enorme casa, perdido na amplitude daquela sala imensa.
Durante a refeição não fizemos nenhuma alusão à nossa investigação. Depois fomos dar um passeio pelo jardim. A noite estava clara, iluminada por uma lua cheia que, despontava e se escondia, atrás de nuvens escuras que, anunciavam um próximo temporal.
As primeiras gotas de chuva, nos obrigaram a voltar para casa. Entramos e nos dirigimos a biblioteca, onde ficamos comodamente instalados. Rachel serviu-me um drinque e permanecemos calados, como se, cada um estivesse mergulhado em seus próprios pensamentos... De minha parte, não tinha a menor intenção de revelar-lhe as conclusões que, tinha chegado. Meu objetivo era resolver o quanto antes, aquilo tudo e partir com Rachel... Não considerava
isso uma traição. Afinal, eu também tinha direito de ser feliz, assim como ela.
Ricardo a tivera a seu lado, todo esse tempo, e não soube faze-la feliz... Pelo contrario, estava, quase, a conduzi-la à loucura e a qualquer momento, Rachel
poderia ser vitima de terrível e maléfico ser que, rondava a mansão
Estávamos assim, entregue aos nossos desvaneios, quando um grito aterrador encheu toda a casa. Não havia duvida, era Ricardo quem gritava e o apelo vinha do andar superior. Ele devia ter chegado, sem que, o pressentíssemos....
Corri ao seu encontro e fui acha-lo, estendido no chão do seu quarto... Rachel ajudou-me a coloca-lo na cama.
“Está sofrendo uma de suas crises” – disse-me ela, com tranqüilidade. “De vez em quando, isso acontece”...
Arrumamos, convenientemente, Ricardo no leito e saímos. Foi, quando fiquei sabendo que, eles não dormiam no mesmo aposento.
Pouco depois, já refeito do susto que, causara aquele grito que, me pareceu conter toda a angustia do mundo, retirei-me para o meu quarto. Já havia trancado a porta e, ao aproximar-me da cama, encontrei um bilhete sobre o criado mudo. Apanhei-o. Continha, apenas, duas linhas:
“Não me deixe só. Preciso de você,
Ricardo”
Eu estava bastante confuso. Não conseguia entender o sentido daquelas palavras... Elas ficavam ressoando, em minha pobre cabeça, com aquela carta que, me trouxera à esta maldita casa. Que medonho sortilégio dominava aquele misterioso lugar, a ponto de não permitir que, pudéssemos fugir... Que feitiço poderia nos prender, naquele insuportável solar ?
Saí, com cautela, e voltei ao quarto de Ricardo. Encontrei-o deitado, ao longo da cama. Ele, já havia voltado a si. Fez um sinal para que, me aproximasse e indicou uma cadeira junto à cabeceira da cama:
“O fim está próximo, meu bom e fiel amigo... Gostaria que, ficasse esta noite, ao meu lado”...
Sua voz era fraca. Parecia falar com extrema dificuldade. Depois, acenou para que, eu fechasse a porta.
Após, observar o corredor, tranquei a porta a chave. Tudo estava no mais absoluto silencio, se é que, posso usar a palavra “silencio” para definir a pavorosa sensação causada por aqueles corredores e cômodos. Lá fora, a tormenta continuava fustigando o promontório e o ruído do mar chegava, até nos, como um terrível lamento.
Ricardo, iluminado pelas chamas das velas, não parecia sofrer, mas, denotava que estava muito fraco e, eu mal podia compreender que, horas atrás, estivesse
tão bem disposto, na praia... Sentei-me, novamente, ao seu lado e repeti, talvez
pela centésima vez, a mesma pergunta:
“Afinal, o que está acontecendo, Ricardo ? Fale-me, pelo amor de Deus ! Talvez, eu possa fazer alguma coisa” ?
Ele olhou-me longamente, levantou com grande dificuldade a cabeça do travesseiro e murmurou:
“É terrível, Marcos... É terrível”...
“Onde, você esteve toda à tarde” ?
“Aconteceu, depois que, voltamos da praia... Não sai daqui”...
Aquela revelação produziu um estranho efeito, em mim. Rachel me disse que, ele havia ido à cidade e agora, Ricardo afirmava que, não sairá de casa ! Uma nuvem de suspeita assaltou-me: não estaria Ricardo blefando ? Não estaria encenando, aquilo tudo, para me eliminar ? Talvez, tivesse descoberto o nosso romance...
“Peço que, não me abandone esta noite, Marcos” !
Não abandona-lo. Ficar ali. Tudo estava se tornando muito estranho. Em todo o caso, eu tinha que, aguardar os acontecimentos...
“Procure dormir sossegado, Ricardo... Ficarei, aqui”...
Depois, pareceu-me que, ele quis dizer alguma coisa... Mas, sua garganta emitiu, apenas, um ruído inteligível que, poderia ser, simplesmente encenação.
Quando Ricardo adormeceu, fiz um minucioso reconhecimento do quarto, não encontrando nada suspeito. Como teria que, passar a noite inteira, ali, afastei a cadeira e aproximei uma poltrona do leito, afim de ter um pouco mais de comodidade. Sentei-me e fiquei observando a expressão desfigurada de Ricardo e uma dúvida cruel ficou me atormentando: seria vítima ou culpado ?
Aos poucos, fui rememorando todo o passado, até, aquela deliciosa tarde e meus pensamentos terminaram na interrogação de sempre: Porque, Ricardo
teria solicitado a minha presença, naquela casa ? Porque razão, ele evitava falar “naquilo” que, fora o motivo da minha vinda ? Porque ?
Com os pensamentos girando..., girando... Adormeci...
Acordei sobressaltado com o grito de horror de Ricardo que, debatia-se e apontava para a janela. Antes que, eu pudesse esboçar qualquer defesa, vi uma apavorante sombra alongar-se contra a cabeceira da cama, até, cobri-la totalmente com um negror imensurável... Ouvi um ruído estranho, como um áspero tatalar de asas... Depois, não me recordo de mais nada: senti uma forte vertigem que, foi me levando para o interior de mim mesmo, através de uma implosão...
Horas depois, acordei com um infernal barulho do temporal que, entrava pela janela, que, batia furiosamente contra a parede do quarto. As cortinas esvoaçavam e todo aposento estava na mais absoluta escuridão, pois o vento havia apagado as velas. Levantei-me, sentindo que, as minhas pernas estavam fracas e todo o meu corpo parecia ter levado uma tremenda surra, tal era o estado de fraqueza que, sentia...
Arrastando-me cheguei, até, a janela e com muito esforço, consegui fecha-la. Depois às apalpadelas, cheguei, até, o castiçal e acendi as velas. Aproximei a luz da cama e não contive uma exclamação de terror: Ricardo Bragança estava morto ! De uma ferida existente, em seu pescoço, escorria um tênue filete de sangue...
Apavorado, saí do quarto. Meu pensamento era Rachel. Onde, estaria ela, naquele momento ? A porta do seu quarto estava aberta, o leito vazio... Talvez fosse tarde demais e ela teria sido vitima como Ricardo ! Mal podendo andar, devido a fraqueza que, se apoderará de mim... e, com a cabeça estalando de dor, comecei a descer os degraus da escada, um a um, com toda a precaução... Ao mesmo tempo que, descia, espreitava todos os cantos, pois esperava ser atacado a qualquer momento, sem saber de onde viria o ataque e, nem quem, ou, que, me atacaria ?
Quase rastejando, alcancei a biblioteca...
Agora, estou sentado junto à escrivaninha, encontrei estas folhas e maculei-as com este estranho relato. Disse estranho, mas, tão real quanto as letras impressas que, o leitor – se é que esta historia algum dia chegará aos olhos de alguém – tem diante de si. Senti-me impelido por uma força estranha para escreve-la... Talvez, jamais tenha força para fugir desta casa... Cada vez, sinto-me mais debilitado e as forças vão me fugindo, a vista turva-se... Não sei que, terrível mal se apoderou de mim...
Agora, chegam estranhos ruídos aos meus ouvidos, como o tatalar de asas ásperas... Gemidos indefinidos de perigosos insetos... ou, sei lá, o que seja... Sinto que, o ambiente está impregnado de forças malignas e o desfecho final se dará a qualquer instante...
A maçaneta da porta começa a girar... A porta esta trancada a chave... Alguma “coisa” esta forçando a porta... Não tenho nenhuma arma, para me defender...,
a não ser, esta espátula de prata...
Epílogo
O Inspetor Wilson deixou o maço de papéis, sobre a escrivaninha e olhou mais uma vez, para o cadáver do homem, caído no chão... Ali, deve ter-se travado uma luta titânica, como se um furacão houvesse penetrado pelo aposento, arrombado a porta, de fora para dentro e depois arrombado a janela, de dentro para fora...
A atenção do Inspetor, voltou-se para a porta, por onde entrava um policial. Este anunciou que, o corpo de uma mulher, estranhamente bela, foi encontrado na praia. Ela, também, estava morta, com uma espátula de prata enterrada no coração...
F I M